NOTAS INTODUTÓRIAS AO PENSAMENTO POLÍTICO DE PLATÃO: O "bem falar" do Rei Filósofo versus o "falar bem" da Democracia (ou do melhor Regime Político em face da Epistemologia Platônica).


SUMÁRIO:
1. A palavra; 2. O discurso e a teoria das Formas; 3. Democracia e discursos ilusórios; 4. Sobre as técnicas; 5. A Política como técnica; 6. O Rei Filósofo; 7. Bibliografia.


1. A
Palavra

O campo da Política pode ser definido como o embate entre a força do conflito e a busca da união. A constante tensão gerada entre estes opostos é o que impulsiona a evolução dos homens na comunidade política, sendo a palavra o motor utilizado para equalizar os conflitos e dirigir as pessoas para um determinado fim. É ela que permite a racionalização que conterá os impulsos, reprimindo os extremos. Assim, faz-se necessário uma breve alusão em relação ao discurso, afinal, na Grécia antiga, como hoje, o poder da palavra é aquilo que direciona o poder do coletivo para um ou outro caminho na realização do bem comum, ou seja, é com palavras que se faz política.

Se a respeito da mesma coisa se pode dizer algo e o contrário deste algo, então, as palavras não correspondem ao ser. O logos não está ligado ao ser. Há uma cisão entre o que digo e o objeto sobre o qual falo. Isto significa que a linguagem pode ser um mero instrumento de persuasão para se atingir esta ou aquela finalidade, não havendo mais importância da correspondência dela com a verdade, o belo, o justo. Isto também significa que há a possibilidade de se incorrer em erro, produzindo um falso saber. São os discursos da aparência, que não atingem a essência das coisas e possuem um grande perigo para a comunidade: pode-se, por meio de tais discursos, por exemplo, convencer os outros que algo injusto seja justo.

2. O discurso e a Teoria das Formas

Superar a cisão retro referida, propiciando a possibilidade de se chegar a verdade, é o objetivo que será perseguido por Sócrates e seus discípulos, como Platão. Este, para dar conta de tal empreitada, irá arquitetar, recebendo influências de seu mestre e de Heráclito, uma filosofia pautada no dualismo ontológico, que separa o mundo das idéias do mundo das aparências, sendo estas cópias daquelas. A forma (mundo das idéias), por refletir um caráter de universalidade que se opõe ao fluxo heraclitiano que permeia o mundo dos seres sensíveis, é o sentido mais rigoroso da idéia de ser. Ou, em outras palavras, aquilo que é o mesmo estando na multiplicidade das coisas é o ser.

Neste sentido, podemos dizer que "bem falar" reflete o discurso sobre o ser, sobre a forma, e que "falar bem" diz respeito apenas a cópia, a aparência, e, portanto, aquilo que é passível de mudança. A epistemologia platônica engendra o estudo da Política tecido por este filósofo. Por isso, Christophe Rogue irá dizer que "a crítica platônica dos discursos sofistas é caracterizá-los como discurso de aparência, isto é, como discurso renunciado de partida a reaplicação do logos sobre o ser ao qual a filosofia se dedica. Assim, o sofista é acusado de fabricar imagens de discurso. Ele fala e produz belos discursos, lisonjeiros, que agradam ao ouvido. Mas esses discursos não dizem nada, pois não atingem o ser"[1].

3. Democracia e discursos ilusórios

Fica claro, assim, que os sofistas, pelo emprego que fazem das palavras, devem ser combatidos, pois representam grande perigo para a pólis a partir do momento que possibilitam a qualquer um o poder de se pronunciar de maneira legítima na Assembléia acerca das matérias não especializadas. Ou seja, a partir do momento em que se estabelece que os especialistas referem-se apenas aos meios e os cidadãos, independente de serem especialistas ou não, referem-se aos fins. Esta é a idéia do regime democrático em que todos possuem o poder à palavra para decidir o que é melhor para a cidade enquanto este melhor se mostra como um fim.

Platão irá criticar, em face da sua epistemologia que fundamenta a noção do aviltamento das palavras feita pelos discursos ilusórios dos retóricos e sofistas, este regime que possibilita a todos o uso da palavra para decidir o futuro da comunidade política. Note-se que a questão epistemológica é o cerne que constrói a filosofia política platônica. Vejamos, então, a razão pela qual o regime político democrático não se mostra como o melhor e qual regime tem que possuir esta adjetivação.

4. Sobre as técnicas

As ações do técnico são eficientes, pois estão voltadas a um objeto determinado, específico. A palavra-chave é especialização. Mas, antes de tudo, a ação do técnico é aquela pautada no conhecimento da idéia do objeto a ser produzido, da forma deste objeto, e não se constitui no exame do sensível, daquilo que está em constante transformação, enfim, da experiência. Assim, a técnica se aproxima da noção de episteme e se afasta da noção de doxa (opinião). Além disso, a técnica é moralmente neutra. O pensamento de Rogue mais uma vez é preciso: "Se a technê é verdadeiramente um saber, ao ponto de fornecer à pesquisa filosófica o exemplo mesmo daquilo que é a competência, ela não é um saber absoluto, mas, ao contrário, um saber limitado a um domínio determinado do ser. Em particular, como simples competência, ela pode ser caracterizada como potência, isto é, faculdade indistinta de fazer um coisa ou seu contrário ou, dito de modo diferente, de fazer o bem ou o mal. Assim, por exemplo, o médico possui um saber que lhe permite tanto matar como curar: em si mesmo, o saber médico não indica absolutamente se é conveniente ou não curar o doente; oferece simplesmente a potência"[2].

5. A Política como técnica

No entanto, existem várias técnicas, visto que a cidade se constitui, segundo Platão, pela divisão do trabalho. Apenas a cooperação permite satisfazer as carências que o indivíduo sozinho não pode suprir, portanto, ela é uma necessidade. Esta multiplicidade de técnicas, por sua vez, precisa ser regulada, sendo tal ordenação feita pela técnica da política. Esta é quem faz a hierarquização das demais, alinhando-as para a realização do bem comum, que é ao mesmo tempo produto e finalidade da política, ao contrário das outras em que o bem produzido é utilizado como instrumento para uma técnica superior. Note-se que toda e qualquer técnica é regulada por uma finalidade e que a da política é o bem comum, ou seja, o fim último.

E a técnica da política é necessária, pois se só na sociedade as técnicas se complementam mutuamente pela troca, que é o meio pelo qual o homem pode desfrutar de todas as possíveis, ao regular todas as técnicas, a política se mostra inerente a sociedade e a realização do bem estar do homem. Sem ela não existiria eqüidade nas trocas, já que os limites entre uma técnica e outra não estariam delimitados.

O "bem falar", portanto, é o do técnico e se opõe ao "falar bem". Se a política é uma técnica, ela deve estar adstrita apenas aquele que conhece o objeto sobre o qual discursa (no sentido epistemológico da palavra, que comporta, assim, a apreensão da forma). A política é uma ciência, mais precisamente, a ciência do bem. Aquele que a exerce precisa ser competente, palavra esta que deve ser entendida tanto no sentido comum quanto no jurídico, ou seja, tanto quanto capacidade como circunspecção a uma determinada jurisdição. Assim, o melhor regime não é o democrático, que está permeado pelos belos discursos, mas sim aquele em que o rei filósofo governa, portanto, aquele regime em que antes de se "falar bem", "bem se fala".

6. O Rei Filósofo

No Livro IV da República Platão irá descrever a cidade ideal, cuja constituição deve possuir quatro virtudes: sabedoria, coragem, temperança e justiça. Tais virtudes refletem o modo de divisão das classes sociais dentro da comunidade política, sendo a justiça o respeito a esta divisão. Ela está assentada no princípio de que cada um há de se ocupar na cidade apenas de uma tarefa, aquela para a qual é mais bem dotado por natureza. Assim, o povo deve possuir temperança, para saber quem é que deve comandar a polis. Já os guardas devem possuir, além da temperança, a coragem, a salvaguarda da opinião legítima acerca das coisas que se devem ou não temer. E os chefes, ou o chefe, há de possuir, somada a estas duas virtudes, a sabedoria. A sapiência proporciona prudência nas deliberações, sendo que esta é uma espécie de ciência.

Por fim, para elucidar a idéia do melhor regime como sendo o aristocrático (quando governado por alguns) / monárquico (quando governado por um – o filósofo rei), assim como para elucidar a idéia da política como técnica que se opõe aos discursos da ilusão, é imperioso atentarmos para o diálogo entre as personagens Sócrates e Glauco sobre a cidade ideal:

Sócrates – "Há, porventura, na cidade que acabamos de fundar, uma ciência que reside em certos cidadãos, pela qual essa cidade delibera não sobre uma das partes que a compõem, mas sobre o seu próprio conjunto, para conhecer a melhor maneira de se comportar em relação a si mesma e às outras cidades?"

Glauco – "Sem dúvida que há."

Sócrates – "Qual é a ciência? E em que cidadãos se encontra?"

Glauco – "É a que tem por objeto a conservação do Estado e encontra-se nos magistrados a que há pouco chamávamos de guardiões perfeitos."

Sócrates – "E, em virtude dessa ciência, como consideras a cidade?"

Glauco – "Considero-a prudente nas suas deliberações e verdadeiramente sábia."

Sócrates – "Mas quais são os que, na tua opinião, se encontram em maior número na cidade: os ferreiros ou os verdadeiros guardiões?"

Glauco – "Os ferreiros."

Sócrates – "Logo, de todos os organismo que tiram o nome da profissão que exercem, o dos magistrados será o menos numeroso?"

Glauco – "Sim."

Sócrates – "Por isso, é na classe menos numerosa e na ciência que nela reside, é naqueles que estão à cabeça e governam que toda a cidade, fundada segundo a natureza, deve ser sábia; e os homens desta raça são naturalmente muito raros e a eles compete participar na ciência que, única entre as ciências, merece o nome de sabedoria."[3]. RDC, 2006.

7. Bibliografia

- PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Best Seller, 2002;

- ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2005.



1 - ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 27.

2 - ROGUE, Christophe. Compreender Platão. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 25.

3 - PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Best Seller, 2002. p. 144.


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