Virada do ano. Como sempre as pessoas se reúnem para comemorar a vitória de ter sobrevivido. Antes, diziam que se festejava para esperar o ano vindouro. Não consigo imaginar uma situação assim. Como festejar algo que ainda virá? Nós só festejamos o que conseguimos vencer. Sabe, nos tempos de hoje, temos que vencer muitas, muitas coisas mesmo!
2069 passou. Estamos com medo do que 2070 vai nos trazer. Tudo depende das pessoas e esta é a batalha de todos os anos. A cabeça de cada um ainda pensa para si. Porém, tem assuntos que não deveriam ser de decisão particular. O uso da água é um deles. Desde os tempos de meus tataravós a água já era um problema de utilidade pública, no entanto, naquela época, muitos já faziam pouco caso. A quantidade de água potável realmente diminuiu muito, pois a maior parte foi poluída de tal forma que a reversão do processo foi descartada por ser de alto custo. Neste caso, ficou "mais barato" tirar o sal da água do mar. As indústrias de dessalinização, no entanto, disputam o poder mundial e vendem seu produto a um preço altíssimo, pois sabem que lidam com o bem mais precioso do planeta. Não há joia, metal ou combustível que bata o valor da água! Por isso, abrir uma torneira em casa é um gesto de extrema necessidade... e caríssimo!
Nossa família, de bem poucos integrantes (os que sobreviveram às penúrias de 2069), está reunida em casa. E não pense que é em torno de uma mesa farta e com bebidas. Isso é coisa de um passado remoto. Estarmos juntos já nos basta! Lá fora é muito perigoso. Há os "zumbis humanos", pessoas que se entregaram às drogas sintéticas para se esquecer dos males e que acabaram consigo mesmas. Aliás, depois da indústria da água, a indústria das drogas sintéticas é a que mais lucra neste mundo. Só que esta última arranca a vida de centavo em centavo. Basta uns trocadinhos para se desligar de tudo por um bom tempo. Alguns "zumbis" exageram tanto que apodrecem nas calçadas, literalmente.
2069 se foi! Levou consigo algumas pessoas que eu amava muito. A medicina avançou por um lado, descobrindo vacinas para males que, a princípio, não tinham cura. Em compensação, surgiram outras enfermidades criadas em laboratório que matam as pessoas em questão de horas e sem diagnóstico preciso. A bactéria ainda está em estudo e parece mais resistente que as até hoje identificadas. A promessa era que o ser humano tivesse uma perspectiva de vida mais longa (120 anos!), porém, esqueceram de colocar as condições para que isso acontecesse. Hoje, sofremos tanto, que os menos abastados invejam os que já partiram. O problema da morte é o processo doloroso do sofrimento até ela!
Morrer fisicamente não é nada. A gente aprende a morrer de outro jeito enquanto vive. Infelizmente, herdamos dos nossos antepassados a divisão dos grupos em classes sociais. Porém, agora as coisas parecem mais "simples". Temos apenas duas: os milionários e os miseráveis. Estes últimos, como sempre, a serviço escravo dos primeiros. Mudar de uma classe para a outra é conto de fadas e ponto final. O grupo dos poderosos é extremamente fechado, vive numa "bolha", isolado dos problemas e alienado a propósito. Usa os menos favorecidos para serviços sujos e difíceis, pagando migalhas. Os miseráveis se submetem e nada fazem para mudar, porque são tomados pela ignorância e o que sabem fazer é apenas usar a força braçal sob o comando de alguém. Sabe o que resultou tal divisão? A falta de atenção para o estudo e a Educação. Crianças e jovens foram sendo manipulados pela mídia, pelos jogos eletrônicos e pelo mercado de trabalho a tal ponto que a escola ficou em último plano (quando ficou!). Os que seguiram a diante nos estudos tornaram-se doutores, cientistas, escritores, pesquisadores autodidatas e pertencem ao grupo seleto dos maiorais. Acredite: são muito poucos! Um número tão reduzido que chega a ser disputado à tapa pelos que deles precisam.
Todo o alimento que consumimos é industrializado e vendido nos supermercados a preço altíssimo. Tudo vem embalado em latas, caixas ou garrafas. As ilhas de lixo que produzimos já formam arquipélagos. Lógico que há aqueles que já se apoderaram do lixo alheio e cobram para reciclar e reaproveitar. As próprias indústrias alimentícias tentam diminuir a produção dos resíduos, mas o consumo sempre é maior, apesar do preço. Ainda temos os que nem estão aí para a seleção do lixo. Basta andar pelas ruas ou chover por algumas horas para constatarmos a tragédia. A fome é companheira constante da maioria. A disputa por alimentos nos aterros sanitários tornou-se cada vez mais difícil, pois estes passaram a ser áreas particulares e fonte de renda para alguns gananciosos. São poucos miseráveis que lá trabalham que recebem as migalhas do lixo que sobra.
E você quer que festejemos a virada do ano de 2069? Impossível! Chegar até aqui foi vencer uma guerra pela sobrevivência. Quem dera se pudéssemos soltar fogos de artifício e olhar para o céu com a mesma esperança que tinham nossos tataravós! Hoje, estou no futuro que eles nem puderam chegar! O ser humano manteve, durante anos, uma postura solitária e gananciosa, por isso estamos vivendo o mais triste de todos os tempos. Não tenho a ilusão de um futuro melhor, pois isso dependeria das pessoas e eu não acredito mais em ninguém. Isso é triste, mas real.

Autora: Luciane Mari Deschamps


Histórias como essa, provavelmente, nos chocam e mexem com nossos sentimentos. Ficamos preocupados, apreensivos, afinal, trata-se do nosso futuro. Observe, porém, que todos os problemas apresentados são resultados de nossas ações. Tudo, no entanto, poderá ser diferente se o nosso modo de pensar e agir for diferente também. Pense nisso!