ALFREDO BUZAID em sua obra "Do Concurso de Credores no Processo de Execução", p. 43/44, item n. 3, e p. 53, item n. 10, 1952, Saraiva, assim se refere a respeito da situação do devedor na Roma antiga:

"No período das 'legis actiones', a execução se processava normalmente contra a pessoa do devedor, através da 'legis actio per manus injectionem'. Confessada a dívida, ou julgada a ação, cabia a execução trinta dias depois, sendo concedido êsse prazo a fim de o devedor poder pagar o débito. Se êste não fôsse solvido, o exeqüente lançava as mãos sôbre o devedor e o conduzia a juízo. Se o executado não satisfizesse o julgado e se ninguém comparecesse para afiançá-lo, o exeqüente o levava consigo, amarrando-o com uma corda, ou algemando-lhe os pés. A pessoa do devedor era adjudicada ao credor e reduzida a cárcere privado durante sessenta dias. Se o devedor não se mantivesse à sua custa, o credor lhe daria diàriamente algumas libras de pão. Durante a prisão era levado a três feiras sucessivas e aí apregoado o crédito. Se ninguém o solvesse, era aplicada ao devedor a pena capital, podendo o exeqüente matá-lo, ou vendê-lo 'trans Tiberim'. Havendo pluralidade de credores, podia o executado na terceira feira ser retalhado; se fôsse cortado a mais ou a menos, isso não seria considerado fraude.

Como se pode observar, o processo civil romano era extremamente rigoroso. As pessoas que leem o relato acima, ficam chocados com os aspectos cruéis que cercavam tais procedimentos. Acham que hoje em dia eles seriam incabíveis, e acabam dando graças por não mais vigorar a possibilidade de escravidão do homem pelo homem ou da morte em virtude de uma dívida.

Será que é assim mesmo? Será que não houve apenas uma mudança na face da escravidão? Muitas vezes, ao nos depararmos com algumas espécies de contratos, principalmente os bancários, nos perguntamos se não estamos diante de uma espécie de neoescravidão.

É claro que o princípio da autonomia da vontade e de que os contratos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda), embora ainda sejam aplicados, foram amainados com o advento do Estado Social e com a massificação da economia. O Código de Defesa do Consumidor e o novo código civil deixaram clara a opção do legislador pela interferência do Estado, no momento que o contrato, mesmo sem qualquer vício de consentimento, deixa de contribuir para o bem comum.

Hoje, temos dois princípios que norteiam as relações civis e de consumo: o da função social e o da boa-fé objetiva. Determina o primeiro que os contratos existem para fazer circular a riqueza, gerando lucro, porém dele não podem advir efeitos reflexos lesivos ao meio social. Já, no segundo, a palavra de ordem é o equilíbrio contratual, ou seja, sempre que, no curso da relação, a balança mover-se excessivamente para um lado, o Estado poderá e deverá intervir para readequar a relação à boa-fé objetiva.

Nos contratos bancários, em regra, não há reparos a fazer sob o prisma da função social, já que os efeitos operados cingem-se às partes contratantes e o lucro está sendo produzido. Para a instituição financeira, ele vem sob a forma de juros remuneratórios e para o mutuário com a disponibilização da quantia desejada em um momento que ele necessita.

Acontece que o equilíbrio contratual não é constante durante o transcorrer do negócio ajustado.Num primeiro momento, o contrato é assinado e um determinado valor é colocado à disposição do mutuário.Durante essa fase aplicam-se unicamente os juros remuneratórios, para os quais, segundo a jurisprudência, o único limite possível é o da média de mercado.A via crucis do mutuário começa no caso de inadimplemento. A partir de então, sobre o débito passam a incidir multa moratória, comissão de permanência, correção monetária, e demais encargos. O devedor passa a não receber mais qualquer contraprestação do banco, havendo o trancamento das linhas de crédito, bloqueio de cartões, etc.... A partir desse momento, o devedor passa à condição de escravo do credor até o termo final do processo de execução. Ele passará a trabalhar apenas para pagar os juros moratórios e demais encargos da inadimplência. Terá seus bens penhorados, avaliados e vendidos em leilão ou adjudicados caso não consiga adimplir as obrigações que crescem tal qual uma bola de neve. Sua paz de espírito vai para o espaço, seu crédito e credibilidade desaparecem, sua dignidade é reduzida a nada.

Pergunto: será que a escravidão em virtude de dívidas cíveis terminou ou ela apenas está usando uma máscara que lhe dá um aspecto menos aterrorizante? Na verdade, ela colocou vestes mais humanas e passou a não atacar mais o homem em seu corpo físico. Hoje ela age sub-repticiamente, atacando o devedor internamente, reduzindo-o a um nada, destruindo sua dignidade e obstaculizando qualquer plano para o futuro, eis que suga toda a sua capacidade de trabalho para tentar deter o crescimento geométrico dos valores cobrados a título de juros de mora juntamente com todos os seus consectários.

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
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