Esclarecimento:

 

Todas as crônicas que já escrevi foram um exercício solitário, ou seja, construções a duas mãos e uma cabeça apenas.

Este texto, pelo contrário, tem características únicas, desde a sua origem.

Em primeiro lugar porque foi escrito atendendo à solicitação de uma amiga, Jacyra Ignez Marão – a quem dedico esta obra – que ouviu tantas histórias da vida da minha avó que me incentivou a publicá-las.

Em segundo lugar, porque o texto foi publicado na internet e divulgado via e-mail em 23 de novembro de 2007, um dia após o aniversário da Jacyra e como parte da comemoração deste evento, ainda com erros de digitação, e acabou tendo uma repercussão inesperada.

Foram e-mails lembrando episódios que eu havia esquecido de mencionar, pedidos apontando a necessidade de suprimir alguns trechos ou mesmo substituir algumas palavras.

Um exemplo foi meu tio Ugo, que disse que o pai dele, meu nono Hugo Picchi, não havia sido “fichado”, mas sim “registrado” na delegacia de polícia (registro realizado no dia 25 de fevereiro de 1940, na Delegacia de Polícia de Jundiahy, sob nº 1.731) durante a época da II Guerra Mundial. Não acredito ser relevante a diferença entre “registro” e “ficha”, ainda mais que se refere ao famoso “modelo 19”, instrumento da ditadura getulista para ter acesso aos dados cadastrais dos estrangeiros no país, mas, todavia, não me custou nada realizar a substituição.

Outro exemplo foi um e-mail muito interessante, recebido de meu irmão, Luiz Henrique, o qual eu fiz questão de enxertar no texto, por se constituir quase que na narração completa e pessoal de um episódio.

Aproveitando a necessidade de corrigir o texto (o tio Ugo também me alertou para o fato de que Vasco Picchi morreu de pneumonia, e não de tuberculose), suprimir partes do mesmo e realizar enxertos, acabei lembrando-me eu mesmo de algumas passagens que haviam sido esquecidas e, desta maneira, ele ficou mais rico.

Como podem ver, diferentemente de tudo o que eu havia escrito anteriormente, tornou-se um texto interativo, escrito a várias mãos e como fruto da memória de várias cabeças.

Agradeço a colaboração de todos que me auxiliaram na correção e enriquecimento deste texto e, acima de tudo, agradeço a minha avó, a homenageada. Esteja ela onde estiver, gostaria que ela soubesse que se hoje me considero um ser humano  vitorioso, otimista, pró-ativo e assertivo, em grande parte devo a ela e ao seu exemplo de vida.

Muito obrigado! 

Introdução:

 

Minha avó foi uma grande contadora de histórias.

Como toda contadora de histórias, tinha seus recursos, que não se esgotavam nas modulações de voz, gestos e expressões fisionômicas.

Eloqüente, sabia como ninguém prender a atenção dos seus ouvintes, despertando aquela fagulha interior (uma mistura de emoção e curiosidade) que fazia com que todos esperassem atônitos, o final da história que ela contava.

Também é pertinente lembrar que, como toda contadora de histórias, ela acrescentava fartas doses de ficção (imaginação) aos seus relatos, para torna-los mais interessantes. Pecadilho menor, uma vez que sempre contava histórias da própria vida e, em assim sendo, tinha todo o direito de “exagerar” o quanto quisesse. Aliás, o exagero sempre foi uma marca registrada sua.

Ela dizia: “minha casa tem ratos que parecem gatos”.

Se alguém tinha uma casa grande, a sua era “enorme”. Mas, se pelo contrário, a pessoa tinha uma casa pequena a sua era "minúscula".

Se alguém gozava de boa saúde ela nunca havia estado doente um dia sequer da sua vida. Mas se, pelo contrário, a pessoa estava adoecida, ela estava à morte.

Se a amiga era rica, ela era milionária. Ao contrário, se era pobre, ela estava à míngua.

Quem a conheceu sabe que era uma pessoa única (alegre, otimista, produtiva e lúcida) e que, de fato, como se falava no cartaz do filme homônimo: “nunca houve uma mulher como Gilda”.

Procurarei contar as suas histórias numa seqüência mais ou menos cronológica, afinal, não podemos esquecer que sou professor de história...

 

Histórias da Infância

 

Vovó nasceu mais ou menos em 23 de dezembro de 1904, numa casa muito grande, de propriedade de seu pai, na Rua Barão de Jundiaí, centro da cidade de Jundiaí, próximo à atual catedral e ao lado da Paulicéia, que já funcionava naquela época.

Digo que nasceu “mais ou menos” em 23 de dezembro porque naquela época não era costume, como hoje, registrar as pessoas imediatamente após o nascimento. Além disso, ao que consta, o pai – que foi quem a registrou - estava no Rio de Janeiro.

Alguns dizem que ele estava lá a negócios, outros, que estava envolvido na jogatina ou com mulheres. Vovó sempre contava a segunda versão.

Não se sabe bem como, mas ela sempre contou que o “Juca” (José Sciamarelli, que viria a ser seu segundo marido), então um rapazola de uns 18 ou 19 anos, teria ajudado no parto. Minha bisavó estaria andando pela rua, passado mal e tendo sido levada para casa pelo Juca.

Não há como saber muito mais do que isto... Foi há mais de 100 anos!

O certo é que deram à minha avó o nome de Hermenegilda di Costanzo, mas, pelo resto da vida, ela sempre assinou e se auto-denominou apenas “Gilda”.

Seu pai chamava-se Miguel di Costanzo (certamente deveria ser “Michelle”) e sua mãe Maria Monti di Costanzo.

O pai viera ao Brasil primeiro, se estabelecendo como marceneiro (dono de uma marcenaria no bairro da Villa Arens). Segundo a vovó contava, seus pais casaram-se por procuração e, logo a seguir, vieram para o Brasil sua mãe e a irmã, a tia Fortunata, além da criada Alfonsina.

A cerimônia religiosa foi no Brasil e, certamente, os brasileiros que assistiram ao serviço devem ter se lembrado por muitos anos. Seguindo antigo costume, minha bisavó se casou com um vestido negro com a pala vermelha (preto e vermelho são as cores do brasão da família Monti) e com uma mantilha negra de seda, a qual ainda existe, na casa de minha mãe.

Anos mais tarde, minha tataravó, Tereza Angélica Gioffi Monti teria vindo ao Brasil. Ao que consta, não se adaptou, voltando à terra natal, a ilha de Íschia, onde morreu, aos 116 anos. Tenho foto de minha tataravó, segundo consta, com a idade de 100 anos.

O motivo, real ou imaginário, de sua não adaptação teria sido o palmito.

Explico: minha avó disse que ela ficou consternada ao saber que o palmito era extraído do tronco da palmeira e teria voltado à Itália vociferando que “não iria ficar nem mais um minuto num país onde se come tronco de árvore”.

Se é verdade ou não, não me compete julgar neste momento mas, certamente, esta fala (que a vovó fazia em italiano, com gestos abertos e expressão fisionômica de descontentamento) gerava muito riso em quem ouvia a história.

Vovó contava muitas histórias sobre a Ilha de Íschia e o grande terremoto que a arrasou. Sei, por exemplo, que meu bisavô só se salvou porque estava na praia comendo melancia.

Segundo ela contava, sua mãe era de condição social mais elevada do que o pai, sendo que sua família sobrevivia de explorar as termas, mas, com o grande terremoto, teriam perdido suas propriedades e posses e, desta maneira, teria sido aceitável o casamento com um homem de condição inferior. Além disto, para os parâmetros do final do século XIX, ela era já uma “solteirona” aos 25 anos, além de ser mais velha do que o seu pretendente.

Ao que consta, os Monti eram descendentes diretos do papa Júlio III, cardeal João Maria Gioffi del Monti, pela via de seu sobrinho Pedro (que alguns diziam ser seu filho) e que foi feito grão mestre da ordem de São João de Jerusalém (depois ordem de Malta).

Se é verdade ou lenda não tenho como apurar, o certo é que o papa Julio III, em todos os retratos que já tive chance de apreciar, tem a testa, os olhos e o nariz de minha avó, especialmente quando já idosa.

Já instalados no Brasil tiveram 5 filhos: a tia “Natina” (Fortunata Restituta di Costanzo Cocozza), Vicente, “Zeca” (Margarida Angélica), Rafael (que acabou morrendo no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha) e vovó. Destes 5 filhos conheci apenas a tia “Natina”, que morreu em 1977 de ataque cardíaco num cassino clandestino, quando estava perdendo uma fortuna no pôquer. Ao que consta, era a primeira vez que perdia no jogo!

Explico que grafei o nome da tia Natina por extenso pois, quando eu era criança e, por algum motivo me entristecia, vovó me  chamava a um canto e sussurrava ao meu ouvido, como se fosse contar um segredo:

- Você sabe o nome completo da tia Natina?

Ela então, ainda sussurrando e de forma cadenciada, falava o nome completo da irmã. Desnecessário dizer que a tristeza desaparecia, e eu me punha a gargalhar alegremente.

A tia Natina era muito rica, e sempre morou em São Paulo. Ao que me lembro era alegre – tinha uma risada sonora, que enchia a casa - e muito elegante, de uma elegância antiga e distinta: imensos seios “empinados” sobre a cinta, que a deixava com uma silhueta mais longilínea. Cabelos grisalhos, muito arrumados, roupas clássicas e bem cortadas.

Seu marido, “Lulu” Cocozza, havia trabalhado no escritório do Conde Matarazzo, bem como o primeiro marido de minha avó, que foi meu avô.

Acho estranho chamar de “avô” alguém que nem meu próprio pai conheceu muito bem, já que faleceu quando ele tinha 2 anos e meio, mas é mais uma convenção social.

Além da tia Natina, conheci também a viúva do tio Vicente, tia Virgínia, e sua filha Neide.

Bem, voltando à infância da vovó...

Nas primeiras décadas do século XX a vida urbana, e as cidades eram muito diferentes.

Havia um único “bico de luz” (luz elétrica) na casa, que ficava na sala de jantar. Não havia interruptor, mas apenas um aparato no próprio soquete. Os demais cômodos eram iluminados a gás ou a querosene.

O banheiro ficava no quintal, e a banheira tinha a água aquecida por uma serpentina que passava por dentro do fogão de lenha.

O imposto predial urbano era cobrado pelo número de janelas que a casa possuía, voltadas para a rua. Era este fato que explicava porque muitas casas tinham apenas portas voltadas para a rua, sendo comum que uma delas fosse cortada pela metade, para funcionar como janela. A casa do meu bisavô tinha 4 janelas voltadas para a rua e o solar do Barão de Jundiaí, que ainda está em pé e funciona como museu municipal, tem 10.

O assoalho das casas não era encerado, até porque não existia cera. Ele era lavado ou então apenas varrido.

Os colchões eram de palha (e, neste caso, eram postos ao sol e a palha revolvida diariamente) ou de algodão. O estrado das camas é que possuía molas. Os travesseiros eram de palha ou de plumas.

Empregadas não havia. Havia criadas, ou seja, moças que as famílias “pegavam para criar” e a quem se fornecia roupa, comida e instrução, em troca dos serviços domésticos. Como o leitor pode perceber, num país onde a escravidão havia sido abolida há muito pouco tempo, no âmbito institucional, ela continua a existir de fato, sutil e anônima, dentro das casas de muitas famílias.

Minha bisavó trouxera consigo a fiel Alfonsina, que minha avó “levou” (como se leva um móvel ou utensílio doméstico) quando se casou.

 

Casamento no sítio

 

No final de 1973 fiquei muito doente. Tinha fortes dores abdominais e não conseguia comer. Tinha dificuldade para andar, e até para falar. Os médicos disseram que era “adenite mesentérica”, mas, na realidade, penso que nem eles sabiam o que eu tinha.

Ouso dizer que minha doença foi a responsável por minha avó ter se tornado uma grande contadora de histórias pois, para me distrair das minhas dores agudas, ela fazia caras e bocas, contava histórias sem fim, da sua vida e da época que era jovem.

Deitado no sofá da sala, na casa da Rua Rangel Pestana - onde moramos com vovó de 1971 até 1974 – eu ouvi a história a seguir pela primeira vez.

Na década de 1910 a moda era usar vestidos leves, de tecidos vaporosos, ainda que continuassem longos. Usavam-se chapéus de abas muito largas e sapatos altos.

Minha bisavó e as filhas foram convidadas para um casamento no sítio e, sob todos os pontos de vista, acabaram se surpreendendo.

Inicialmente, houve a questão dos vestidos.

Preciso dizer que, por anos pensamos que minha bisavó fosse analfabeta. De fato, só descobrimos que ela não era porque achamos seu livro de receitas (que está comigo até hoje), com caligrafia primorosa e até desenhos coloridos a lápis, todo em italiano. Na verdade, o problema é que ela não dominava bem o português.

Isto explica os dois fatos que aconteceram a seguir.

Minha bisavó, mãe zelosa, queria que as filhas estivessem bem vestidas e, para tanto, procurou uma costureira. A profissional lhe perguntou se os vestidos seriam feitos de filó fino ou de filó grosso.

Grosso em italiano tem uma conotação de firme, forte e, em assim sendo ela avaliou que seria um filó de melhor qualidade.

Não houve tempo para prova dos vestidos, os quais foram pegos na costureira, embrulhados em papel manteiga, no dia do casamento.

Na verdade, naquela época, o filó grosso era aquele usado para fazer cortinas.

Aconteceu o primeiro contratempo, quando elas abriram os pacotes e descobriram que os vestidos haviam sido feitos com tecido de cortina.

Minha bisavó ficou desesperada, e tentou consertar o estrago com alguns laços e fitas, que cobrissem o máximo possível os vestidos.

Improvisaram-se xales e echarpes e lá foram elas, vestindo a última moda... Em cortinas!

Bem, o segundo contratempo foi o transporte.

O fazendeiro que as convidou para o casamento ficou de mandar um carro para apanhá-las.

Carro em italiano se refere a uma carruagem e o pouco português que minha bisavó aprendera, um português informal do dia a dia, a fazia crer que se tratava de um automóvel.

Bem, foram elas descendo a Rua da Padroeira até a Rua Quinze de novembro e, quando chegaram à esquina onde o carro as estava esperando, viram que se tratava de um carro de boi.

Neste momento os vestidos de cortina até foram relevados, e todas as quatro recostaram-se sobre cobertores, atrás de um carro de bois!

 

A época do colégio

 

Quando as filhas chegaram à idade de estudar, meu bisavô dividiu a casa original em 4: duas na rua Barão de Jundiaí e duas, na parte do fundo do terreno, do outro lado do quarteirão, na Rua Rangel Pestana. Tendo feito isto, alugou as 4 casas e se mudou com toda a família para São Paulo.

As duas casas da Rua Rangel Pestana minha avó conservou por toda a vida. Vovó contava que estas 2 casas, construídas na década de 1910, foram as primeiras em Jundiaí a ter banheiro dentro e luz elétrica em quase todos os cômodos.

Minha avó foi estudar nos colégios São Vicente e São José, onde foi colega de classe de Dona Rosa de Lucca, mãe do doutor Rubens de Lucca, que foi amigo de meu pai por toda a vida.

Um colégio religioso, dirigido por freiras, nas primeiras décadas do século XX, tinha lá as suas peculiaridades, como por exemplo, o fato de que as meninas deveriam tomar banho vestidas, com uma espécie de camisolão.

Este fato sempre instigou a curiosidade natural de minha avó que, quando adolescente, se escondeu com algumas amigas no banheiro das freiras, para observarem se elas mesmas tomavam banho vestidas. Acabaram descobrindo, na prática, que ali no colégio se aplicava o dito “façam o que eu digo, não façam o que eu faço”.

Também na adolescência, munida de um leque de plumas de “melindrosa” (que eu cheguei a conhecer), ela fugiu do colégio algumas vezes, durante a noite, para ir ao Teatro Municipal ou a alguns bailes. Contava ela que enchia a cama com almofadas e travesseiros sob as cobertas para, desta forma, parecer que continuava dormindo.

Não sei até que idade minha avó estudou. O que sei é que acabou se tornando professora de pintura no colégio.

Sei também que há muitas fotos suas, nesta época, com vestido curto de cintura alta, banda sobre a testa e sapatos de saltos altos com tornozeleira.

Sempre alegre e informal, ela fotografou as freiras, as amigas e o pátio do colégio.

 

O quadro

 

Conheci 3 quadros de minha avó, todos muito grandes (1,20 por 1,00 mais ou menos): uma espécie de “dama das camélias”, o “sagrado coração de Jesus” e o “sagrado coração de Maria”.

O primeiro está comigo até hoje, restaurado. Assinado “Gilda Di Costanzo, 1929”, ele aparece ao fundo em todas as fotografias do primeiro casamento de minha avó.

Desde criança me encantei por este quadro, que pendia sobre o sofá, na casa da Rangel Pestana. Foi este “o quadro”, ou seja, a obra que me impulsionou a me tornar artista plástico.

Os dois outros se perderam, pois ficaram guardados numa casa que vendemos em 1997 e acabaram por ser roídos por cupins e traças.

 

Namoradeira

 

Embora Gilda fosse muito bonita de rosto, ao passar dos 20 anos de idade passara também dos 100 kg de peso.

Dizia que “quem não se enfeita, por si mesmo se enjeita”, e “o que falta em beleza, sobra em entusiasmo”. Com certeza referia-se a si própria, pois sempre gostou de andar arrumada – até em excesso – e sempre teve muita “joye de vivre”.

Pessoa de bem consigo mesma e com a vida, otimista e sempre alegre, tinha um nível de auto-estima muito alto, de maneira que não lhe faltavam pretendentes.

Vovó sempre contava que tinha 3 namorados: quando estava em Jundiaí – onde seus pais sempre mantiveram uma das casas desocupada – namorava com o Juca, em São Paulo com o Cappellano (Salvador Graciano Cappellano, contador no escritório do conde Matarazzo e amigo do “Lulu” Cocozza, marido da tia Natina) ou com um italiano velho, muito rico, que a mãe havia arranjado para ela.

Seu pai, o velho “Miguelão”, como todos o conheciam, era bastante liberal e, dentre as várias coisas que meu pai afirmava que o avô dizia estavam: “a economia é a base da porcaria” e “as igrejas são para os pobres e os ignorantes”, de maneira que era pouco afeito à moral e aos “bons costumes”. Deixava a filha preferida namorar à vontade!

Aproximando-se dos 25 anos, o Cappellano lhe deu um ultimato, juntamente a um belo anel de 3 brilhantes, que ela usou muito ao longo da vida. Disse que o italiano era muito velho para ela e que o Juca era um sitiante, que não lhe proporcionaria uma vida emocionante.

Como “contra a força dos fatos não há argumentos” e como também ela adorou o anel de 3 diamantes que ele lhe deu, aceitou se tornar Gilda Cappellano, o que aconteceu em 16 de fevereiro de 1930.

Olhando as fotos do casamento e da festa, impossível não notar suas damas de honra. Para que o leitor tenha uma idéia do que eu estou querendo dizer, contarei que, anos atrás, scaneando a foto da vovó cercada pelas damas de honra, dei ao arquivo salvo o nome de “Bordello”.

Ela, bem gorda em seu vestido curto de cetim, seus sapatos de saltos altos, e com sua grinalda meio de lado, como uma casquete, parece uma dona de boudoir, rodeada pelas suas “meninas”.

Ia esquecendo de contar...Após vovó ter aceito o pedido do Cappellano, este se viu na obrigação de apresentar sua família e a primeiro membro da família a vir visitar os Di Costanzo foi o velho Carmino, pai do Cappellano.

Dado o caráter “alpinista social” - para usarmos um termo moderno – do Cappellano, que era um homem sofisticado, culto e falava vários idiomas, todos esperavam que o seu pai fosse um senhor sofisticado, ou distinto...

Toda a família nas suas melhores roupas, disfarçaram uma cadeira quebrada com algumas almofadas – esperando assim inibir que o visitante se sentasse na mesma – enceraram casa (nesta época já existia cera) e ficaram todos fazendo “cara de paisagem”, para esperar o ilustre visitante.

Por volta das onze horas chegou um italiano velho, com uma peça de presunto cru e uma peça de muzarela numa cesta coberta com um pano de cozinha xadrez de vermelho e branco.

Passado o susto inicial, em se verificando que o velho viera sozinho e não falava português, convidaram-no para entrar.

Ao entrar, ele logo se encantou pela cadeira quebrada e, antes que alguém pudesse falar alguma coisa, ele se sentou nela.

Caiu ao chão, a cesta voou para um lado, a peça de presunto para outro e a muzarela foi para baixo da mesa.

Após verificarem que o velho não havia se machucado, todos se puseram a gargalhar e, como percebeu-se que ele era bem humorado, foi bem recebido na família.

O velho Carmino (meu pai se chamava Walter Carmine em homenagem ao velho) morreu na década de 1940, bem como sua filha Carmen. Dos outros 14 filhos (eram 16 filhos no total) sei apenas alguns nomes e sobre a velha Maria Spera Cappellano, avó paterna do meu pai e que morreu ao final da década de 1950, sei apenas um episódio, envolvendo meu pai.

Já um “mocinho” de uns 12 anos, meu pai desfilava com o Colégio Arquidiocesano, todo empertigado em seu uniforme, o qual era quase uma farda. Era costume na época que os meninos marchassem, como se estivessem no quartel, sem olhar para os lados.

Desafortunadamente, o desfile passou próximo à casa da velha Maria, exatamente num momento em que estava chovendo. A velha, que acompanhava o desfile da janela, compadeceu-se do neto e saiu correndo pela rua, acompanhando-o e segurando um guarda-chuva!

Meu pai, que era um homem muito tímido e excessivamente formal, ficou tão envergonhado que poucas vezes foi visitar a avó depois do ocorrido.

 

 

 

Peculiaridades

 

O Cappellano era viúvo de Lina Stamato, uma linda professorinha.

Ao que consta, se converteu ao espiritismo após a morte desta, o que explica porque meu pai - que nasceu em 10 de março de 1933 - só tenha sido batizado após a morte do Cappellano, em 1935.

Na casa da minha avó, recém casada, não eram incomuns aparições ou incorporações, tanto que ela sempre contava de uma empregada que se pôs nua em frente ao Cappellano, em sendo possuída por um espírito.

Espiritistas e ocultistas, muito na moda naquela época, freqüentavam a sua casa e, por toda a vida vovó se acostumou a consultar mesinhas, pêndulos e copos, sempre que precisava tomar uma decisão importante.

Logo que minha avó se casou, o Juca, profundamente magoado, casou-se também. Sua esposa era a professora Cacilda Copelli que morreu muito pouco tempo depois, juntamente com o filho do casal, no momento do parto.

O Juca, por sinal, acabou indo bígamo para a eternidade, pois estão no mesmo túmulo, ele mesmo, minha avó, meu pai, Cacilda e o filho do Juca!

Existem lindas fotos da época em que minha avó viveu com o Cappellano, começando pela lua de mel, que foi no Rio de Janeiro (onde assistiram a um show de Dercy Gonçalves, no Cassino da Urca) e terminando em raras imagens do centro antigo de São Paulo, que bem passaria por uma capital européia.

Há também fotos de meu pai bebê ou fantasiado para o carnaval.

Do Cappellano pouco sabemos, além do fato de que era um pai excessivamente amoroso e devotado, que fazia questão de dar banho ele mesmo no pequerrucho e que, para tanto, lacrava até as frestas de todas as janelas e portas da casa.

Chegou ao exagero de comprar um aparelhinho (que eu conheci e que ainda deve estar guardado na casa da minha mãe) que media a temperatura e a pureza do leite. Se parece muito com estes aparelhinhos que existem hoje, nos postos de combustíveis, que medem a qualidade do álcool e da gasolina.

Foi por esta época que morreu a fiel Alfonsina, já perto dos 90 anos. Ela havia trocado as fraldas da minha bisavó, da minha avó e do meu pai. Em reconhecimento, minha avó construiu para ela um túmulo no cemitério do Araçá.

Sem a velha Alfonsina, vovó foi “levando”, uma por uma, as “crias” da casa da sua mãe: Beatriz (a famosa “Biá”), Batistinha e Antoninha (que eram irmãs).

Conta a lenda que Beatriz foi levada muito pequena à casa de minha bisavó e que era tão magricela e tão feia que acabou sendo apelidada de “espécime raro”.

Já na casa da minha avó, Biá chegou a ser matriculada na escola, mas, como repetiu 3 vezes a primeira série, vovó desistiu e ela só foi ser alfabetizada na época do MOBRAL, décadas depois.

A principal ocupação da Biá era pajear o meu pai, que demorou mais de dois anos para aprender a falar. Quando alio este fato a ele ter passado quase 20 anos praticamente sem sair de casa, recluso num porão transformado em quarto de ferramentas, chego a conjecturas que ele talvez tivesse traços de autismo.

Como saber? Não se falava em autismo naquela época.

 

1935

 

 

Este ano marcou profundamente a vida da minha avó, e por vários motivos.

No intervalo de pouco mais de 1 mês e meio morreram o Cappellano, sua mãe e a “Zeca”. Todos os três na sua casa!

Minha bisavó, bem mais velha do que o marido, havia separado a roupa com a qual queria ser enterrada, mas, como teve azar de morrer numa noite de tempestade em que faltou energia elétrica, foi enterrada com o que minha avó conseguiu achar na ocasião.

É claro que, além da falta de energia, havia outro motivo também. A velha havia separado uma roupa belíssima, e de excelente qualidade, para o seu enterro. Era uma saia preta plissada, de um tecido brilhante e furta-cor, que vovó tomou para si e usou muito, com casaquinhos ou blusas de seda. Durou até a década de 1990!

Quanto ao Cappellano, ela deve ter chorado muito – pelo menos em público - e até colocou luto. O conde Matarazzo pagou o enterro e lhe deu uma quantia considerável, para garantir o futuro do meu pai. Ela, muito prática, matriculou o menino imediatamente no colégio “Príncipe de Nápoles”, afinal, a década de 1930 foi a da “Escola Nova” e uma pessoa moderna como minha avó certamente acreditava muito na educação infantil.

Quando ele estava com sete anos ela o transferiu para o Colégio Arquideocesano, na Rua Domingos de Moraes, bem em frente à sua casa, de onde ele só saiu aos 19 anos. O “Wáte” (Walter) iria ter a melhor educação que estivesse ao seu alcance.

Ela nos contava que usou luto por 5 anos. Acreditamos nisso apenas se julgarmos que um vestido todo bordado de canutilhos, formando cachos de uva e folhas de parreira for luto. Ela teve vestidos pretos, bolsas pretas, chapéus pretos e sapatos pretos cada vez mais bonitos, principalmente depois que reatou com o Juca – a esta altura já bem rico, dono de bairros inteiros em Jundiaí - que acabou sendo padrinho de batismo do meu pai.

Aliás, o leitor há de convir que o preto lhe caía muito bem, especialmente pelo fato de diminuir drasticamente a sua silhueta!

Neste ano ela tirou carta de motorista e sempre garantiu que foi uma das primeiras mulheres de São Paulo a fazê-lo, talvez a segunda. Ela contava que os homens, inconformados e incomodados, jogavam cascas de banana, melancia e outras frutas dentro do seu carro, além de lhe mandarem retomar a condução do tanque e do fogão.

Também se tornou empresária, montando uma pequena confecção, onde fabricava lingeries no porão de sua casa, com a ajuda de algumas auxiliares. Precisamos esclarecer que, na época, moças de boa reputação fariam seus lingeries em casa, logo, já sabemos a qual clientela a vovó atendia.

Ela conta que, certa vez, recebeu um material muito bom, todo bordado, da ilha da madeira, mas que as montadoras se enganaram, e montaram metade da frente de todas as combinações no avesso. Ela não teve dúvidas: mandou os viajantes e ambulantes, todos seus amigos, espalharem que esta era a última moda vinda de Paris. Não houve sequer uma peça sobrando no estoque!

Com o dinheiro da pequena fábrica, começou a construir algumas vilinhas, ou seja, fileirinhas de casas (há fotos de 2 ou 3 destas vilas) reaproveitando material de construção usado. Ela sempre esteve à frente do seu tempo!

Para evitar falatório – afinal, estava viúva – levou o velho “Miguelão”, agora viúvo, e a tia Fortunata para morar consigo. Aproveitou e fez a tia Fortunata fazer um testamento, tornando meu pai seu único herdeiro. Nada mais justo, não é mesmo?

Anos mais tarde, ela tentou fazer com que o Juca adotasse meu pai, mas este recusou. Não se pode culpar a vovó por tentar.

 

A Guerra

 

Ao contrário da família da minha mãe, que sofreu muito com a II Guerra Mundial – já que o nono Hugo Picchi era italiano e precisou até mesmo ser registrado na polícia – minha avó teve apenas alguns pequenos contratempos com o conflito.

Em Jundiaí, onde meu nono Hugo e minha nona Ignez Taddei Picchi moravam com os sete filhos (Ugo, Ignez, José, Antonio Carlos, João, Maria Lenita e Ana Maria) houve escassez de vários produtos, até mesmo de trigo (que era importado).

Em São Paulo, pelo contrário, o gasogênio foi adotado para substituir a gasolina e vovó passou a especular com a compra e venda de moedas estrangeiras, especialmente o dólar. Conta ela que chegou sim a juntar um funesto capital, mas que se perdeu todo ao final, razão pela qual sempre nos desaconselhou a compra de moedas estrangeiras.

Aliás, uma característica marcante em minha avó sempre foi o nacionalismo e o ufanismo. Ao contrário de outras avós de origem italiana, ela nunca quis ser chamada de nona, nunca falou bem da Itália e sempre disse que “se lá fosse bom, os italianos não teriam vindo todos para cá”.

É na época da guerra que a história dos meus pais começa a se cruzar.

O Juca residia em um sítio, o famoso Bela Vista, na estrada de Itatiba. Para chegar até lá era necessário passar pela Rua Marechal Deodoro, antiga Rua da Boiada.

Nesta rua, no número 530 havia um açougue chamado Minerva, onde vovó ocasionalmente parava para comprar carne, a caminho do sítio, onde sempre passava as férias com o filho pequeno, Walter.

Vovó descia do carro e, lá de dentro do açougue, todos observavam o menino excessivamente tímido e calado, que ficava brincando de “dirigir”, com as mãos no volante.

Sobre os Picchi, o que eu sei é que haviam sido muito ricos no passado. Meu bisnono Daniel havia mesmo patrocinado por várias vezes a festa de San Giusto, padroeiro de Porcari, sua cidade natal, na Toscana (como comprova um impresso em seda, guardado a sete chaves pelas minhas tias).

Fizeram inúmeras viagens e dividiram a vida entre a Itália (uma imensa casa de 3 andares, da qual possuo algumas fotografias) e o Brasil (uma casa relativamente modesta na Vila Arens), de maneira que alguns filhos haviam nascido na Itália (como meu nono) e outros no Brasil.

Lembro-me agora do infeliz destino do tio Vasco.

Filho mais novo do bisnono Daniel e da bisnona Elisa, ele foi deixado em Porcari com uns primos, até que tivesse idade para viajar. Quando veio ao Brasil, aos 18 anos, contraiu pneumonia e morreu. Era um rapaz muito lindo, louro e de olhos azuis esverdeados, e está hoje enterrado no mesmo túmulo que o restante da sua família.

Com o final da Guerra, em 1945, minha mãe estava com 9 anos e meu pai com 12. Viram-se de relance algumas vezes, mas a vovó o deixava sempre dentro do carro quando ia ao açougue.

 

Hora de casar de novo

 

Quando meu pai completou 17 anos, minha avó comunicou ao Juca que havia decidido que deveriam se casar. O “Wáte” estava com 17 anos, quase adulto, já compreendia muito bem “as coisas” e “estava ficando feio”...

Casaram-se no cartório da Bela Vista em 1950 e vovó adotou o nome que usaria pelo resto da vida, e que está na sua lápide: Gilda Sciamarelli.

Allan Sciamarelli foi meu colega de escola e eu não conseguia entender como ele podia ser sobrinho de minha avó (a chamava de “tia Gilda”) e não ser meu primo.

Meus pais demoraram anos para me fazer entender que minha avó tivera 2 maridos e, portanto, se unira a 2 famílias completas, com sobrinhos inclusive.

Casando-se com o Juca, ela passou a dividir o tempo entre sua casa em São Paulo, o sítio Bela Vista, a casa no centro de Jundiaí e o apartamento em Santos.

Após o casamento, vovó deixara a Biá em São Paulo para cuidar do meu pai e do Rubens de Lucca, que passaram a morar juntos, depois de terem ficado internos no colégio por alguns anos. Ela se ocupava muito com as atividades do sítio, o serviço voluntário no SOS e outras atividades de senhoras da sociedade daquela época (como o carteado), de maneira que precisou fechar a sua pequena fábrica de lingeries e vendeu as suas casinhas.

O Juca só tomava água Prata (água mineral, da cidade de Águas da Prata), mas vovó adorava “burlar” a sua mania. Certa vez, o doutor Rubens de Lucca, passando temporada em Santos com meu pai, flagrou minha avó abastecendo uma garrafa de água prata na torneira da pia da cozinha e ele, muito bem humorado, disse:

-“Puxa vida, Gilda! Sabia que você é rica, mas nunca pensei que fosse tanto! Conseguiu encanar água mineral de Águas da Prata até Santos!”

A esta altura devo explicar esta informalidade toda, ou seja, um jovem de uns 17 anos chama-la pelo primeiro nome. A vida toda percebi que, por menos que ela se incomodasse em ser chamada “dona” ou “senhora” pelas mulheres, fazia questão absoluta de ser tratada de “você” pelos homens, especialmente quando eram jovens e bonitos.

Lembro-me perfeitamente quando eu lhe apresentei ao meu primeiro namorado, Carlos Augusto, depois de termos passado a noite no quarto de hóspedes em sua casa e ela disse, após tê-lo examinado dos pés à cabeça:

-“Todos os meus amigos me chamam de Gilda!”

Ela já tinha bem mais de 80 anos, mas, como ela mesma dizia:

-“É meu filho...O difícil é que a vontade continua a mesma, mas o corpo já não ajuda mais!”

Quando completei 18 anos ela me deu as chaves da casa e carta-branca para usar o seu carro, um corcel marrom conhaque, dizendo que sempre que eu quisesse trazer algum “amiguinho”, que eu não quisesse ou não pudesse levar em casa dos meus pais, poderia dormir com ele na casa dela, já que mantinha os lençóis sempre limpos.

Deu-me uma série de conselhos também, os quais não poderiam ser transcritos aqui.

Ela adorava pregar peças em suas visitas.

Assim é que apresentava o seu famoso pudim de sangue de porco como se fosse pudim de chocolate, moia todas as sobras que tinha na geladeira e transformava em bolinhos variados e até mesmo serviu um frango que esquecera de eviscerar como se fosse frango recheado!

Estes “feitos” merecem uma explicação mais detalhada.

Quanto aos bolinhos “especiais”, foram feitos quando um determinado gerente de banco apareceu de surpresa para almoçar no sítio. Era quase hora do almoço e não havia nada mais sofisticado para servir. Vovó não teve dúvidas: moeu todas as sobras que encontrou na geladeira na máquina de moer carne e transformou em bolinhos.

O problema é que o visitante gostou tanto dos bolinhos que trouxe a esposa, na semana seguinte, para que minha avó a ensinasse a fazê-los!

Quanto ao frango, aconteceu num determinado final de semana em que havia, como de costume, umas 30 ou 50 pessoas para almoçar, e vovó e suas 5 “auxiliares” montaram uma produção em escala industrial: a primeira depenava o frango, a segunda tirava os pés e a cabeça, a terceira eviscerava, a quarta temperava e a quinta colocava para assar na manteiga.

Alguém “comeu bola” no meio do caminho e um dos frangos foi assado na manteiga sem eviscerar.

Vovó não teve dúvidas; para que as visitas não ficassem com nojo de comê-lo disse que era frango recheado.

Há dezenas de fotografias onde ela está sempre descontraída, sorrindo ou gargalhando, brincando com as pessoas. A moda dos anos 50 ajudava, com os poás, o azul petróleo, os tailleurs bem cortados e os óculos “gatinha”.

Até mesmo em atividades corriqueiras, como alimentar as galinhas, ela está sempre sorrindo e, quando aparece numa fotografia com o Juca, estão sempre abraçados.

Anos depois ela passou a falar muito mal dele, dizendo que bebia e que não cuidava do diabetes, que perdia dinheiro no jogo... Demorou para eu perceber que ela nunca se conformou ao fato do Juca ter morrido e tê-la deixado só. Foram 26 anos de convivência: 15 de “namoro” e 11 de casamento. Além disso, não podemos nos esquecer que ele a acompanhou desde o nascimento.

A maior parte do tempo, porém, ela se lembrava do Juca e do sítio com nostalgia e saudade. Dizia que ele era um “companheirão” e que sempre estava disposto a realizar seus desejos e viverem aventuras juntos, nem que fosse para descerem para Santos de madrugada.

Eu percebia que por mais que tentasse falar bem do primeiro marido – afinal, era o pai do “Wáte”, e ela se sentia na obrigação de enaltecer a sua memória diante do filho – os olhos dela brilhavam quando ela falava do Juca, e se enchiam de água quando se lembrava do “seu” sítio (o qual foi vendido, para pagar dívidas, no ano em que meus pais se casaram).

Sem sombra de dúvida, no sítio Bela Vista minha avó passou os melhores anos de sua vida, entretida em organizar almoços e jantares sem fim e até pick nicks, para os quais ela levava várias mesas para o bosque, e colocava toalhas de banquete adamascadas, porcelana inglesa e talheres de prata sob o arvoredo. Era um universo ao mesmo tempo surreal e idílico, do qual restam apenas fotografias em branco e preto, coladas em seus álbuns com capa de couro de crocodilo.

Nesta época, perdida entre os anos 50 e 60, ela parecia até mais bonita, porque o seu sorriso exalava felicidade e bem estar.

 

Noivado do “Wáte”

 

Em meados da década de 1950 morreram a tia Fortunata e o velho “Miguelão”.

O velho morreu no sítio e deveria ser época das férias, porque meu pai acompanhou o último dia de vida do avô, saudável e lúcido, aos 92 anos.

Ao que consta, acordou pela manhã, tomou banho e cortou o cabelo (seu Israel, administrador do sítio o ajudava nesta tarefa), foi até o centro da cidade, distribuindo balas a todas as crianças que encontrava pelo caminho (para conseguir parar de fumar, o médico o aconselhou a chupar balas e ele andava com os bolsos cheios delas), voltou para o sítio, sentou-se na cadeira de balanço e morreu.

Com a morte da tia Fortunata e do velho “Miguelão” minha avó começou a pensar em ter alguns netos, para não ter uma velhice solitária.

Decidiu que meu pai e o Rubens não deveriam mais morar juntos e que o “Wáte” deveria arranjar uma namorada.

Meu pai passava sempre as férias no sítio, nem sempre com o Rubens, desta forma, era mais fácil que acabasse conhecendo e se relacionando com garotas de Jundiaí.

Acabou ficando noivo de uma moça chamada Terezinha, que desejava que ele deixasse de estudar e montasse um estacionamento para vender carros usados. Minha avó não gostou nada desta história, pois desejava mais do que tudo que seu filho se formasse na faculdade.

Elaborou um plano e o colocou em execução.

Chegou à casa dos pais da Terezinha aparentando estar muito nervosa, chorando e soluçando muito. Disse a eles que estava arruinada e que o Juca havia perdido tudo o que eles tinham no jogo...

O plano dela funcionou, pois na mesma semana, sem o menor pudor, os pais da Terezinha romperam o noivado da filha com o meu pai.

 

 

 

Walter e Ignez

 

Foi nas férias de dezembro, no reveillon de 1955 que meus pais se conheceram, no Clube Jundiaiense. Minha mãe estava com os irmãos e meu pai estava com amigos.

Ela estava com um vestido tomara-que-caia de saia godê guarda-chuva, verde e com babados e ele de terno de linho branco.

No início minha avó não gostou muito da idéia, pois almejava para o filho um casamento opulento, com a filha de algum magnata, não a filha de um açougueiro!

Afinal, ela conhecia bem o ditado que “o homem só tem duas chances na vida, quando nasce e quando casa”.

Na realidade ela até já escolhera a “pretendente” ideal, uma tal Lizete, que era filha de uma amiga. Minha avó fazia a moça passar temporadas no sítio e até ensinou-a a dirigir. Tudo em vão, pois meu pai não tinha o menor interesse por ela.

Minha avó começou a se acostumar – e até aprovar – o casamento entre os meus pais quando deu por si que minha mãe era professora, recém-formada (turma de 1955) e que poderia ajudá-la no seu intento de fazer meu pai entrar na faculdade.

Assim que saiu da casa da minha avó em São Paulo, o Rubens conseguiu entrar na faculdade de medicina, mas meu pai, ao contrário, ficou cinco anos prestando vestibulares e nada...

Havia “consenso” entre minha avó e minha mãe, pois ambas desejavam a entrada de meu pai na faculdade, o que de fato aconteceu em 1958.

Meu pai passou a cursar engenharia e minha avó passou a apoiar o seu namoro com minha mãe.

Nesta época desenvolveu-se uma relação muito especial, de carinho e admiração, da irmã mais nova da minha mãe, tia Ana Maria, na época com cinco anos de idade, para com meu pai, a quem ela sempre chamou de “Tatão”, e minha avó. Ela acompanhava minha mãe todos os finais de semana ao sítio e, por este motivo, acabou adquirindo vários dos hábitos da minha avó e até, ousaria dizer, se tornando parecida com ela em vários aspectos.

Entre idas e vindas, altos e baixos, daquela época em diante minha mãe e minha avó desenvolveram um relacionamento que foi muito mais o de mãe e filha do que o de sogra e nora. Brigavam entre si, ficavam de mal e sem falar uma com a outra, faziam birra e cara feia, mas se respeitavam.

Tanto minha mãe não admitia que ninguém falasse o que quer que fosse da sua sogra, quanto vovó também a defendia publicamente e onde quer que fosse.

Depois de um longo namoro, meus pais casaram-se na matriz (hoje catedral) de Jundiaí em 7 de fevereiro de 1960. A festa, como não podia deixar de ser, foi no sítio Bela Vista, o qual já estava vendido na ocasião.

O Juca, muito doente (morreu no ano seguinte), não compareceu ao casamento.Tanto os Taddei quanto os Picchi compareceram vestindo preto, pois estavam de luto pela morte de minha bisnona Clementina, mãe da nona Ignez.

Por falar na bisnona Clementina, me lembrei que ela chegou a ir visitar o sítio de minha avó e que, não se sabe bem por quê, acabou sentando no encosto do banco do automóvel ao invés do assento.

Minha mãe diz que é porque minha avó, que a conduzia pelo braço, conversava com várias outras pessoas ao mesmo tempo e dizia “sobe dona Clementina”...continuava a falar, sem prestar muita atenção ao fato de que a velhinha já havia subido e falava de novo “sobe dona Clementina”...então ela subiu, o mais que pôde!

Há muitas fotografias e inclusive um álbum completo do casamento dos meus pais. O bolo ficou bem em frente ao quadro Sagrado Coração de Jesus, que minha avó pintara 30 anos antes.

Soube pela boca da tia Ana, que então estava com dez anos de idade, que ela se escondeu no quarto onde estavam armazenados os doces do casamento, e que comeu boa quantidade deles antes da festa.

 

 

 

A espera dos netos

 

Após a festa, meus pais foram passar a lua de mel em Águas de Lindóia. Não podiam ir muito longe porque o carro estava velho (por sinal, acabou quebrando na estrada, e eles só chegaram lá à noite) e porque ele tinha aulas na faculdade que não poderia perder.

Ficaram hospedados no hotel Tamoyo e temos até hoje a nota do hotel e a discriminação dos telefonemas que ambos fizeram, para as respectivas mães, durante os 3 dias.

Meu pai se formou em 1963 e teve uma formatura glamourosa no Teatro Municipal de São Paulo, com direito a baile de gala e tudo. A moda do tubinho curto, imposta por Jacqueline Kennedy, estava em alta e minha mãe foi de tubinho decotado de brocado, sendo o scarpin alto coberto com o mesmo tecido. Não faltou nem a tiara.

Na mesa estavam, além do casal, a tia Natina, a vovó, dona Cida e seu Jorge Mattos.

Por esta época, dada a falta de netos, a vovó decidiu casar a Biá, o “espécime raro”. Foi difícil achar quem quisesse casar com ela e, meio por imposição, casou-a com um antigo empregado do sítio, o Pedro Cavallaro.

Vovó lhes deu uma pequena casa, próxima à CICA, e confeccionou ela mesma o vestido de noiva.

Em 1963, mesmo ano da formatura, ela terminou a reforma da casa da rua Rangel Pestana 249 e colocou a Biá e o Pedro morando na casa ao lado, pois acabaram tendo uma filha, Ana Rosa, que a vovó apelidou de “Pituca” e sempre chamou de neta, para fazer ciúmes aos meus pais.

Nos anos seguintes ela se encarregaria da instrução da “Pituca” (fez até secretariado no Colégio Rosa), das suas roupas e até algumas viagens.

Não me lembro bem a razão, mas sei que acabaram brigando nos anos 80 e vovó chegou mesmo a ir até em terreiro de umbanda, para fazer trabalho para que eles saíssem da casa ao lado, que continuava sendo sua.

Bem, eu nasci em 29 de dezembro de 1965, primeiro neto em ambas as famílias. Minha avó até colocou peruca acaju (que a deixou parecida com a Aracy de Almeida) para tirar fotografia comigo ao colo.

 

A vovozona

 

Acredito que seja difícil uma avó tão “babona” para com os netos como foi a minha.

Somos cinco irmãos, e nascemos num intervalo de apenas 3 anos e 10 meses, o que faz com que sejamos todos quase da mesma idade.

Após o nosso nascimento desapareceram os pesadelos da velhice solitária e ela pode enfim se dedicar aos passeios e às viagens.

Nas décadas de 1970 e 1980 percorreu o Brasil quase por inteiro, de leste a oeste e de norte a sul, geralmente em excursões da empresa São João de Turismo. Se orgulhava muito de não viajar ao exterior, pois dizia que o nosso país além de ser o melhor do mundo, e um dos maiores, é subaproveitado pelos turistas brasileiros. Sempre dizia que julgava ser um absurdo amigas suas que conheciam grande parte da Europa, mas não conheciam o sul ou o nordeste do Brasil.

Desde que me lembro vovó nos levava passear de carro; pegava a nora e os cinco netos e nos levava a Itatiba, a Campinas (onde íamos passear no bosque, no aeroporto de Viracopos, ou então ver a máquina de costura gigante que existia em frente à fábrica da Singer), à Várzea Paulista ou à Campo Limpo e, para passar o tempo nos ensinava musiquinhas como:

“Soltaram gás, soltaram gás, acho que foi a turma de trás...

Soltaram feio, soltaram feio, acho que foi a turma do meio...

Soltaram quente, soltaram quente, acho que foi a turma da frente...”

Fez questão de nos levar várias vezes para o litoral. Em Bertioga, onde alugava uma casa de pescador, metade de alvenaria e metade de madeira, ficávamos à vontade e passávamos dias muito alegres.

É interessante lembrar que íamos em dois carros: meu pai e minha mãe desciam com as meninas, e minha avó descia com os meninos.

Mais ou menos na metade da Rodovia Anchieta, numa determinada curva, ela sempre parava para urinar. Era bastante cômico, ver uma senhora de quase 80 anos sentada no estribo da porta do passageiro de um corcel com a saia levantada, pedir a um dos netos que abrisse seu xale e o segurasse como se fosse uma cortina, para não chamar a atenção dos passantes.

Até hoje, todas as vezes que passo pela Rodovia Anchieta me lembro da minha avó e, muitas vezes, chego a chorar de saudades. Era uma época muito divertida e inocente.

Sobre os passeios a Bertioga, tenho a acrescentar que após a primeira publicação deste texto, em 23 de novembro de 2007, recebi o e-mail a seguir:

----- Original Message -----
From:Luiz Henrique Cappellano
To:Luiz Carlos Cappellano
Sent: Saturday, November 24, 2007 11:53 AM
Subject: Re: Divulgando meu novo texto

Car,

Muito bom! Não consegui parar de ler até o final.

Lembro que em uma das vezes em que fomos a Bertioga, na volta para Jundiaí, voltei com a Vó em seu Corcel marrom. Eu na frente e a Pituca e a televisão P&B no banco de trás.

A Vó, com seus 80 anos, "sentou a bota" e a caravana se desfez.

Conclusão (Lembra-se das histórias de sua avó: uma das técnicas era essa. A breve pausa e esta palavra "conclusão". Todos em volta estáticos, quase sem respirar, esperando o desfecho).

Chegamos a Jundiaí algumas horas antes. Eu preocupado e a Vó dizia "O Wáte sabe o caminho para a casa dele."

O pai, a mãe você e as irmãs na Caravan, em um domingo na época em que os postos não abriam no fim de semana e não existiam celulares, procurando a velha!

Por falar no corcel da vovó, me lembrei de duas passagens interessantes.

A primeira delas ocorreu em meados dos anos 80, eu já era um adulto jovem (para os padrões atuais, que “esticam” a adolescência indefinidamente, eu ainda seria considerado um adolescente) e estava muito frio.

Eu andava pela Rua Rangel Pestana, com gorro na cabeça, cachecol e mãos nos bolsos, bem distraído. De repente escuto o barulho estridente de uma buzina e, ao olhar para o lado, vi uma cena surreal:

 

Dentro do corcel estavam a dona Vitória – uma amiga espanhola da minha avó – toda encapotada, no banco do passageiro e, ao lado dela, dirigindo o carro, estava a vovó com um cachecol, ou talvez fosse um xale, amarrado embaixo da cabeça e com a peruca por cima!

 

Vovó cobrira a cabeça com o cachecol (ou xale), o amarrara sob a cabeça para impedir a entrada do vento e, coroando tudo isso, colocara a peruca por cima.

 

Ambas as velhas acenavam alegremente para mim e eu retribui os acenos.

 

O segundo episódio acabou sendo triste para ela, que já estava com 84 anos.

 

O Dr. Rubens de Lucca, que era o responsável pelo exame médico periódico para renovação da Carteira Nacional de Habilitação, entrou em casa aos berros, comunicando aos meus pais que não mais renovaria a carteira “da Gilda”.

 

Minha mãe perguntou o por que e ele então respondeu que seria uma irresponsabilidade da parte dele, pois havia poucos minutos ela quase o atropelara na Rua Barão de Jundiaí.

 

Comíamos na sua casa praticamente todos os domingos e ela se orgulhava de que sempre havia pelo menos 7 pratos diferentes. Os que eu mais gostava (e que eram mais freqüentes) eram a lula, o macarrão com camarão ou macarrão com vôngoli, a chicória recheada, os frios (legumes cortados no sentido do cumprimento e fritos no azeite com especiarias e que se deixa descansar no vinagrete), o peixe a dore, a salada de tainha, o repolho recheado, a torta de chicória, o polpetone, a torta de ricota e o sorvete veneziano.

 

Sobre a lula, me lembro que ela gostava tanto que, por mais que ela comprasse, limpasse e preparasse lulas, nunca havia muito à mesa. Invariavelmente, ela dizia:

 

-“Não sei o que aconteceu com essa lula... Não rendeu nada! Limpei5 kgde lula!”

 

Todos os natais havia pratos tradicionais: cepolas ou tchepolas (que são uma espécie de bolinho napolitano, feito com aliche e massa de pão), macarrão com nozes, e os doces que eram emersos no mel, doce de vinho, strufulli e pasteizinhos de nozes. Havia também alguns pequenos rituais, como a procissão do menino Jesus e o jogo das avelãs.

 

A primeira vez que fomos ao Rio de Janeiro, numa excursão da São João de Turismo, foi ela quem nos levou, em 1977. Aliás, ela adorava o Rio de Janeiro e deve ter visitado a “cidade maravilhosa” pelo menos umas 10 vezes.

 

Nas viagens, minha avó fazia sempre novos amigos, no geral mais novos do que ela. Estes amigos passavam a freqüentar sua casa, que estava sempre cheia.

 

As principais amigas eram as suas companheiras de carteado, dona Magita (que era uma argentina “trambiqueira”, que certa vez tentou vender para a vovó uma fábrica de rolhas), dona Vitória (que já foi citada) e dona Luci (que morou com a vovó por alguns meses, quando se separou do marido porque ele queria fazer sexo, de uma maneira não convencional, com ela).

 

Era comum que elas passassem as tardes de calor na edícula que havia no quintal, só de combinação, jogando baralho.

 

Quando tocava a campainha era um tal de xale para cá, vestido para lá e cada uma se cobria o melhor que podia. Pareciam um bando de adolescentes.

 

Como jogavam pôquer a dinheiro, era comum que as velhinhas de Jundiaí, ao morrer, estivessem devendo dinheiro para minha avó.

 

Uma das que eu sei que morreu devendo foi dona Jaqueline, uma grande amiga da vovó, que era francesa e morava no mesmo prédio onde hoje mora a minha mãe.

 

Dona Magita pegou algum dinheiro emprestado e “sumiu” de Jundiaí. Anos depois, já pesquisando esculturaem São Paulo, eu a vi na varanda do hotel Hilton, próximo à Praça da República.

 

Fiz menção de cumprimentá-la, mas ela entrou rapidamente no Hotel. Nunca mais a vi.

 

 

 

O Gaetano

 

 

 

O Dr. Gaetano Gennari foi, por muitos anos, médico de minha avó. Na verdade, ele só deixou de ser seu médico porque faleceu, muitos anos antes do que ela.

 

Ele era um senhor muito bem humorado, até “piadista”, e acabou se tornando amigo da vovó.

 

Para que pagar consulta, se ela podia convidá-lo para almoçar? Vejam bem, o que tem de mal uma senhora idosa convidar o seu médico para almoçar, fazer todos os seus pratos preferidos e, após o almoço, pedir algumas orientações profissionais?

 

Não há nada de errado, não é mesmo? Pois é.

 

Dois episódios envolvendo o doutor Gaetano são particularmente hilários.

 

No final da década de 1970, vovó ainda usava óculos “gatinha”, com aro de metal.

 

Todos sabem que, para proteger atrás das orelhas, esses óculos são dotados de uma espécie de terminal de plástico, que cobre a ponta das hastes.

 

Bem, certo dia a vovó começou a perceber que havia ferimentos atrás de uma de suas orelhas e, como a sogra morrera de câncer na face, ficou muito apreensiva.

 

Tratou de convidar o doutor Gaetano e caprichou no cardápio...

 

Após o almoço, como quem não quer nada, lhe mostrou as orelhas:

 

-“Olha Gaetano...Será que eu estou com câncer?”

 

-“Hiii Gilda...Parece que está mesmo! Você tem pouco tempo de vida!”

 

Ela não esperou nem a comida esfriar.

 

Correu para o corcel dela e foi até a nossa casa.

 

Escutávamos que ela estava chegando há quilômetros de distância, pois ela vinha com o carro engatado em segunda marcha e usava o afogador como “pendurador” de bolsa.

 

Sem fazer muita cerimônia ela deixou o carro ligado, no meio da rua, entrou em casa e me pediu para estacionar para ela. Os motoristas que estavam esperando já estavam fazendo um “buzinaço” em frente de nossa casa.

 

Enquanto eu estacionei o carro, ela entrou e se deitou na cama dos meus pais, com a bolsa sobre a barriga.

 

Começou a chorar, despediu-se de todos e disse que tinha pouco tempo de vida, pois o Gaetano havia lhe dito.

 

Minha mãe telefonou para o doutor Gaetano, que se colocou a gargalhar do outro lado do telefone...

 

Após alguns acenos de cabeça, minha mãe pegou nas mãos o óculos da vovó e mostrou para o meu pai a origem do seu câncer: uma das hastes de metal estava a descoberto, pois o protetor de plástico estava gasto.

 

Outra vez, ela foi visitar uma amiga, chamada Dona Páscoa, que estava com “angina pectoris”.

 

Ela gostou do nome, tão sonoro...

 

Adorou também a embalagem do remédio que Dona Páscoa estava tomando: uma embalagem plástica, na forma de um disco voador amarelo. Que coisa linda!

 

Ouviu com cuidado e atenção a descrição de todos os sintomas da Dona Páscoa e fez um almoço para o doutor Gaetano.

 

Durante o almoço lhe falou da dor no peito que estava sentindo e coisa e tal... Perguntou se não estaria com “angina puelvectoris”.

 

Ele segurou o riso e lhe prescreveu carvão ativado, que foi colocado numa embalagem igualzinha a do remédio da Dona Páscoa. Ela tinha dor no peito devido aos gases!

 

 

 

Últimos anos

 

 

 

Após ter perdido a Carteira Nacional de Habilitação vovó foi ficando entristecida, embora ainda saísse de carro ocasionalmente, sempre à noite.

 

Ela achava que não ficaria nada bem uma senhora de mais de 80 anos ser pega pela polícia por dirigir sem habilitação e, por isso, só dirigia após a meia noite, quando as ruas estão mais desertas.

 

Meu pai desenvolveu câncer em 1987 e acabou falecendo em 1992.

 

No dia do enterro, a vovó colocou a famosa saia preta (aquela, que sua mãe separara para o próprio enterro), um xale preto que fora também de sua mãe e colocou-se ao lado do caixão.

 

Vez ou outra, quando a “platéia” estava mais atenta, ela abria os braços enquanto segurava o xale (o que dava a aparência de asas de morcego abertas) e utilizava algumas frases de efeito, em português erudito, como:

 

-        “Jesus! Por que fizeste isto comigo? Por que tiraste meu único filho?”

 

-        “Waltinho ...Waltinho ...Mamãe não quer mais ficar sobre a face da terra sem você! Mamãe não quer viver nem mais um dia sem você! Venha...Venha ainda hoje buscar a mamãe!”

 

Quando ninguém estava olhando, ao contrário, me chamou meio de lado e disse:

 

-        “Luiz Carlos...Essa gente toda vai ter fome, vai precisar comer ...Escuta... Vai lá na minha casa e fala com a Janete. Pegue um caldeirão bem grande e faça uns 2 kgs de macarrão. Faça também um molho bem grosso, com carne moída.”

 

Assim era a minha avó. Uma pessoa otimista e afirmativa, que sabia transformar os limões que a vida lhe dava em limonada e que tratava de viver sempre o presente, com vistas ao futuro. Jamais me esquecerei do seu exemplo de vida.

 

Pouco após a morte do meu pai, minha mãe a levou para morar consigo e lá viveu ainda 6 anos.

 

Ela morreu às 9 horas da manhã do dia 1º de novembro de 1998, entre o dia das bruxas e o dia de finados, pois, como disse minha mãe:

 

-        “Ela morreu hoje porque queria a casa cheia! O cemitério lotado!”

 

Mamãe tratou de enterrá-la no mesmo dia.

 

Aliás, no dia anterior eu havia me fantasiado de bruxa, numa festa de  Halloween promovida pela Roselene dos Anjos (a qual, devido ao brilho da festa, promovemos a Roselene dos Arcanjos) e, como vovó morreu ás 9 horas, fui pego desprevenido. Minha mãe me chamou de lado e disse:

 

-        “Filho...Tem delineador nos seus olhos...Dá uma esfregadinha, que vai parecer olheiras. Pega bem!”

 

Assim eu fiz.

 

Lá do outro lado, tenho certeza, a vovó deveria estar dizendo:

 

- “Tá vendo...Ela pensou que eu ia dar trabalho! Qual nada! Não dei trabalho nenhum...Não fiquei doente...Até já tinha tomado banho. Morri limpinha!”