Notas introdutórias sobre a devolução de adotandos

 ANA BEATRIZ ARAÚJO PORTELA

Cumpre introduzir a discussão sobre a (im) possibilidade de desistência da adoção que dá tom à presente pesquisa. Isto porque a adoção, uma vez consolidada, em regra, torna-se irrevogável, haja vista o vínculo jurídico de filiação civil que se estabelece entre adotante e adotado, na qual este assume a condição de filho para todos os efeitos, de modo que é vedada qualquer designação discriminatória quanto à origem da filiação, conforme dispõe o art. 227, §6º, da CF/88 (BRASIL, 1988).

Portanto, Fonseca (2012, p. 148) explica que se “desfaz, se anula ou se retira a eficácia ou efeito de ato anteriormente praticado, pela revogação, licitamente permitida”, a qual cessará toda eficácia ou força jurídica do ato. Ocorre, todavia, que a adoção, uma vez perfectibilizada, não comporta arrependimento, logo não pode ser revogada, ratificando que, por meio dessa, “se atribui a condição de filho ao adotando, para todos os efeitos e para todo o sempre”.

A adoção é irrevogável porque o instituto em si não é compatível com o inverso, posto que a adoção não tem por finalidade dar um filho a quem não pode ter. Visa, em verdade, possibilitar à criança e ao adolescente o direito de possuir uma família, garantindo-lhe o convívio familiar e a proteção integral, os quais, como visto, são princípios que regem a própria adoção. Deste modo, aceitar a revogação da adoção consistiria em permitir a violação aos direitos humanos do adotado, e “o ‘duplo abandono’, o que certamente se configuraria em mais uma violência psicológica quanto à pessoa do adotado, inclusive com sequelas irreversíveis” (LORENSI; SZANIAWSKI, 2015, p. 285).

Todavia, a irrevogabilidade da adoção é um ponto polêmico e que precisa de certa atenção.  Pois nem sempre é possível coadunar a lei com a realidade, pois, às vezes, a revogação da adoção “fundamenta-se na necessidade de se resolver uma questão que se mostra insustentável, expondo a criança ou adolescente a riscos emocionais, psicológicos e do ponto de vista do próprio direito”. Entretanto, a revogação da adoção deve ser excepcionalíssima, bem como deve ser sempre resolvida de acordo com a técnica de ponderação de interesses, “segundo os princípios do melhor interesse da criança, da proteção integral, respeito, liberdade (art. 15 do ECA) e da dignidade da pessoa humana, direitos indisponíveis, na qualidade de pessoas em desenvolvimento que são” (CABRAL; ANDRADE, 2011, p. [?]).

Em vista disso, para não haver choque com princípios norteadores do Estatuto da Criança e do Adolescente, entre eles o Princípio do Melhor Interesse da Criança e o da Proteção Integral é que, se for o caso, adoção deve ser revogada. Assim aduz Fonseca (2012, p. 149) “devemos fazer prevalecer os direitos de crianças e adolescentes, ou sujeito de direitos civis, protegendo-os e até revogando a adoção, com devido processo judicial, se for o caso”.  O referido autor baseia-se no fato de que se “a adoção configura uma filiação civil, com todos os atributos do poder familiar, sendo que este pode ser extinto na forma do art. 1.638 do CC/02, não vemos como considerar a adoção definitivamente irrevogável”. Logo, os adotantes também respondem em sede de destituitória do poder familiar, e adoção pode ser revogada por ato judicial (sentença).

Nesse sentido, Presot (2012, p. [?]) afirma que não se está diante de caso de revogabilidade da adoção. Em verdade, trata-se de “perda do exercício dos direitos decorrentes do poder familiar pela quebra dos deveres, como ocorre na filiação natural, permanecendo todos os efeitos patrimoniais, herança e alimentos”. Corroborando com tal entendimento, Digiácomo (2013, p.194) aduz que ocorrendo “grave violação do direito dos filhos por parte dos seus pais adotivos, estes tenham decretada a perda do poder familiar que exercem em relação àqueles, tal qual ocorre com os pais biológicos”.

Farias e Rosenvald (2010, p. 935) também sustentam que, em regra, não poderá a adoção ser revogada, pois “o desligamento do vínculo estabelecido pela adoção somente poderá ocorrer pela regular destituição do poder familiar, nos casos previstos em lei, respeitando o devido processo legal”. Todavia, não existem regras absolutas que nunca possam ser excepcionadas, e a regra da irrevogabilidade da adoção é uma delas. Assim, em casos concretos, justificado em juízo e ouvido o Ministério Público, será possível o cancelamento da adoção e eventual reestabelecimento do poder familiar com a intenção de resguardar os interesses existenciais (jamais patrimoniais) e a dignidade do adotando. Os autores trazem como exemplo um caso julgado[1] pela Corte de Justiça mineira que autorizou o cancelamento da adoção para evitar uma relação incestuosa entre o adotado e sua irmã, filha biológica dos adotantes, levando em consideração que o casal já, inclusive, possuía filhos.

Ademais, ainda surge outra polêmica no âmbito da devolução de crianças e adolescentes adotados, quando a mencionada devolução ocorrer antes da sentença que perfectibiliza a adoção, haja vista que segundo o art. 47, ECA, “o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão”. Assim, em tese, nada obsta que os pais desistam da ação de adoção, mesmo já estando com a guarda provisória da criança.

Todavia, para que se verse sobre a possibilidade de devolução ainda no estágio de convivência, ou seja, antes da sentença transitada em julgado que defere a adoção, é necessário entender qual a natureza jurídica desse estágio de convivência. Costa (2009, p. [?]) assevera que o estágio de convivência não é um direito instituído em favor dos adotantes, de tal forma a legitimar devoluções injustificadas de adotando nesse período, causando, de forma voluntária e/ou negligente, incalculável prejuízo emocional, social e material ao adotando. Em matéria de adoção, sempre deve ser levado em consideração a proteção dos direitos e garantias da criança e adolescente

Nessa vertente, a Relatora Hilda Teixeira Costa, em julgamento de Ação Civil Pública (nº 10481120002896002) proposta pelo MP, aduz que embora os pais detivessem apenas a guarda provisória, não há que se falar em “direito de devolução”, vez que se trata de uma criança que possui direitos fundamentais a serem resguardados.

Diante disso, em casos de devolução injustificada, a criança ou adolescente, por serem pessoas ainda em desenvolvimento, sofrem dano irreparáveis. Assim, quando os adotantes extrapolam os limites da boa-fé, abusando dos direitos, podem dar azo à reparação civil, instituto que se passa a estudar no próximo capítulo.



[1] (TJ/MG, ApCiv. 1.0056.06.132269-1/001 (1) – comarca de Barbacena, rel. Des. Nepomuceno Silva, j.6.12.07, DJMG 9.1.08)