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NOTA CRÍTICA EM DEFESA DA HISTÓRIA ANTIGA: UM EXEMPLO

Há alguns anos surgiu um debate destes do tipo que não levam a lugar nenhum, mais um daqueles intermináveis debates dentro do campo da pesquisa em História. A não ser que se leve em conta que alguém esteja querendo chamar a atenção, ou ainda, que, a partir destes debates surjam novos campos de pesquisa, dado que, para defender-se um determinado ponto de vista, há a necessidade de inúmeras pesquisas e o debate sempre leva a novas e intermináveis pesquisas e assim por diante; ou seja, excluindo-se estas desculpas, estes debates não são profícuos e antes servem mais para desmerecer algum campo de pesquisa promissor do que para aumentar o campo de pesquisa a favor do historiador.

Assim como nas já famosas Questões Homéricas, iniciou-se um debate a respeito da importância da História Antiga. O debate girava em torno da seguinte questão: se a História Antiga deveria continuar sendo ensinada ou até mesmo pesquisada1, já que os eventos que dão suporte para a existência mesma de tal história são eventos ocorridos há muito tempo, difíceis de comprovação histórica e, para piorar a situação da já tão combalida História Antiga, que possui tão poucos defensores, estes eventos mesmos só podem ser “testados” quando se apela para as fontes arqueológicas, que, por serem arqueológicas, não são históricas; e para fontes filológicas, que por serem filológicas, também não são históricas. É sabido que em algumas faculdades brasileiras a História Antiga não faz parte da grade curricular, um evidente reflexo do

1 Cf. HARTOG, F. Os antigos, o passado e o presente. Trad. de Sonia Lacerda, Marcos Veneu, José Otávio Guimarães. Brasília: UnB, 2003. Na última parte do livro, pp. 187-204, o autor aponta para a existência deste debate. Significativo seria dizer que os estudos voltados para a História Antiga seriam enquadrados na rubrica “erudição” ou na rubrica “imaginação”, como citado na página 191, quando Hartog comenta um posicionamento de Jacques Le Goff: “Quando Jacques Le Goff explica como veio a se interessar pela Idade Média, retoma quase a mesma distinção: entre a pobreza documental da antiguidade, que não poderia conduzir - pensava ele - senão à pura erudição (ou a reconstituições aventureiras), e a abundância das épocas recentes, que impediria abordagens genéricas, a Idade Média aparecera-lhe como lugar de um compromisso possível entre ‘erudição’ e ‘imaginação’.”

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debate surgido tempos atrás. Como prova dos resultados deste debate que colocou em xeque o ensino de História Antiga e, porque não dizer, da pesquisa de História Antiga, há professores que nitidamente abandonaram as pesquisas no campo da História Antiga logo quando o debate se iniciou, um fruto originado diretamente deste debate.

Ora, qualquer pesquisa em História depende intrinsecamente da incessante busca por fontes primárias, secundárias, terciárias etc., quaisquer que sejam elas, sejam arqueológicas, filológicas, demográficas, históricas, de acordo com aquilo que é apontado pelos pesquisadores que seguem as concepções historiográficas da Escola dos Annales, que trouxe uma nova concepção do que é documento histórico e até mesmo monumento2.

No caso da História Antiga, leva-se em grande monta as informações contidas nas obras literárias das sociedades antigas, os gregos entre eles. A filologia colabora com grande quantidade de informações ao propor as pesquisas sobre o significado das palavras, suas origens, enfim o valor linguístico de determinada palavra ou a própria língua sob o prisma histórico e isto não pode ser deixado de lado por quem pesquisa a História Antiga sob pena de limitar seu rol de fontes. Assim, os estudos feitos na área de História Antiga têm certa dependência destas fontes, assim como de tantas outras. Com efeito, a produção literária dos gregos, que neste espaço é a História Antiga de que ora se ocupa, colabora em muito para o entendimento de aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos daquela sociedade. E se esta sociedade teve ou ainda tem algo para ensinar às gerações presentes e futuras, este ensino perpassa pelo estudo da História Antiga e de forma alguma é ostentação de erudição ou de imaginação fértil.

2 Cf. LE GOFF, J. História e memória. Trad. de Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. São Paulo: Editora Unicamp, 2003, pp. 525-539.

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A história da Grécia anterior ao surgimento da pólis está envolta em um período nebuloso. Pesquisas arqueológicas têm enriquecido de informações as pesquisas recentes, mas ainda assim é necessário apelar-se para fontes literárias como fontes de informações subsidiárias se se quiser conhecer com propriedade a história grega de tempos anteriores ao surgimento das cidades-estados. Com efeito, a epopeia torna-se uma fonte importante para a reconstituição, senão de toda, pelo menos de parte da História Antiga da Grécia. Assim, pode-se dizer que a epopeia está para a aristocracia grega assim como a tragédia está para a cidade democrática. E estudar a História Antiga arcaica da Grécia é estudar aquilo que se convencionou chamar de Período Homérico, pois as principais fontes literárias acerca do período de exercício de poder da aristocracia grega são a Ilíada e a Odisseia, poemas atribuídos ao poeta Homero3, que teria vivido durante o século VIII a. C. Já o período posterior, aquele que corresponde ao surgimento das póleis, possui um número maior de fontes não só literárias, mas também arqueológicas entre tantas outras fontes.

O período que corresponde ao Período Pré-Homérico data das primeiras incursões dos povos indo-europeus sobre a Península Balcânica, o que colaborou para a formação do povo grego propriamente dito. Evidências literárias e arqueológicas tentam dar conta da suspeita de existência de povos que já ocupavam a península desde priscas eras e que unidos ou submetidos por aqueus, jônios, eólios e dórios teriam dado a configuração da população da Grécia4.

Este período envolto em nebulosidade se configurou pela formação do povo. Os povos que fizeram as incursões sobre o território da península Balcânica

3 Cf. HOMERO. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2005. Cf. HOMERO. Odisseia. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003.

4 Cf. ÉSQUILO. Tragédias. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2009. Cf. ÉSQUILO. Las suplicantes. Introduccion, version y notas de María Celina Griffero. Buenos Aires: Albatros, 1977.

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trouxeram consigo sua religião, sua formação cultural e social, sua organização política que somadas àquelas dos povos lá encontrados deram forma à legenda grega. A aristocracia grega, ciosa de seus valores, estimulava a produção de poemas grandiosos capazes de eternizar o modo de vida dos aristocratas, muitos deles transformados por tais poemas em heróis. Assim, era muito comum encontrar na legenda grega aqueles mortais considerados heróis como descendentes de deuses e deusas. Para a aristocracia, era muito importante consolidar o seu poder e comando sobre a massa da população e foi através de lendas de grandes heróis e grandes heroínas que esta aristocracia sustentou seu status quo durante muito tempo. Imitar as ações dos grandes heróis era uma forma de transmitir ensinamentos sobre os valores morais, sobre a educação, sobre a política e a religião. Estas ações eram imitadas pelos grandes proprietários, pelos membros da aristocracia, tendo como pano de fundo as ações dos grandes e famosos heróis gregos e, por sua vez, a população de uma maneira geral procurava imitar as ações destes senhores que, por extensão, também se tornavam heróis celebrados pelos poetas e entravam na lista de heróis celebrados através das poesias. A estas ações eternizadas pelos poetas convencionou-se denominar Ciclo Épico.

A religião grega por sua vez não possuía sacerdotes como a dos demais povos vizinhos. Havia sim os templos, mas os rituais não eram conduzidos por regras rígidas. Cada cidade-estado possuía deuses patronos, padroeiros encarregados de auxiliar o povo nos momentos de agruras, apesar de os gregos não ficarem esperando por bênçãos de suas divindades. Sem sacerdotes, cada grego se via responsável por conduzir seu próprio culto. Assim, era comum a presença de altares das divindades dentro das casas das pessoas, uma espécie de culto aos ancestrais era muito praticado sob o comando do chefe da família, o pater familias.

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Muito antes do surgimento destes famigerados heróis, porém, havia outros exemplos passíveis de serem seguidos tanto para o bem quanto para o mal: o exemplo dos deuses. Entre os gregos, os deuses eram representados antropomorficamente, ou seja, os deuses possuíam a forma humana. Mas as semelhanças com os seres humanos não paravam por aí. Os deuses gregos agiam como se fossem humanos, cometendo os mesmos enganos e erros, mas também praticando boas ações de acordo com sua vontade. No entanto, havia diferenças bem marcadas: os deuses eram eternos e imortais; alimentavam-se de alimentos diferentes daqueles dos humanos, alimentos estes muitas vezes vedados para os seres humanos sob pena de ocorrerem terríveis consequências uma vez ingeridos, mas este interdito valia também para os deuses que tinham de se abster de ingerir alimentos humanos; habitavam em locais diferentes: os deuses moravam em locais cujas intempéries da natureza não eram capazes de afetar, ao passo que os humanos habitavam em locais sujeitos a elas.

Estes exemplos oriundos das divindades a serem seguidos, quando o eram, acabavam por gerar regras de comportamento social para todo o povo. Em outras palavras: se deuses tiveram apreço especial por determinado tipo de ação, então seria de bom tom para os seres humanos seguirem os passos das divindades como se fizessem parte de um ensinamento. A transmissão de valores através do uso do nome das divindades surtia bons resultados. Com efeito, tornou-se comum entre os gregos agirem de acordo com os preceitos divinos, assim como tornou-se comum tornar-se descendente do próprio deus que era usado como exemplo. É óbvio que os principais filhos de deuses faziam parte da aristocracia grega, das camadas sociais mais ricas e poderosas. A falta de evidência torna proibitivo afirmar que havia filhos de deuses oriundos das camadas mais pobres da sociedade grega. No entanto, os membros destas camadas sociais não pareciam dar muita importância para este estado de coisas, dado

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que, quanto a isto, não há registros de questionamentos sobre o assunto; ou seja, os pobres pareciam aceitar bem a ideia de ter de copiar o comportamento dos aristocratas e aceitar como forma de ensinamento as lições, as ações dos senhores abastados tendo como pano de fundo os valores por eles transmitidos. Prova de tal comportamento por parte dos mais humildes gregos seguindo os ditames e regras morais dos grandes proprietários pode ser encontrada em evidências literárias.

Os descendentes de deuses eram considerados como semideuses, meio homens, meio deuses. Os semideuses eram considerados, devido a sua condição única, como heróis entre os demais homens. Não eram imortais e nem eternos (salvo raras exceções), habitavam os mesmos lugares que os homens e alimentavam-se com os mesmos tipos de alimentos que estes. O que então tornava estes seres tão especiais? A conduta moral destes homens era o que separava os heróis ou semideuses dos homens comuns. Capazes de praticar grandes feitos em prol da comunidade; capazes de colocar a própria vida em jogo em prol da comunidade muitas vezes sem pedir nada em troca e muitas vezes sem fazer isto em prol da própria comunidade, os heróis ganhavam fama, muitas vezes sem querer. É que suas virtuosas ações chamavam a atenção do homem comum, ganhavam apreço da comunidade, eram imitadas e, em pouco tempo, espalhavam-se por várias regiões, chegando aos ouvidos dos aedos gregos, que por sua vez, faziam o que sabiam fazer de melhor: cantar as proezas destes grandes homens tornando-os famosos não só entre os homens do seu presente, mas também entre aqueles do porvir. Assim, estes heróis conquistavam a glória, a honra e a fama, o que acabava por torná-los imortais entre os homens. Uma vez conquistadas a glória, a honra e a fama, os heróis se tornavam exemplos de conduta para os homens comuns. Condutas dignas de serem seguidas, valores dignos de serem seguidos e ensinados, transmitidos de geração para geração.

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A epopeia foi uma das formas que os gregos encontraram para cristalizar em forma de poema, a princípio no formato oral e posteriormente no formato escrito, tanto as histórias dos seus deuses quanto as histórias de seus heróis. A definição simplificada de epopeia é a seguinte: é um poema metrificado, com metro heroico, o hexâmetro, cuja história deve representar uma ação completa e una. Essa história por sua vez é a história do mundo dos deuses e do mundo dos homens propriamente dito. Como exemplares de grande importância deste tipo de poema podem ser citados a Ilíada e a Odisseia atribuídas ao poeta Homero, como citado acima.

Na Ilíada Homero narra as grandes proezas realizadas por diversos heróis da mitologia grega, presentes na Guerra de Troia. Cabe ressaltar que, como meio homens que eram, os heróis estavam sujeitos a cometer os mesmos erros que os homens comuns. Isto valia até mesmo para os deuses devido ao forte antropomorfismo da religião grega. Contudo, a epopeia não era o espaço privilegiado para se fazer críticas aos atos de barbárie cometidos pelos heróis, especialmente porque não se deveria fazer propaganda negativa de algum herói sob pena de se macular uma cidade-estado inteira juntamente com seus cidadãos e isto ninguém queria. Mesmo que os poetas vissem estes erros e quisessem apontá-los, não poderiam sob pena de não poderem mais ser ouvidos nos inúmeros banquetes realizados pelos aristocratas locais. Este papel de apontamento para os erros tão humanos cometidos tanto por seus deuses quanto por seus grandes heróis coube à filosofia e à tragédia, que, por sua vez, eram filhas legítimas da pólis grega.

O fenômeno denominado pólis grega, que geralmente é um termo traduzido por cidade-estado, não foi algo exclusivo e nem originário da Grécia. Póleis surgiram em diversas regiões do mar Mediterrâneo e possuíam basicamente a mesma estrutura: a zona rural e a zona urbana eram interdependentes. A aristocracia rural

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exercia influência tanto no campo quanto na cidade. Seu poder era quase inquestionável. Contudo, com o surgimento deste formato de organização social e política, novos ares começaram a soprar e os tempos mudaram para todos os habitantes da cidade-estado. O poderio da aristocracia passou a ser questionado e este questionamento colocou em xeque o poderio da aristocracia e minou as estruturas sociais aristocráticas dando espaço para outras forças sociais. A democracia começou a ganhar força. O ambiente democrático era aquele que facilitava a crítica social e foi neste ambiente de crítica social que se originou a tragédia. A tragédia também possuía características revolucionárias. Era o espaço para fazer aquela crítica aos comportamentos pouco invejáveis dos grandes heróis gregos, já que os aedos evitavam criticar os heróis em seus poemas. Os tragediógrafos não mais se preocupavam com o fato de tornar a sua comunidade e a sua cidade-estado mal faladas por conta de suas tragédias. O ambiente democrático possibilitava a liberdade de expressão necessária para que este tipo de preocupação não incomodasse.

A sociedade grega democrática vivenciava algo novo. O sistema democrático parecia propor aos gregos algumas questões completamente novas no âmbito da organização dos homens em sociedades. Estes questionamentos diziam respeito à política. Não foram feitos essencialmente no campo da política e ganharam força especial no campo da filosofia. Questões do tipo: a quem o povo deveria entregar o poder de governar a cidade-estado? A que tipo de homem? A um grupo de homens ou a um só homem? Qual a forma de governo? Quais comportamentos e valores deveriam ter os homens que governariam a cidade-estado? No mundo da política grega estas perguntas receberam diversificadas respostas, mas foi no mundo da filosofia que se tentou responder de melhor forma a estas perguntas. Com efeito, a questão dos valores e das virtudes a serem valorizados também ganhou apreço no campo da filosofia, pois o

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povo deveria entregar o governo a alguém e este alguém teria seus valores e virtudes considerados na hora das escolhas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FONTES

Ésquilo. (2009) Tragédias. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras.

Ésquilo. (1977) Las suplicantes. Introduccion, version y notas de María Celina Griffero. Buenos Aires: Albatros.

Homero. (2005) Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia.

______. (2003) Odisseia. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia.

OBRAS DE REFERÊNCIA

Hartog, F. (2003) Os antigos, o passado e o presente. Trad. de Sonia Lacerda, Marcos Veneu, José Otávio Guimarães. Brasília: UnB.

Le Goff, J. (2003) História e memória. Trad. de Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. São Paulo: Editora Unicamp.