1 – INTRODUÇÃO

O presente estudo visa a identificar alguns conceitos traçados pela doutrina acerca de norma e sistema jurídico. Vamos tentar detalhar os conceitos como forma de instrumentalizar nossa compreensão acerca dos fenômenos ligados à criação e à aplicação da norma jurídica, como direito posto traduzido através das leis.

Pacífico que o direito positivo não consegue abarcar a integralidade dos fatos reais que cotidianamente se apresentam em nossa realidade. Também é certo que somente os fatos sociais ou naturais relevantes devem ser observados e considerados pelo jurista, quando instado a dar solução a conflitos cuja fundamentação encontra-se no sistema jurídico, fatos estes denominados fatos jurídicos.

Portanto, os fatos relevantes, denominamos fatos jurídicos, possuem relevância quando selecionados pelo sistema do direito positivo através de uma linguagem prescrita ditada pelas normas jurídicas.

Dito isto, este trabalho terá por compromisso trazer breves ensinamentos doutrinários acerca da norma e do sistema jurídico, os quais se mostram intrinsecamente importantes para o estudo da ordem jurídica.

2 – CONCEITOS

2.1 – Conceito de Norma Jurídica

 

 

Iniciemos nossa proposta trazendo o conceito de norma jurídica retirado do Dicionário Jurídico[1]:

Norma é uma regra de conduta, podendo ser jurídica moral, técnica, etc. Norma jurídica é uma regra de conduta imposta, admitida ou reconhecida pelo ordenamento jurídico. Norma e lei são usadas comumente como expressões equivalentes, mas norma abrange na verdade também o costume e os princípios gerais do direito. Há quem distinga norma de lei: a lei seria o ato que atesta a existência da norma que o direito vem reconhecer como de fato existente, ou das formas da norma. O art. 2º da Lei de Introdução ao C. Civ. Alemão diz: “Lei, no sentido do C. Civ. E desta lei, é toda norma de direito”. Os autores franceses quase não empregam a expressão norma jurídica, preferindo falar em regra de direito. A classificação das normas jurídicas apresenta uma grande variedade entre os autores: primárias, secundárias, gerais, individualizadas, fundamentais, derivadas, legisladas, consuetudinárias, jurisprudenciais, nacionais, internacionais, locais, de vigência determinada ou indeterminada, de direito público ou privado, substanciais, adjetivas, restitutivas, rescisórias, extintivas, constitucionais, federais, estaduais, municipais, ordinárias, complementares, negociais, de equidade, positivas, de organização, de comportamento, instrumentais, preceptivas, proibitivas, permissivas, particulares, autônomas, rígidas, elásticas, formais, materiais, construtivas, técnicas, etc. Duguit fez uma famosa distinção: regra de direito normativa ou norma jurídica propriamente dita, que determina uma ação ou abstenção, e regras de direito construtivas ou técnicas, que asseguram a aplicação das regras normativas. V. natureza da norma jurídica. Todos os ramos do direito apresentam normas próprias. Assim é que se fala em norma civil, constitucional, administrativa, tributária, comercial, processual, penal, internacional, trabalhista, etc.

Aprofundando os estudos acerca do conceito de norma jurídica, nos ensina Karl Engisch[2]:

A norma jurídica limita-se a apresentar uma conduta como condicionalmente recta, ou seja, como meio para fins que talvez sejam, ao contrário, por nós detestados, mas estão conformes com a vontade de quaisquer pessoas e, portanto, hão-de ser garantidos pelo poder posto ao serviço dessa vontade.

 

Segundo Hans Kelsen[3], para melhor compreender o conceito sobre norma jurídica há de se fazer uma distinção entre ciência natural e ciência do Direito. A ciência do Direito tem seu fundamento na distinção existente entre o mundo do ser – a natureza – e o mundo do dever ser – as normas. A ciência da natureza estuda o ser. A ciência do direito, que é uma ciência normativa, estuda as normas jurídicas, e estas são o dever ser.

E afirma:

As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos imperativos. Mas não apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo o caso, não são – como, por vezes identificando Direito com ciência jurídica, se afirma – instruções (ensinamentos).

 

Por fim, conclui, normas jurídicas são sentidos (proposições) construídos a partir dos textos (enunciados) do sistema do direito positivo, observada a realidade social[4]. É importante ressaltar que as normas jurídicas não se confundem com o(s) texto(s) que a(s) vincula(m), considerando que são produto da interpretação dos dispositivos (enunciados) do sistema do direito positivo, o que nos leva ao entendimento de que a norma jurídica pode encontrar-se expressa ou ser perceptível de maneira implícita. Entretanto, sempre estará contida no sistema jurídico.

Dito isto, podemos chegar à compreensão de que o direito é o conjunto de normas coativas válidas em um Estado, sendo o conteúdo da norma jurídica um pensamento, uma proposição (proposição jurídica) de ordem prática, uma orientação para ação humana[5], ou seja, juízos hipotéticos.

Esclarecendo, as normas jurídicas são produzidas pelos órgãos jurídicos a fim de por eles serem aplicadas e observadas pelos destinatários do Direito. As proposições jurídicas, por sua vez, são juízos hipotéticos que enunciam ou fundamentam a norma jurídica, de acordo com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dado o conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento[6].

Normas jurídicas, portanto, são juízos sobre um objeto com emanação de comandos, no sentido de ser previsto um determinado tipo de conduta, que pode por elas ser permitido ou proibido. Em contraposição, proposição jurídica é a descrição do dever ser acerca do objeto dado ao conhecimento.

Esse dever ser não tem caráter prescritivo mas, sim, caráter descritivo. Assim, a ciência jurídica tem por finalidade descrever o Direito. Com esse conhecimento descrito pela ciência jurídica, é possível a emanação de inúmeras normas jurídicas postas pelos órgãos legitimados, transformando-se em um sistema unitário, qual seja, em um ordenamento jurídico. Ressalte-se, conforme Kelsen, que essa produção de normas jurídicas tem caráter teórico.

A norma jurídica ainda não comporta juízos de verdade ou de falsidade. De fato, segundo Kelsen:

(...) as normas jurídicas como prescrições, isto é, enquanto comandos, permissões, atribuições de competência, não podem ser verdadeiras nem falsas, põe-se a questão de saber como é que os princípios lógicos, particularmente o princípio da não-contradição e as regras da concludência do raciocínio, podem ser aplicados à relação entre normas (como desde sempre tem feito a Teoria Pura do Direito) quando, segundo a concepção tradicional, estes princípios apenas são aplicáveis a proposições ou enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos.

 

Em verdade, pelo o quanto explanado alhures, as normas jurídicas só podem ser válidas ou inválidas na medida em que pertençam a determinado ordenamento jurídico. Para determinada norma jurídica ser considerada válida, é necessário que ela exista, ou seja, que faça parte do ordenamento jurídico. Para que uma norma faça parte de determinado ordenamento jurídico e, para tanto, seja chamada de norma jurídica, faz-se necessário que ela tenha o mesmo fundamento de validade do ordenamento jurídico – que ela seja conforme a norma fundamental.

Por norma fundamental nos ensina Kelsen[7]

Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas pertencentes a essa ordem normativa.

 

Tercio Sampaio cita Bobbio para explicar sobre norma fundamental[8]:

Bobbio (1960:51) nos dá ainda outra explicação. Observando que Kelsen, com sua norma fundamental pressuposta, está buscando o impossível (uma validade não relacional), propõe ele que a norma última identifique-se com um ato de poder. A norma fundamental é a que é posta por poder fundamente da ordem jurídica e sua característica é a efetividade: ou o poder se impõe, ou não é poder fundamente e não teremos norma fundamental. Desse ponto de vista, justifica Bobbio que, se qualquer norma é posta, nem toda norma é válida. Se um juiz estabelece uma norma, uma sentença, fora de sua competência, houve positivação, mas a norma não é válida. Quando subimos na hierarquia, porém, a distância entre a positividade e a validade vai estreitando-se até chegarmos àquele primeiro ato do poder, por exemplo, o poder constituinte, que, ao positivar a norma, já a estabelece como válida: não há mais distância entre uma coisa e outra.

 

Logo, a questão da verdade ou falsidade é destinada à proposição jurídica que descreve o dever ser que servirá de conteúdo da norma jurídica. Agora, como tratar a questão da interpretação da norma jurídica ao caso concreto?

Não se trata de questão das mais fáceis, porque por vezes o texto normativo não é formulado da forma mais clara quanto possível, trazendo interpretações diversas. Ademais, as normas jurídicas são elaboradas por seres humanos e podem traduzir ao intérprete ambiguidades, ou seja, de uma mesma regra jurídica é possível obter-se mais de um resultado prático.

Por tais razões, faz-se necessário interpretar as normas jurídicas, o que pode ser feito de duas formas, segundo Kelsen. Uma, a interpretação doutrinária realizada pela ciência do direito, que tem por finalidade a descrição do sistema do direito positivo. Outra, a interpretação autêntica, realizada por quem tem o poder de criar a norma jurídica.

Acreditamos que quando a interpretação é realizada pela autoridade judiciária, trata-se de uma operação mental realizada pelo aplicador do Direito, a qual deve obedecer à teoria da construção escalonada da ordem jurídica. Nesse sentido nos esclarece:

“A Interpretação é (...) uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na hipótese da interpretação da lei, deve responder-se à questão de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a deduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto”[9].

 

Logo, imperiosa a relação entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior disposta na ordem jurídica, no sentido em que se encontram vinculadas hierarquicamente, e essa norma de escalão superior determina os limites das normas de escalão inferior. Ou seja, a norma de escalão superior delimita os limites de atuação do legislador na elaboração das leis, nas normas de escalão inferior, na medida em que a norma inferior deve encontrar-se em conformidade com a norma superior, como forma de completar-lhe.

Conforme já mencionado, a experiência jurídica demonstra que, na maioria dos casos práticos, o intérprete, ao aplicar a norma jurídica ao caso concreto, por vezes encontra resultados diferentes para a mesma situação prática, justamente porque ao objeto em análise aplica uma interpretação subjetiva que é própria. Apesar dessa realidade, cumpre ao aplicador do Direito buscar a interpretação mais fiel ao sentido do objeto que se busca interpretar, isto é, a norma jurídica ao caso concreto.

Por certo, a autoridade jurídica, ao escolher um dos possíveis resultados ao caso concreto mediante a interpretação dos enunciados do direito positivo e dos fatos sociais que circundam o caso concreto, aplica força de Direito criadora da norma jurídica. Esse tipo de interpretação é considerado interpretação autêntica, posto que o intérprete escolhe dentre as possíveis soluções a que lhe pareça mais adequada ao caso concreto. 

Kelsen defende que inexiste uma única solução correta para a interpretação da norma a ser aplicada pela autoridade jurídica, tecendo crítica àqueles que entendem que existiria uma única solução correta. Transcreve-se:

A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação o seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo.

 

Dessa forma, o aplicador do direito, ao escolher dentre as possíveis soluções aplicadas ao caso concreto, exerce verdadeira função criadora do Direito. Assim, mesmo quando surgirem casos difíceis e de aparente falta de solução jurídica, deve o aplicador do direito obrigatoriamente valer-se de outras normas positivas e até de normas não jurídicas, normas políticas, ou ideológicas, como forma de dar ao caso concreto uma solução jurídica justa.

Diferentemente ocorre com a interpretação científica em que a interpretação é realizada pelos cientistas do Direito. Nessa hipótese de interpretação, não há criação de Direito novo. Para Kelsen,

a interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos[10], que é repudiada pela Teoria Pura do Direito.

 

Portanto, a interpretação é essencial para a produção das normas jurídicas. O intérprete autêntico vale-se dos enunciados normativos para expressar seu entendimento diante de um caso concreto, ou hipotético, quando suscitado, empregando seu olhar subjetivo sobre o objeto e apresentando um novo modo de analisar a questão. O intérprete doutrinário, por seu turno, apenas descreve as normas que compõem o sistema do direito positivo como forma de dar solução à questão.

Por certo, aquele que expediu o texto normativo teve um sentido ao fazê-lo; entretanto, o sentido expresso pela norma jurídica pode mostrar-se diverso. As leis postas são normas em potencial, as quais permitem interpretações diversas. Ainda, a norma jurídica é o resultado da interpretação conjugada do sistema jurídico com a realidade social, ou seja, ao ser produzido um texto normativo, tem-se a norma jurídica em potencial. Esta, porém, só será efetiva após a interpretação realizada pelo aplicador do direito.

2.2 – Normas Jurídicas e Sistema Jurídico

O dicionário Wikipédia tem como significado para Sistema Jurídico[11]:

Sistema jurídico ou legal é o conjunto de normas jurídicas interdependentes, reunidas segundo um princípio unificador. Essas regras utilizam uma linguagem prescritiva, cuja finalidade é disciplinar a convivência social. Assim, o direito positivo é um sistema nomoempírico prescritivo, pois objetiva preceituar a conduta dos indivíduos. A ciência do direito, por outro lado, é um sistema nomoempírico, teorético ou declarativo, que utiliza linguagem científica. Tal ciência se baseia em um axioma que lhe serve de base, possibilitando o seu desenvolvimento, que é a norma fundamental descrita por Hans Kelsen. É esta norma que dá legitimidade à Constituição, sendo um dado que se dá por verdadeiro, sem demonstração, que possibilita o estudo do sistema.

 

Para Kelsen, a norma jurídica decorre da existência do sistema do direito[12]

Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de norma enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.

Para Bobbio[13], “sistema” é uma totalidade ordenada, isto é um conjunto de entes dentre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de ordem, é necessário que os entes constitutivos não estejam em relação apenas com o todo, senão que também estejam em relação de coerência entre eles.

Segundo Kelsen, as normas reguladoras de conduta humana regulada pelas normas são dirigidas às normas jurídicas produzidas. Entende o autor que o sistema do direito positivo pode ter duas formas, distinguindo-as através da teoria estática e da teoria dinâmica[14].

A primeira tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, o Direito no seu momento estático; a outra tem por objeto o processo jurídico em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento.

Ou seja, para o sistema estático, as normas de um ordenamento são consideradas como devidas (devendo ser) por força do seu conteúdo. Exemplificando: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falso testemunho. O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre essa norma fundamental[15]:

Um exemplo aclarará este ponto. Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do filho: por que devo ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que Deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de Deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade desta norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento da sua validade, que apenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve ir à escola, não pode ser deduzido desta norma fundamental.

Entende ainda que o sistema estático é aquele em que as normas estão ligadas umas às outras, como proposições de um sistema dedutivo, ou seja, em razão de se deduzirem umas das outras, partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral, que têm a mesma função de postulados ou axiomas num sistema científico[16]. E o sistema dinâmico, de outro modo, é aquele no qual as normas que o copõem derivam uma das outras por meio de sucessivas delegações de poder.

Ou seja, extraímos do quanto já exposto que Kelsen vê na norma fundamental o fundamento da existência do sistema jurídico como forma de fixar as normas, ainda que o sistema do direito positivo não se mostre como um sistema de normas estáticas.

É necessário salientar que referidas normas precisam estar em conformidade com a realidade social preconizada pela sociedade, sob pena de possuirmos normas obsoletas que não mais se aplicariam aos casos práticos vivenciados modernamente.

Se o ordenamento jurídico não estiver atualizado e em conformidade com a realidade social, ele será de pouca efetividade, trazendo descrédito à sociedade, considerando que a norma posta não teria aplicabilidade. Por certo que não estamos tratando dos conteúdos considerados inalienáveis, quais sejam, “justiça universal” ou existência de “direitos naturais eternos e absolutos”, em relação aos quais não há que se falar em obsolescência.

Bobbio atribui três significados para o sistema jurídico. Um primeiro significado é aquele mais próximo ao significado de “sistema” na expressão “sistema dedutivo” ou, mais exatamente, baseado neste. Nessa acepção, diz-se que um dado ordenamento é um sistema desde que todas as normas jurídicas daquele ordenamento sejam derivadas de alguns princípios gerais (dito de outra forma, “princípios gerais do direito”), considerados do mesmo modo que os postulados de um sistema científico[17].

Tal acepção está historicamente ligada tão somente ao ordenamento do direito natural.

O segundo significado está ligado à ideia de jurisprudência sistemática. Aqui o termo “sistema” é usado, ao contrário, para indicar um ordenamento da matéria, realizado com procedimento indutivo de construir conceitos sempre mais gerais, e classificações e divisões da inteira matéria: a consequência dessas operações será o ordenamento do material jurídico, da mesma forma que as laboriosas classificações que o zoólogo dá a um ordenamento do reino animal.

A expressão “jurisprudência sistemática” utiliza-se do termo ‘sistema’ não para se referir ao significado relacionado a ciências dedutivas, mas àquele relacionado às ciências empíricas e naturais, adotando para tanto o procedimento de classificação, e não de dedução. Seu objetivo primordial é reunir as informações fornecidas pela experiência, tomando por base a semelhança entre elas, a fim de construir conceitos amplamente gerais que possibilitem unificar todos os dados[18].

O terceiro significado dado por Bobbio ao sistema jurídico, o qual reputo mais consentâneo com tudo que estudamos até o momento, afirma que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque nele não podem coexistir normas incompatíveis[19].

Nesse sentido, havendo normas incompatíveis no sistema jurídico, uma delas deve ser eliminada. Ora, se o ordenamento jurídico é compatível, havendo incompatibilidade entre as normas do ordenamento, uma delas deve ser eliminada, ou ambas. E para clarificar essa argumentação, tece a seguinte consideração: Havendo duas proposições como: “A lousa é negra” e “O café é amargo” são compatíveis, mas não se implicam uma com a outra.

E finaliza: Neste sentido, nem todas as normas produzidas por fontes autorizadas seriam normas válidas, mas somente aquelas que fossem compatíveis com as outras e, ainda, que a norma jurídica é aquela cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada o que demanda organização e complexidade[20] .

Por tais razões, o sistema jurídico traz consigo várias características integradas por três elementos: coerência, completude e unidade.

 

2.3 – Elementos do sistema jurídico: unidade, completude e coerência

 

 

 

A unidade do sistema jurídico visa a evitar qualquer forma de dispersão. Havendo dispersão, esta deverá ser afastada como forma de eliminar algum tipo de vício. Ainda, a unidade haverá de ser coerente e lógica.

É de fácil percepção a unidade ao tratarmos de um ordenamento simples, quando todas as normas resultam de uma única fonte. Entretanto, quando nos deparamos com ordenamentos complexos, quando as normas não estão todas escalonadas no mesmo plano, recorremos aos ensinamentos de Kelsen, que evidencia a construção escalonada do ordenamento por nós já mencionada, qual seja, a existência de normas inferiores e superiores, em que as primeiras dependem das segundas de forma hierarquizada, obedecendo a um termo unificador de existência representado pela norma fundamental.

A norma fundamental em um ordenamento é a Constituição. Por se tratar de norma ordinária, depende de um poder normativo que a originou, ou seja, decorre de um poder originário, do qual o pressuposto de sua existência é uma norma que atribua ao poder constituinte a faculdade de produzir normas. Bobbio nos ensina que a norma que dá vida ao poder originário é a norma fundamental. Transcreve-se[21]:

Há normas superiores e normas inferiores. As normas inferiores dependem das superiores. Subindo-as das normas inferiores até aquelas que se encontram mais acima, chega-se enfim a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Todo ordenamento possui uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas; isto é, faz das normas esparsas e de variada proveniência um todo unitário, que se pode chamar, a justo título, de “ordenamento”. A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem o ordenamento jurídico. Sem uma norma fundamental, as normas das quais falamos até agora, constituiriam um acumulado de normas, não um ordenamento. Em outras palavras, conquanto sejam numerosas as fontes do direito em um ordenamento complexo, esse ordenamento constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indiretamente, com desvios mais ou menos tortuosos, todas as fontes do direito podem ser deduzidas de uma única forma.

A ideia de completude não está diretamente relacionada a ter uma resposta para tudo. Por vezes, não ter a resposta não deixa de ser uma resposta. Ainda, quando o sistema não trata de um tema não significa que não foi verdadeiramente tratado. A completude não significa ter uma resposta para tudo e, sim, trazer uma solução para o caso concreto em questão.

Ou seja, o aplicador do direito, ao analisar determinado caso fático, deve prestar àquele que buscou a prestação jurisdicional uma resposta justa, valendo-se de todas as ferramentas postas à sua disposição para encontrar tal solução, quais sejam, analogia, costumes, princípios gerais do direto, sob pena de, ao não proceder dessa forma, agir em desconformidade com o principio de justiça e com o dever fundamental de julgar todos os conflitos.

As omissões na legislação são consideradas aparentes, considerando-se que, utilizando-se de seus mecanismos de interpretação, pode-se chegar a uma solução justa através do próprio sistema jurídico.

Bobbio ensina que “completude” é a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Posto que a ausência de uma norma se chama, com frequência, de “lacuna” (em um dos sentidos do termo “lacuna”), “completude” significa “ausência de lacunas”. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma extraída do sistema[22].

Por fim, o sistema jurídico há de ser coerente, ou seja, sem contradições. É certo que não é crível que o legislador, ao elaborar o texto normativo, formule leis ou enunciados que possuam vontades antagônicas, pois isso quebraria o sistema jurídico na medida em que não se conseguiria alcançar uma decisão tida por correta.

Podemos, efetivamente, definir a coerência como aquela propriedade pela qual nunca ocorre o caso em que se possa demonstrar a pertinência ao sistema e de uma determinada norma e da norma contraditória[23].

Porém, apesar das teorias supramencionadas, não podemos deixar de reconhecer que, por vezes, o legislador produz normas que contradizem regras do sistema. Posto isto, considerando que não podem existir regras contraditórias ao mesmo fato, ou seja, ambas não podem ser consideradas verdadeiras, faz-se necessária a eliminação de uma das normas como forma de reestabelecer a coerência do sistema jurídico, conforme já detalhado. Tal solução é encontrada através das regras ante a existência de antinomias, sendo certo que existem antinomias solúveis e antinomias insolúveis.

Considerando que a existência de antinomia decorre do excesso de norma, nos deparamos de fato com um conflito real, ou seja, o ordenamento jurídico não prevê uma solução para duas normas conflitantes, e a solução acaba sendo doutrinária.

Quando o conflito de norma pode ser solucionado buscando-se a solução dentro do texto normativo, em verdade não há antinomia, motivo pelo qual é considerada como antinomia aparente.

Os critérios de solução para as antinomias são três: o cronológico; o hierárquico e o da especialidade.

O critério cronológico não requer grandes explicações, haja vista que prevalece a norma posterior quando existe incompatibilidade entre duas normas. O critério hierárquico é aquele em que prevalece a norma hierarquicamente superior e, por fim, o critério da especialidade em que prevalece a norma especial quando há incompatibilidade entre uma norma geral e uma especial.

Entretanto, Bobbio esclarece que os critérios de solução de antinomias não são suficientes para resolver todos os tipos de conflitos e exemplifica mencionando que duas normas igualmente contemporâneas em mesmo nível e ambas gerais podem ser antagônicas, daí que os critérios supramencionados não solucionam o conflito.

Dentro dessas circunstâncias, apresenta um quarto critério para a solução das antinomias, o qual seria o critério da forma da norma no tocante às normas imperativas, proibitivas e permissivas. Nesses casos, a antinomia seria resolvida pela prevalência da norma permissiva em relação à norma proibitiva.

Parece-nos que essa solução não seria a mais completa, considerando que na incidência de antinomias e, na hipótese de não poder ser sanada dentro dos critérios indicados por Bobbio, a solução pode ser equacionada mediante a utilização dos princípios gerais de direito.

 

3 – CONCLUSÃO

Neste trabalho, buscamos fazer uma síntese dos conceitos atinentes à norma e ao sistema jurídico das principais obras, principalmente extraídos do pensamento de Kelsen e Norberto Bobbio. Não tecemos crítica a qualquer das doutrinas, apenas nos limitamos a expor o pensamento tal como descrito nas obras. Neste momento, faremos algumas considerações finais sobre o quanto explanado.

Parece-nos que é necessário fazer uma distinção entre a realidade físico-natural – a natureza, pertencente ao mundo do ser – e realidade jurídico-normativa, pertencente ao mundo do dever-ser. Sem referida distinção, quer nos parecer extremamente difícil a existência do Direito.

Para Kelsen, o princípio fundamental norteia toda a estrutura da ciência do Direito e, esta, por ser uma ciência normativa, tem por objeto o Direito Positivo.

Importante também nos parece é a construção escalonada do ordenamento jurídico. Por meio da norma fundamental, Kelsen concebe o sistema jurídico fechado e estruturado hierarquicamente, em que as normas jurídicas pertenceriam ao sistema jurídico.

Daí resulta que o Direito é composto de um sistema de normas jurídico-positivo-coercitivas, com previsão de sanções cujo fundamento de validade é a norma fundamental do sistema.

Interessante também nos parece a importante distinção que faz Kelsen acerca do conceito de proposição jurídica, que possibilita à ciência jurídica delinear seu objeto, dando-lhes juízes de valor capazes de descrever a norma jurídica.

Ou seja, a proposição jurídica demonstra possíveis significados para a norma jurídica isenta de valorações subjetivas, considerando que no mundo jurídico a argumentação é a tônica que se faz presente através da interpretação dada ao problema jurídico, posto onde se buscam soluções normativas através do arcabouço normativo existente no sistema jurídico. Por certo que o ideal de justiça está intrinsecamente ligado a essa interpretação, uma vez que aquele que faz a interpretação da norma busca dar-lhe a solução mais justa.

Este estudo não teve a pretensão de esgotar toda a matéria ante a sua complexidade e dialeticidade, no entanto, este pequeno trabalho serviu como exercício para melhor compreender a norma jurídica que dá completude ao Direito.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico – São Paulo: EDIPRO, 2. Ed. 2014-11-17

 

FERRARZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito – 3ª edição – São Paulo: Atlas, 2001.

 

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 



[1] Dicionário Jurídico. Disponível em: http://www.elfez.com.br/elfez/Normajuridica.htmil. Acesso em 7/11/2014.

[2] Engisch, Karl: Introdução ao Pensamento Jurídico – Fundação Calouste Gulbenzian/Lisboa: 9ª edição, pág. 52.

[3] Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, pág. 81.

[4] Anotações à Teoria das Normas Jurídicas. Disponível em https://sigaa.ufrn.br/sigaa/verProducao?idProdcao=858&Key=68db7443c6476hc9db519f1c0d6144db. Acessado em 10/11/2014.

[5] Ferraz Júnior, Tercio Sampaio: Introdução ao estudo de deito – 3ª edição – São Paulo: Atlas, 2001, pág. 98.

[6] Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, pág. 80.

[7] Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, pág. 217.

[8] Ferraz Júnior, Tercio Sampaio: Introdução ao estudo do Direito – 3ª edição – São Paulo: Atlas, 2001, pág. 184.

[9] Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, pág. 387.

[10] A jurisprudência dos conceitos foi a primeira subcorrente do positivismo jurídico, segundo a qual a norma escrita deve refletir conceitos, quando de sua interpretação. Seus principais representantes foram Ihering, Savigny e Puchta, considerado por muitos como seu fundador.

Foi, portanto, a precursora da ideia de que o direito provém de fonte dogmática, imposição do homem sobre o homem e não consequência natural de outras ciências ou da fé metafísica.

Entre as principais características da jurisprudência dos conceitos estão: o formalismo, com a busca do direito na lei escrita; a sistematização; a busca de justificação da norma específica com base na mais geral .

Ou seja, segundo essa escola, o direito deveria, prevalentemente, ter base no processo legislativo, embora devesse ser justificado por uma ideia mais abrangente relativa a um sentido social. http://pt.wikipedia.org/wiki/Jurisprud%C3%AAncia_dos_conceitos. Acessado em 13/11/2014.

[11]Wikipédia, a enciclopédia livere. HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_jur%C3%ADdico. Acessado em 04/11/2014

[12] Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, pág. 217.

[13] Bobbio, Norberto: Teoria do ordenamento jurídico – São Paulo: EDIPRO, 2. Ed. 2014, pág.78

[14] Idem, pág. 80

[15] Kelsen, Hans: Teoria Pura do Direito – 6ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 1998, pág. 219.

[16] O ordenamento jurídico: unidade e coerência como exigências para caracterização do sistema. http://jus.com.br/imprimir/22680/o-ordenamento-juridico-unidade-e-ecoerencia-como-exigencias-para-a-carcterizacao-do-sistema. Acessado em 13/11/2014

[17] Bobbio, Norberto: Teoria do ordenamento jurídico – São Paulo: EDIPRO, 2. Ed. 2014, pág. 82.

[19] Idem, pág. 84.

[20] Obra citada.

[21] Bobbio, Norberto: Teoria do ordenamento jurídico – São Paulo: EDIPRO, 2. Ed. 2014, pág. 59.

[22] Bobbio, Norberto: Teoria do ordenamento jurídico – São Paulo: EDIPRO, 2. Ed. 2014, pág. 113.

[23] Idem, pág. 114.