Uma das características distintivas da literatura contemporânea é sua convicção subjacente de que a consciência histórica precisa ser eliminada se o escritor quiser examinar com a adequada seriedade aqueles estratos da experiência humana cuja revelação é o objetivo específico da arte moderna. ( Hayden White, 1978)
Ao finalizar os encontros referentes à linha de pesquisa: literatura e produção cultural com a apresentação e discussão dos textos selecionados sobre literatura, historiografia literária, história e memória, narrativas de extração histórica, romance histórico e metaficção historiográfica, pretende-se, com este assunto, elaborar uma reflexão com as relações possíveis entre os discursos: ficcional e historiográfico.
Para tentar entender essas relações parte-se de escritores-críticos modernos renomados na tentativa de fundamentar as argumentações que serão mencionados na medida em que os textos foram abordados.
Neste início, observa-se a problematização da história no romance, existente entre o romance histórico e o romance de metaficção historiográfica compreende no dizer de Lucáks: "a singularidade histórica em que o personagem é trabalhado na obra como ser dominante". O romance histórico tomava como certo a descrição microcósmica, ilustrando a história com os personagens tipo, pois sob ele há a voz do poder, quando há a variação.
Ilustrando a história, os personagens tipo representam o poder criando o macro texto, ou seja, as complicações e conflitos que são enfrentados pelos personagens, abrangem o desenvolvimento histórico no mundo fictício, e com isso legitimam o conflito social e político num debate moral. Por outro lado, o romance de metaficção historiográfica desestabiliza a referencialidade histórica, pois a trama narrativa faz intertextos quebrando a legitimização, contestando-a na norma existente do conflito social, político dos fatos que realmente aconteceram. Neste aspecto, percebe-se que o romance histórico possui uma história estruturada, bem elaborada e que no romance de metaficção historiográfica a ficção na história é condicionada, ou seja, há a desestabilização do sujeito, há um processo de descentralização e de descontinuidade deixando que outras vozes contem a história.

o empreendimento pós-moderno ultrapassa as fronteiras da teoria e da prática, muitas vezes envolvendo uma na outra e uma pela outra, e muitas vezes a história é o cenário dessa problematização. (Hutcheon, p. 123)

Nesta abordagem de Hutcheon retoma-se Peter Burke que ao falar sobre a questão da nova história e da história tradicional mostra as recentes tendências das áreas da investigação histórica. Elaborada com vários estudos que analisam e esboçam as realidades novas, em geral descartadas pela história tradicional, leva à reflexão do desenvolvimento da historiografia do século XX e mostra a nova história como paradigma moderno.
A expressão desenvolvida "nova história", mais conhecida na França, é uma reação deliberada contra o paradigma tradicional descrito como "história rankeana", conforme Rouke, é também chamado de paradigma da visão do senso comum da história, elabora o contraste entre a antiga e a nova história, em que, no primeiro momento o paradigma tradicional, a história diz respeito à política por ser relacionada ao Estado, ou seja, ser mais nacional e internacional do que regional e a nova história se interessa por toda a atividade humana, tendo como base filosófica a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída. Em segundo momento, o paradigma dos historiadores tradicionais pensa a história como narrativa de acontecimentos e a nova história se preocupa com a análise das estruturas. Em terceiro, a história tradicional oferece a visão de cima, em que os grandes feitos, os grandes homens se concentram, enquanto que a nova história possui a visão vista de baixo valorizando o ser que não tem história, ou seja, as pessoas comuns. E quarto momento, o paradigma tradicional, a história deveria ser baseada em documentos, o que, nas limitações das fontes narrativas, a crônica, negligencia outros tipos de fontes. Em quinto momento, a variedade de questionamentos dos historiadores que preocupados com movimentos, ações individuais e tanto as tendências como os acontecimentos e por último, sexto momento, no paradigma tradicional, a história é objetiva, ou seja, o historiador se preocupa em apresentar os fatos como realmente aconteceram gerando um desconforto, pois na nova história é considerado irrealista.
Diante desses paradigmas, percebemos que a nova história apresentada por Peter Burke nos remete ao percurso de escrever uma história interessada nas estruturas, não nos acontecimentos, pois o que é novo não é sua existência, mas o fato de existirem novos profissionais e se recusarem a ser marginalizados.
Os paradigmas surgiram como movimento de mudança, percebendo-se a inadequação do existente com as mudanças no mundo que estão mais amplas. Esses paradigmas têm seus problemas, mas através das mudanças a nova história poderá ser construída. As descobertas sobre a humanidade estão sendo feitas, uma nova história está sendo criada.
Para que este fato ocorra, necessário se faz elaborar uma reflexão sobre o diálogo existente entre o discurso literário e o discurso histórico. Para tanto, mesmo que superficialmente, observa-se que toda literatura e história se cruzam na narrativa. Ao se falar sobre o diálogo entre a história e a ficção deve-se voltar o olhar para o dialogismo da Bakhtin, no qual, percebe-se a relativização no quadro em que se estabelece o campo de influência recíproca, permuta e processos discursivos, tanto da narrativa ficcional como das narrativas históricas. E, não se esquecendo a evolução interna de ambas.
Ao abordar o romance histórico e a metaficção historiográfica percebe-se que são de extração histórica. Enquanto fala-se sobre narrativa de extração histórica estabelece-se uma nova convenção de verossimilhança substituindo o estatuto de veracidade. Esta como interesse pelo passado, na questão das relações entre texto e contexto, reveste a produção narrativa, criando uma nova forma de narrativa que é o romance histórico. O romance histórico encontra-se inserido na metaficção historiográfica. Esta, por sua vez, inserida na narrativa, busca a história real nos personagens e entre passado e presente há um diálogo eloquente voltado para a veracidade documental, ou seja, parodiando a história real, oficial. O estado ficcional entra em cena quando utilizando uma atitude escritural evidencia os fatos numa tentativa de expressar o verdadeiro. Dentro de todos os aspectos abordados encontra-se o imaginário. É ele quem estabelece a relação entre as narrativas de extração histórica, o romance histórico e a metaficção historiográfica.
Portanto, no contexto que se estabelecem, as relações existem na relativização, uma sensível unidade construída a partir de uma atitude escritural em que transfere à ficção o resgate da história. E é a partir do diálogo com a história que este contexto se firma, estabelece, ou seja, o texto dentro do contexto.
As relações estabelecidas entre literatura, crítica literária e imaginação histórica partem-se do questionamento elaborado por White e LaCapra sobre as fronteiras que separam a história da literatura, repensando e redefinindo, focalizando o papel da linguagem.
O processo dialógico de Bakhtin, na literatura, torna-se relevantes para a análise histórica de outros textos, pois as realidades sociais de sociedades do passado se evoluem através de diálogos constantes. Essa interação nos leva observar a imaginação dialógica, proposta por Bakhtin, em que a ênfase do dialogismo converge para dimensões ambivalentes ou indefiníveis na qual aparentes opostos entram em relação de intercâmbio carregados de tensão. White e LaCapra buscam na crítica literária a ênfase sobre a linguagem, a textualidade, as estruturas narrativas, as categorias imbricantes e o diálogo, que são de fundamental importância no sentido de auxiliar os historiadores a repensar a natureza tanto da historiografia quanto da realidade histórica.
Outro fator que se questiona é a distinção, categoria ou realidade do discurso histórico que a crítica literária leva para a literatura, os historiadores recorrem à mesma realidade com que recorrem às ciências sociais. A literatura sugere alternativas para conhecer e descrever o mundo e, com isso, usa a linguagem para representar as categorias da vida, do pensamento, das palavras e da experiência.
Falar sobre literatura, crítica literária e imaginação histórica implica preocupar-se com o processo evolutivo da linguagem, explorar o seu movimento e significados em todos os aspectos social, político e pessoal. Falar sobre a literatura moderna engloba diversos fatores: é sempre um aspecto agregado a outro. A visão dicotomizada das coisas nos leva a essa visão diferenciada. Seja como for, White e LaCapra, ao recorrerem a Bakhtin buscam novas formas de abordar o passado devido os historiadores buscarem uma nova abordagem cultural da história.
Ao falar sobre a nova abordagem cultural da história deve-se lembrar que necessitamos da memória. Ela é o primeiro testemunho a que podemos recorrer. Nossas lembranças podem ser coletivas assim como a memória. Existem muitas memórias coletivas: a história é uma delas. Esta é uma das características pela qual se distingue a memória coletiva da memória histórica. A história é uma e pode-se dizer que só existe uma história. Não existe memória universal. O que se pode dizer é que toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado no tempo e no espaço. Falar sobre a memória coletiva deve-se observar a variedade de grupos um indivíduo faz parte, seja família, trabalho, etc., ele convive e espera uma resposta. Desse convívio, o indivíduo faz uma suplementarização ao coletivo e vice versa. Para que o coletivo exista há a necessidade de se ter um pouco do individual.
A história está sempre mudando, ou seja, no seu ponto de vista examina os grupos de fora e abrange um período longo. Enquanto que a memória coletiva, é o contrário, é o grupo visto de dentro e durante um período curto, não ultrapassando a duração média da vida humana. A memória de um grupo só pode existir e permanecer na medida em que estiver ligada a um corpo ou a um cérebro individual. O indivíduo participaria de dois tipos de memória: a individual e a coletiva. Essas duas memórias podem ser: uma pessoal, interna ou interior, autobiográfica; ou outra, social, exterior, histórica. Cabe ao indivíduo estabelecer um grau de integração no tecido das relações sociais. À medida que estabelece multiplicidade em suas relações cada um assume, cada vez mais, sua consciência de individualidade.
A memória é a expressão e representação do passado. O indivíduo inserido num contexto qualquer a utiliza para selecionar aspectos do passado e dar continuidade de tempo e resistir à alteridade como elemento de identidade, de percepção de si e dos outros. Com isso cria-se a história que será repassada através dos tempos. Uma explicação plausível a memória reflete a verdade do que aconteceu e a história espelha essa memória. Não existe uma sem a outra. As duas são, portanto, complexas. Apesar de a memória parecer individual, são os grupos que a mantém viva. Sua coletividade fortalece a história.
Se a memória coletiva fortalece a história por reconstruir o passado, a história se alimenta procurando salvar o passado e servir o presente e o futuro. Os historiadores além de se interessarem pela memória, como fonte histórica e como fenômeno histórico, elaboram uma crítica da reminiscência nos moldes dos documentos históricos e por outro lado se interessam no que se denomina "história social do lembrar". Diante deste aspecto os escritores buscam uma energia ativa para prosseguirem seu próprio trabalho e da escrita literária em geral.
Ao abordar a "história social do lembrar" volta-se o estudo para as relações estabelecidas entre releitura/reescritura e visada sincrônica da história literária mostrando com enfatiza Nietzsche: "o conhecimento do passado, em todos os tempos, só é desejável quando está a serviço do presente, quando ele desenraiza os germes fecundos do futuro".
O passado só interessa e é visto do ponto de vista do presente, onde está a vida, e o futuro inicia-se do presente. A visada sincrônica da história parte-se do passado em função do presente. É o resgate de um momento do passado transportado ao presente. Esta é uma característica da modernidade e uma postura adotada pela historiografia. Não se fala sobre toda a história geral, fala-se sobre um espaço de tempo dentro da história, com um olhar dentro da literatura.
Para os teóricos, os historicistas apresentam a imagem do passado e o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. O presente não é transição, ele pára no tempo e se imobiliza. O passado conhecido como de fato foi ao ser resgatado no presente, tem em si marcas do presente, pois ao resgatar o passado, provoca leituras e quando busca o passado, a literatura, se torna presente, passado e futuro elaborando releitura onde cada um terá a mesma visão.
Ao trazer o passado para o presente insere-se nele a modernidade e o conhecimento de mundo fazendo com que haja uma leitura o que ocasiona uma visão diferenciada do que realmente aconteceu nos fatos e, com isso, elabora-se a releitura.
Ao elaborar a leitura valorativa do passado os escritores-críticos modernos buscam nas obras a presentificidade da leitura, assumindo-a como releitura e requalificação do passado à luz dos valores do presente. E, com isso, o escritor, julga e seleciona um fazer. O escritor é ao mesmo tempo historiador e agente de sua própria linguagem. Ao escrever sua obra ele a transforma, a nega dando-lhe novo rumo, levando-o a obter papel de crítico. Ao selecionar e comentar autores do passado estabelece sua própria tradição situando a história e intervindo efetivamente, orientando e valorizando sua própria ação presente. Traz à tona o passado com uma práxis imediata e futura, fazendo com que os escritores-críticos procedam a uma releitura e uma reescritura da história literária.
Após todas estas leituras, entende-se que a ficção não é como um espelho que devolve a realidade refletida tal e qual, mas antes a inverte e depois nos leva para outro lugar. Este outro lugar se situa além da realidade de que partimos, ou seja, buscamos algo "além de" para encontrarmos as respostas aos anseios da vida e da morte, do ser e do nada. E, é, neste aspecto, o "além de" que desejo investigar e explorar. Quero entrar na ficção para ir além dela: na direção simultânea do seu princípio e do seu fim.




Bibliografia:

BURKE, P. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
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HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
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PERRONE-MOISÉS, Leyla. História, literária e julgamento de valor. In:---------. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TROUCHE, André. América: história e ficção. Niterói, RJ: EdUFF, 2006.