Novos conceitos de urbano e rural: a uma nova idéia de ruralidade

Moacir da Cruz Rocha * (UNAMA)

INTRODUÇÃO

As concepções do desenvolvimento rural foram sendo modificadas na medida em que se passou a perceber com maior clareza a complexidade e diversidade da realidade e se evidenciam as restrições e possibilidades do alcance de suas explicações. As sociedades rurais apresentaram mudanças estruturais, devidas em boa parte ao modelo de desenvolvimento global.

Estas mudanças fazem com que tenhamos que rever e analisar o rural de forma diferente e, nesta medida, questionar as concepções tradicionais tanto do urbano quanto do rural.

O desenvolvimento rural é entendido hoje, em um sentido amplo, como

um processo de melhora do nível do bem-estar da população rural e da contribuição que o meio rural faz de forma mais geral ao bem-estar da população em seu conjunto, seja urbana ou rural, com sua base de recursos naturais.[1]

Por sua vez, o meio rural é um conjunto de regiões ou zonas (território) cuja população desenvolve diversas atividades ou se desempenha em distintos sectores, como a agricultura, o artesanato, as indústrias pequenas e médias, o comércio, os serviços, o gado, a pesca, a mineração, a extração de recursos naturais e o turismo, entre outros.

Em tais regiões ou zonas há assentamento que se relacionam entre si e com o exterior, e nos quais interagem uma série de instituições, públicas e privadas.

O rural transcende o agropecuário, e mantém elos fortes de intercâmbio  com o urbano, na provisão não só de alimentos mas também de grande bens e serviços, entre os quais vale a pena destacar a oferta e cuidado de recursos naturais, os espaços para o descanso, e os contribuições à manutenção e desenvolvimento da cultura.

A CONTRAPOSIÇÃO URBANO/RURAL: UMA NOVA IDÉIA DE RURALIDADE

A idéia de progresso surgida no século XVIII da economia clássica, associava a passagem do mundo rural ao urbano com o caminho da civilização moderna e o reconhecimento de que a humanidade avança do passado ao futuro melhorando. Em outras palavras, passando do atrasado ao moderno, do rural ao urbano, do agrícola ao industrial.

Esta idéia de progresso baseada no século XIX tem como base revolução industrial. Busca dar ênfase nos setores mais produtivos, ou seja, os industriais, apoiando o crescimento destes setores e deixando descansar ali a absorção do emprego e, portanto, a transformação estrutural.

Isto conduziria a uma diminuição do peso e do emprego agrícola no PIB e no emprego total, como resultado das diferenças da produtividade entre a agricultura e a indústria.

Sob esta concepção de progresso econômico, ocorreria a transformação estrutural do rural para o urbano, do agrícola ao industrial, e por fim do atrasado ao moderno. Segundo esta colocação, o rural se ajusta passivamente e em função de fatores exógenos.

No plano produtivo o comportamento agrícola é residual, e depende das demandas industriais e urbanas. O endógeno no sistema é a urbanização e a industrialização; e o resultado, a modernização tanto em temos técnicos como no sistema de idéias e valores.

Se for concebido o rural como o local, autárquico, fechado, com pautas sócio-econômicas e valores próprios, uma estrutura social a partir da propriedade da terra entendida como a territorialização do agrícola, teria como resultado o fato de que o progresso é a absorção do rural, os ajustes são exógenos e passivos, o agrícola tem um comportamento residual.

Porém, esta velha visão do rural já não pode ser mais sustentada[2]. Não se trata de apagar a suposta linha divisória entre o rural e o urbano, nem de sua equivalência ao atrasado e o moderno.

É necessário visualizar um esquema de desenvolvimento e de mudança da sociedade em um sentido diferente. É mais pertinente tratar de ver a estreita interdependência do mundo rural com o resto da economia e com o meio urbano em particular.

As relações econômicas se estabelecem através de fluxos comerciais de bens agrários e manufaturados, fluxos financeiros e de recursos naturais e humanos. Nas áreas urbanas se decide, através das forças do mercado, a destinação dos recursos do meio rural, tanto os naturais para o ócio e turismo entre outros usos, como os humanos, gerando movimentos migratórios para onde se concentram os empregos.

É por isso que as zonas rurais, ainda as mais recônditas, têm uma forte interdependência com os centros urbanos mais próximos, com as grandes cidades e, hoje, na era da globalização, com negócios urbanos remotos.

Esta situação levou a alguns autores a expor como absurda a existência de uma política setorial para a economia rural uma vez que está integrada nas políticas econômicas gerais.

Esta visão prepondera de maneira especial nos membros da União Européia, onde o impacto da política agrícola tem efeitos diversos, por fatores como a redução de barreiras tarifárias e a intensificação da interdependência internacional[3].

Vários autores europeus expõem a necessidade de um novo enfoque para resolver os problemas que afligem ao meio rural, em especial sua inter-relação com o urbano, destacando seu papel na contribuição ao bem-estar para o conjunto da sociedade e modificando a visão de uma importância secundária no alicerce geral da economia.

Nos países em via de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, vem sendo impulsionada também uma revalorização do rural, tratando de superar a dicotomia entre setor agropecuário e rural, e o papel marginal que se atribui ao setor rural no desenvolvimento.

É necessário romper o estreito paradigma econômico no qual foi situado o papel do setor rural, e passá-lo ao contexto da política e as instituições.

Reconhece-se também em vários países que o manejo da velha concepção de o rural como o atrasado e a ênfase colocada nos processos de industrialização, geraram nestes países crises de magnitudes imprevisíveis, com o aumento da pobreza, o desemprego, a geração ou agudização de conflitos por terra, e processos de lutas internas com características de guerra[4].

O ordenamento do território, a integração nacional, o restabelecimento de condições de convivência no campo, o fortalecimento da democracia participativa, o capital social e político, devem ser o fundamento de uma estratégia humana de desenvolvimento que tome como eixo o setor rural.

Só assim o desenvolvimento rural poderá melhorar o nível de bem-estar da população rural e contribuir ao bem estar da população em geral, seja esta urbana ou rural.

            O meio rural experimentou mudanças muito importantes nos últimos quarenta anos, nos distintos continentes e com efeitos muito diversos por região e por país. Mas pode-se falar em termos gerais de três grandes mudanças[5]:

a) Demográficas: como resultado do êxodo maciço nos anos sessenta e é setenta, tanto na Europa como na América, e o fenômeno da "contra-urba-nização" em alguns países europeus nos anos setenta.

b) Econômicos: que se originam pela queda da agricultura e, em alguns países, pela nova visão que o mundo urbano tem do meio rural, dando lugar a uma maior diversificação.

c) Institucionais: devido à descentralização política que pretende dar poder ao local e o regional, obviamente com desenvolvimentos desiguais nos diferentes países.

Como principais causa destas mudanças pode-se destacar, entre outras, a queda da agricultura e a intensa urbanização. Em relação ao primeiro fator, é indubitável que em vastas regiões do mundo, o rural apresentou uma diminuição drástica tanto na população empregada como na participação no PIB nacional.

Tudo isso devido ao modelo de industrialização que conduziu à aceleração dos processos de urbanização e o desenvolvimento tecnológico, poupador de mão de obra mediante capital mecânico e poupador de terra mediante o uso de capital químico e biológico.

As aglomerações econômicas que caracterizam ao modelo de industrialização dos países comunitários europeus nas primeiras décadas do desenvolvimento geraram uma intensa urbanização e um despovoamento maciço de grandes áreas rurais.

Este modelo foi seguido em países latino-americanos. Como exemplo temos Peru, México, Colômbia e Brasil, onde as capitais concentram boa parte da população.

Atualmente, estão sendo desenvolvidas estratégias que modifiquem este processo. Porém, na Europa o setor rural segue perdendo população devido a fatores como esgotamento dos solos, mudanças nas políticas agrícolas, concentração urbana de atividades econômicas, possibilidades de coletividade e acesso a serviços, etc.[6].

As regiões periféricas e montanhosas seguem conservando parte da população rural, mas são as que têm menor potencialidade econômica pelo grau de afastamento e a disseminação da população.

O mundo rural se encontra diante de uma difícil conjunção de problemas que se manifestam na perplexidade com que confrontam o futuro os agentes sociais que participação de sua gestão.

NOVA CONCEPÇÃO DO RURAL

Como foi dito, a nova visão do rural não vai do atrasado ao moderno, do rural ao urbano, do agrícola ao industrial.

Há uma grande quantidade de características que mostram a multi-direcionalidade do processo, sobre as quais há múltiplos evidências, em diferentes países, com distintos graus de desenvolvimento[7].

Vale a pena destacar a perda relativa da significação econômica e social dos setores primário e secundário, e a evidente terciarização do rural. Esta evidência é mais clara na Europa pela complexidade das atividades agrícolas e as tendências à concentração e a especialização. Na América Latina, essa tendência aumenta, e, sobretudo é uma meta posta pelo novo modelo de desenvolvimento.

É claro então que o rural já não é equivalente ao agrícola, e ao mesmo tempo que a chamada terceira revolução agrícola implica que o agrícola não seja exclusivamente a produção primária.

Tudo isto conduz a uma modificação da atividade produtiva, em especial do ponto de vista das exigências da população empregada.

A agricultura compreenderá uma ampla série de usos da terra, que vai desde produções agrícolas de uso não alimentar até a manutenção do meio ambiente.

Por outro lado se acentua a especialização territorial em função da existência de vantagens competitivas, e se acrescenta a dependência da atividade agrícola das empresas industriais e de distribuição.

Outro fator importante é que as comunidades rurais, como se entendiam antes, estão sendo escavadas e debilitadas em suas solidariedades coletivas. Tudo isso devido a fatores de desintegração territorial e de desintegração social.

Fenômenos como os deslocamentos forçados por problemas de violência ou fenômenos naturais, em vários países latino-americanos, são uma amostra deste fenômeno.

Embora em muitas regiões persistam os conflitos pela falta de eqüidade na distribuição e acesso à terra, também é claro que o novo modelo vai impondo formas diferentes de acesso, conferindo um maior papel ao capital no crescimento agrícola e à incorporação da propriedade financeira ou industrial nas áreas rurais e nas atividades agropecuárias.

Certamente se apresentará, como de fato já está ocorrendo, uma mudança importante nas demandas coletivas do rural, que vão além da tensão pela propriedade. A população reclama agora serviços básicos e mecanismos de participação, por exemplo.

Outro elemento importante é a acentuação dos desequilíbrios territoriais, e uma maior importância política destes desequilíbrios. Isto ocorre de diferentes maneiras no interior de cada país.

Este conjunto de fatos implica a necessidade de recompor ou elaborar uma visão que permita por fim esclarecer que o rural não é exclusivamente o agrícola, nem o atrasado, nem a só expressão da produção primária.

Acolheríamos então a seguinte definição: o meio rural é entendido como

o conjunto de regiões ou zonas com atividades diversas (agricultura, indústrias pequenas e médias, comércio, serviços) e nas quais se assentam povos, aldeias, pequenas cidades e centros regionais, espaços naturais e cultivados.

Além das atividades citadas, estão também o gado, a pesca, a mineração, a extração de recursos naturais e o turismo.

O meio rural é então uma entidade socioeconômica em um espaço geográfico com quatro componentes básicos:

• Um território que funciona como fonte de recursos naturais e matérias primas, receptor de resíduos e suporte de atividades econômicas.

• Uma população que, com base em um certo modelo cultural, pratica atividades muito diversas de produção, consumo e relação social, formando um ripado socioeconômico complexo.

• Um conjunto de assentamentos que se relacionam entre si e com o exterior mediante o intercâmbio de pessoas, mercadorias e informação, através de canais de relação.

• Um conjunto de instituições públicas e privadas que articulam o funcionamento do sistema, operando dentro de um marco jurídico determinado[8].

 

CONCLUSÕES

As novas demandas sociais põem nas mãos dos habitantes das zonas rurais a possibilidade de conduzir seu futuro por um caminho inédito, mas possível.

Enquanto estas funções constituem a oportunidade para superar a crise e encontrar uma nova posição na distribuição de papéis na sociedade, a provocação se esforça em superar a rejeição de uma grande parte da população rural a abandonar ou modificar suas atividades históricas.

Paralelamente, a população urbana deve entender que tem que modificar suas pautas de consumo aceitando pagar adequadamente certos serviços que lhe fornece o mundo rural.

Para compreender o novo modelo de relações entre o mundo rural e o mundo urbano, é necessário redefinir os papéis de cada um destes âmbitos chegando a formular um novo "contrato social" entre eles.

Mediante este contrato, a sociedade moderna deve reconhecer e assumir a necessária interdependência das áreas rurais e urbanas; definir explicitamente o decisivo papel do mundo rural e dota-lo de instrumentos adequados de desenvolvimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALSADI, O. V. Mudanças no meio rural e desafios para o desenvolvimento sustentável. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 15, n.1, p.155-165, 2001.

CAIADO, Aurílio Sérgio Costa; SANTOS, Sarah Maria Monteiro dos. Fim da dicotomia rural-urbano? Um olhar sobre os processos socioespaciais. São Paulo Perspec. ,  São Paulo,  v. 17,  n. 3-4, 2003 .  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392003000300012&lng=en&nrm=iso>

COSTABEBER, J. A.; CAPORAL, F. R. Possibilidades e alternativas do desenvolvimento sustentável. In: Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural Sustentável no Mercosul. Org. Hugo Vela, Santa Maria: UFSM, p.157-194, 2003.

GRAZIANO DA SILVA, J.F. O novo rural brasileiro. Campinas: Unicamp - Instituto de Economia, 1999. (Coleção Pesquisa, 1)



* Engenheiro Agrônomo formado pela Universidade Federal Rural da Amazônia, administrador formado pela Universidade da Amazônia, Especialista em Gestão da Informação no Agronegócio (UFJF), Mestrando em Economia (UNAMA). E-mail: [email protected]

¹ FRACAIADO, Aurílio Sérgio Costa; SANTOS, Sarah Maria Monteiro dos. Fim da dicotomia rural-urbano? Um olhar sobre os processos socioespaciais. São Paulo Perspec. ,  São Paulo,  v. 17,  n. 3-4, 2003 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392003000300012&lng=en&nrm=iso>

[2] GRAZIANO DA SILVA, J.F. O novo rural brasileiro. Campinas: Unicamp - Instituto de Economia, 1999. (Coleção Pesquisa, 1)

[3] BALSADI, O. V. Mudanças no meio rural e desafios para o desenvolvimento sustentável. Revista São

Paulo em Perspectiva, v. 15, n.1, p.155-165, 2001.

[4] COSTABEBER, J. A.; CAPORAL, F. R. Possibilidades e alternativas do desenvolvimento

sustentável. In: Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural Sustentável no Mercosul. Org. Hugo

Vela, Santa Maria: UFSM, p.157-194, 2003.

[5] GRAZIANO DA SILVA, J.F. O novo rural brasileiro. Campinas: Unicamp - Instituto de Economia, 1999. (Coleção Pesquisa, 1)

[6] COSTABEBER, J. A.; CAPORAL, F. R. Possibilidades e alternativas do desenvolvimento

sustentável. In: Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural Sustentável no Mercosul. Org. Hugo

Vela, Santa Maria: UFSM, p.157-194, 2003.

[7] GRAZIANO DA SILVA, J.F. O novo rural brasileiro. Campinas: Unicamp - Instituto de Economia, 1999. (Coleção Pesquisa, 1)

[8] CAIADO, Aurílio Sérgio Costa; SANTOS, Sarah Maria Monteiro dos. Fim da dicotomia rural-urbano? Um olhar sobre os processos socioespaciais. São Paulo Perspec. ,  São Paulo,  v. 17,  n. 3-4, 2003 .  Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392003000300012&lng=en&nrm=iso>