NEGOCIAÇÃO COLETIVA NO SERVIÇO PÚBLICO BRASILEIRO: UMA PERSPECTIVA JURÍDICA

 

 

 

MARIANA MERCÊS PASSOS

MÁRIO CLEYDSON GÓIS DE OLIVEIRA

 

 

 

 

 

RESUMO:

A negociação coletiva de trabalho é um processo utilizado para aproximar empregados e empregadores, numa tentativa de que estes cheguem, em comum acordo, a uma decisão – que seja favorável a ambos - acerca do conflito ora estabelecido entre eles. Este estudo aborda seus aspectos gerais, bem como esclarece as principais questões acerca do processo de admissibilidade da negociação coletiva no serviço público brasileiro, através de uma breve análise da sua evolução histórica, legal e jurisprudencial no Brasil. Conclui-se que o Brasil já admite, por meio de ratificação de normas internacionais, a possibilidade do exercício da negociação coletiva no serviço público, mas que a ausência de expressa previsão constitucional ainda mantêm a jurisprudência contrária à sua efetividade.

Palavras-chave: Negociação Coletiva; Serviço Publico; Convenções 151 e 154, OIT.

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo trata sobra a negociação coletiva no serviço público brasileiro.

A negociação coletiva, segundo Sérgio Pinto Martins (2010, p. 805), “[...] é uma forma de ajuste de interesses entre as partes, que acertam os diferentes entendimentos existentes, visando encontrar uma solução capaz de compor suas posições”.

O tema foi escolhido em virtude da importância da negociação coletiva como um instrumento de aproximação entre empregado e empregador na composição de seus conflitos, entendendo-a não somente possível, como também necessária no serviço público brasileiro, ou seja, na relação servidor x Estado.

Serão abordados, durante o desenvolvimento do artigo, aspectos gerais relativos à evolução histórica da negociação coletiva, tanto no Brasil, quanto no mundo, bem como os princípios que a regem e os seus objetivos. Abordam-se, igualmente, o posicionamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da jurisprudência, bem como a legislação pátria dispensada ao tema. Para tal, utilizou-se como metodologia a revisão bibliográfica.

Em suma, busca-se esclarecer por meio deste artigo a evolução histórica da negociação coletiva no serviço público brasileiro.

 1  BREVE HISTÓRICO E ASPECTOS GERAIS

O surgimento da negociação coletiva possui vínculos estreitos com os movimentos operários do final do século XIX e início do século XX, quando os trabalhadores de diferentes lugares e não uniformemente, passaram a lutar por melhorias no âmbito laboral- inclusive através de imposições por melhores condições físicas de trabalho, e contra a restrição do acesso à atividade ou profissão etc. (RUPRECHT, 1995, p 262).

 Após passar por um período de repressão por parte da doutrina liberal, que via no sindicalismo uma perturbação à ordem social, a negociação coletiva ganhou espaço no cenário internacional, especialmente após a I Guerra Mundial, que pôs, no campo de batalha, os homens de diversas classes sociais em pé de igualdade.

No Brasil, a negociação coletiva passou a ser tutelada pelo ordenamento jurídico a partir da década de 30. O primeiro instrumento para o seu reconhecimento foi o Decreto nº. 19.770/1931, que regulava a sindicalização das classes patronais e operárias. Posteriormente, o Decreto nº. 21.761/1932 veio a regulamentar a convenção coletiva. O reconhecimento constitucional veio com a Constituição de 1934, sendo mantido nas Constituições de 1937, 1946 e na Emenda Constitucional de 1969. A Carta Magna de 1988 manteve a tutela à negociação coletiva, elencando-a como um direito social, conforme se verifica no art. 7º, XXVI (BARBOSA, 2004, p. 77).

Considerada como um dos institutos mais significativos do regime trabalhista, a negociação coletiva é, atualmente, considerada a base do moderno direito do trabalho.

 De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT):

Entende-se por negociação coletiva (ou expressões equivalentes) não só as discussões que culminam num contrato (convenção ou acordo) coletivo conforme o define e regulamenta a lei, mas, além disso, todas as formas de tratamento entre empregadores e trabalhadores ou entre seus respectivos representantes, sempre e quando suponham uma negociação no sentido corrente da palavra. (RUPRECHT, 1995, p.264)

A negociação coletiva é, pois, um dos principais instrumentos de aproximação entre empregados e empregadores, onde ambos se permitem transigir acerca de seus interesses, em busca de melhores condições de trabalho e emprego.

Não se deve, porém, confundir a negociação coletiva com a convenção e/ou com o acordo coletivo. Estes são possíveis resultados do procedimento de superação de conflitos, que é a negociação coletiva. Não alcançados aqueles, esta não terá deixado de existir.

Acerca dos princípios a serem seguidos pela negociação coletiva, tem-se que, além dos princípios gerais de direito[1], deve ela pautar-se nos seguintes princípios:

a) Princípio da Subsidiariedade, segundo o qual só caberá ao Estado exercer o papel de intermediador nas negociações coletivas quando os cidadãos ou os corpos sociais intermediários (a exemplo do sindicato e das empresas) não o puderem fazer diretamente;

b) Princípio da Interveniência Sindical na Normatização Coletiva ou Princípio da Obrigatoriedade da Atuação Sindical, que, embasado legalmente no art. 8º, VI, CF/1988, estabelece que para que uma negociação coletiva seja considerada válida é necessária a participação do sindicato;

c) Princípio da Equivalência dos Contratantes Coletivos, para o qual se deve buscar entre as partes tanto a igualdade do aspecto coletivo, quanto a igualdade de poder dos instrumentos que se põe à disposição das partes para o ensejo da negociação;

d) princípio da Lealdade e Transparência na Negociação Coletiva, que enseja o compromisso das partes com a verdade, no sentido de que ambas devem zelar pelos meios que possibilitem à outra parte a verificação das condições de cumprimento do que fora acordado entre elas. Tal a importância desse princípio, que a OIT a consagrou na Recomendação 163 dizendo que “medidas condizentes com as condições nacionais devem ser tomadas, se necessário, para que as partes tenham acesso à informação necessária a negociações significativas” (BARBOSA, 2004, p. 77).

Quanto aos fins colimados pela negociação coletiva, pode-se afirmar que o seu principal objetivo é a adoção de decisões, em comum acordo, pelas partes, acerca do(s) conflito(s) ora existente(s) entre elas, visando à estipulação de melhores condições de trabalho e emprego, no âmbito das respectivas representações. Também como objetivo da negociação coletiva, pode-se citar o estímulo à participação de empregados e empregadores na composição dos seus interesses. Por último, como um dos fins da negociação coletiva, pode-se falar na moderação das exigências de uma das partes, caso apresentem-se em exagero, no sentido de que, por meio da negociação coletiva, deve-se chegar a um acordo que, de preferência, satisfaça a ambas as partes.

A negociação coletiva, em conjunto com a lei, apresenta-se como uma das fontes do Direito Individual do Trabalho, sendo capaz de envolver uma série de pessoas em diversas sociedades, abrangendo uma vasta gama de matérias (seguridade social, planejamento, política econômica e social etc.) e métodos, permitindo, assim, a sua adaptação a diversas realidades no âmbito trabalhista, o que só ratifica a sua importância no cenário mundial.

 2  NORMAS INTERNACIONAIS

A Convenção nº 87, de 9 de julho de 1948, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), positiva no Direito Internacional o princípio da liberdade sindical. Segundo seu artigo 2º, é dado aos trabalhadores e aos empregadores formarem organizações para defenderem seus respectivos interesses, não necessitando para isso de autorização prévia. Menciona-se, ainda, a possibilidade de filiação à associação formada, desde que o candidato à filiação submeta-se ao estatuto da organização.

Como forma de proteção contra ingerências estatais, em especial do Poder Executivo, a referida Convenção enfatiza em seu artigo 4º que não haverá dissolução ou suspensão de atividades das organizações de trabalhadores ou empregadores por via administrativa. Além disso, em seu artigo 3º, parágrafo 2º, a Convenção n 87/1948, da OIT, prescreve a não intervenção das autoridades públicas de tal forma que limite ou impossibilite o exercício da liberdade de associar-se.

Tal instrumento visa a indicar diretrizes gerais sobre como a liberdade sindical deve ser exercida, especialmente nos aspectos que dizem respeito à auto-organização dessas instituições através da criação de seus próprios estatutos e da liberdade em relação ao Estado, seja do ponto de vista da sua gênese, seja do ponto de vista da defesa dos interesses de seus afiliados.

Ressalte-se que a Convenção nº 87/1948, da OIT, não foi ratificada pelo Congresso Nacional devido à sua incompatibilidade com a Constituição Brasileira de 1988. Esta diz em seu artigo 8º, inciso II, que “é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial [...] não podendo ser inferior à área de um município”(teoria da unicidade sindical). Já a mencionada Convenção não faz tal limitação, entendendo-se, assim, que ela defende a pluralidade sindical, ou seja, a possibilidade de existência de mais de uma organização sindical no mesmo território.

A liberdade sindical é de fundamental importância para que empregadores e trabalhadores, mormente estes últimos, possam exercer outros direitos. Somente quando os dois lados de um conflito estão em condições equivalentes de negociação é que se pode chegar a uma solução mais equilibrada. Sem isso, o mais fraco (economicamente, em especial) quase sempre sairia em desvantagem.

Em 1º de julho de 1949, a OIT lançou a Convenção nº 98, que trata do direito de organização e de negociação coletiva. Nessa Convenção, estabelece-se a não subordinação da manutenção do emprego do trabalhado à sua não filiação a organizações de trabalhadores, como também a proibição de dispensa de trabalhadores que se filiem ou que participem de movimento de trabalhadores.

Essa Convenção ainda prescreve que mecanismos de proteção deverão ser criados para evitar ingerências dos empregadores nas organizações de trabalhadores, identificando como atos de ingerência:

[…] medidas destinadas a provocar a criação de organizações de trabalhadores dominadas por um empregador ou uma organização de empregadores, ou a manter organizações de trabalhadores por outros meios financeiros, com o fim de colocar essas organizações sob o controle de um empregador ou de uma organização de empregadores. (SUÍÇA. Convenção nº 98. Convenção relativa ao Direito de Organização e de Negociação Coletiva. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1949)

Atente-se para o fato de que, em seu artigo 6º, a Convenção relativa ao Direito de Organização e de Negociação Coletiva de 1949 não abrange os funcionários públicos a serviço do Estado, o que constituía obstáculo às tratativas entre este e aqueles.

Como forma de complementação da Convenção nº 98/1949, a OIT promulgou a Convenção nº 151, de 27 de junho de 1978, que fala do direito de sindicalização e relações de trabalho na administração pública. Tal norma internacional pretende proteger o direito do empregado público em criar associações para salvaguardar seus interesses.

Do entendimento do artigo 2º combinado com o parágrafo 1º do artigo 1º, depreende-se que, para a presente Convenção, empregado público é toda pessoa empregada pela Administração Pública. Assim, no caso brasileiro, seriam empregados públicos para fins do mencionado instrumento normativo a pessoa que trabalha tanto para a Administração Pública Direta quanto para a Indireta.

A Convenção n 151/1978, da OIT, prescreve em seu artigo 5º a total independência da associação de empregados públicos em relação às autoridades públicas, enfatizando, outrossim, que tais associações gozarão de proteção contra ingerências da Administração Pública. O artigo 5º, em seu parágrafo 3, cita algumas formas de ingerências, tais como os atos

[…] destinados a fomentar a constituição de organizações de empregados públicos dominadas pela autoridade pública, ou a sustentar economicamente, ou de outra forma, organizações de empregados públicos com o objetivo de colocar estas organizações sob o controle da autoridade pública. (SUÍÇA. Convenção nº 151. Direito de Sindicalização e Relações de Trabalho na Administração Pública. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1978)

Vê-se, assim, que a OIT protege não só o direito de sindicalização do trabalhador da iniciativa privada, mas também o do trabalhador do setor público. Não seria plausível deixar o empregado público, sendo esse termo tomado em seu sentido amplo, sem instrumentos para reivindicar seus legítimos interesses junto ao seu patrão, a Administração Pública, vez que certos governos promovem a desvalorização da carreira pública e do serviço público, seja através da estagnação dos salários durante vários anos, seja através da manutenção de péssimas condições de trabalho (p. ex., prédios velhos, falta de mobília, maquinário ultrapassado, entre outros).

Tendo-se garantido aos trabalhadores da iniciativa privada e do serviço público os direitos de organização e de negociação coletiva, a OIT pretendeu incentivar esta última, através da aprovação da Convenção nº 154, de 19 de junho de 1981, que trata do fomento à negociação coletiva.

A Convenção nº 154/1981, da OIT, diz, inicialmente, que tal instrumento normativo é aplicável a todos os ramos da atividade econômica, com a ressalva de que, no caso da Administração Pública, a legislação e as práticas nacionais poderão fixar modalidades especiais de aplicação da referida Convenção e até que ponto ela será utilizada quando se tratar de forças armadas e polícias.

Em seu artigo 2º, a referida Convenção define negociação coletiva e diz quando ela é aplicável. Segue a transcrição do dispositivo:

Art. 2 — Para efeito da presente Convenção, a expressão ‘negociação coletiva’ compreende todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com fim de:

a) fixar as condições de trabalho e emprego; ou

b) regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou

c) regular as relações entre os empregadores ou suas organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma só vez. (SUÍÇA. Convenção nº 154. Convenção sobre Negociação Coletiva. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1981)

Do artigo em análise, tem-se que a negociação coletiva não se trata de um documento (convenção coletiva, acordo coletivo ou lei). A questão principal da negociação coletiva é a abertura do canal de diálogo para as tratativas entre empregadores e trabalhadores que podem resultar em melhores condições de trabalho para o proletariado e no arrefecimento do conflito instaurado entre patrão e empregado.

Segundo o artigo 5º e parágrafos da mencionada Convenção, deverão ser adotadas medidas para estímulo à negociação coletiva, sendo esta garantida a todos os empregadores e classes de trabalhadores abrangidos por ela, podendo-se criar normas de procedimento acordadas entre as partes. Atente-se para o fato de que a negociação coletiva não será impedida pela falta ou impropriedade de tais normas.

A autoridade pública poderá, consoante artigo 7º da Convenção nº 154/1981, da OIT, adotar medidas para o estímulo à negociação coletiva, devendo haver consulta prévia e, quando possível, acordos entre aquela e as organizações de empregadores e trabalhadores. Contudo, do artigo 8º da referida Convenção, tem-se que essas medidas de estímulo nunca deverão ser concebidas e/ou aplicadas de forma a limitar o direito de negociação coletiva.

 3  A negociação coletiva de trabalho no serviço público brasileiro

 

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), de 05 de outubro de 1988, garante ao servidor público civil, em seu artigo 37, inciso VI e VII, primeira parte, o direito de livre associação sindical e o direito de greve, respectivamente. Tem-se, assim, que para tal categoria foram assegurados os direitos de liberdade sindical e de autotutela da relação de trabalho, embora esta última tenha que ser exercida nos termos e nos limites de lei específica, consoante preceitua o artigo 37, inciso VII, segunda parte, da CRFB/1988.

É interessante observar que o texto constitucional não explicitou o direito à negociação coletiva no serviço público. Daí, uma questão surge: ou o direito de negociação coletiva já está implícito no direito de liberdade sindical ou não.

Seria plausível acreditar que a negociação coletiva já estivesse embutida na liberdade sindical, já que inconcebível um direito de criar organizações de trabalhadores do serviço público sem que se desse a estas o direito de negociarem as reivindicações dos seus representados junto à Administração Pública. Todavia, não tem sido esse o entendimento reinante.

Em relação à Administração pública, entendimentos conservadores defendem duas teorias, a saber: a teoria da impermeabilidade e a teoria orgânica. Segundo a primeira delas, o Estado seria concebido como ente unitário, sendo que dentro dele não haveria relações jurídicas. As relações entre Estado e seus órgãos e agentes estariam fora do Direito. Tinha-se que:

Eram impensáveis as relações jurídicas internas ao Estado: relação jurídica pressupõe pluralidade de vontades e, no interior do aparelho estatal, o que haveria seria a mesma pessoa Estado, ou seja, uma só vontade. Sem pluralidade de pessoas e de vontades, não haveria relações jurídicas; não se trataria, consequentemente, de âmbito jurídico. (PINTO E NETTO, 2005, p.102)

Verifica-se que a teoria da impermeabilidade retira o aspecto de sujeito de direito do agente público, o que é inconcebível em um Estado democrático de direito. O agente faz parte da Administração Pública, sendo um com esta, quando executa as suas funções públicas. Mas, enquanto pessoa humana, tem os mesmos direitos e deveres que qualquer outro indivíduo, sendo aceitável que a sua vontade não coincida com a do Estado, seu patrão, principalmente quando este deixa de cumprir com a lei e com os seus deveres como empregador (por exemplo, atraso ou não pagamento dos vencimentos de seus agentes). Segundo Pinto e Netto (2005, p.105):

A superação da dogmática autoritária da impermeabilidade estatal é detectada pelo fato de se haver regulamentado juridicamente o âmbito interno da Administração, pelo reconhecimento dos direitos fundamentais, dos direitos subjetivos públicos, do princípio da proporcionalidade etc. Tudo isto aponta para a concepção do particular como sujeito de direito e não como objeto do poder, concepção esta que deve se espraiar para a função pública.

Tem-se ainda que:

A rejeição da teoria da impermeabilidade tem o mérito de tornar o âmbito interno da Administração sujeito ao Direito, sem que isto signifique afastar totalmente a diferenciação entre normas internas e externas – ambas as espécies são jurídicas, mas possuem diferentes destinatários. Neste contexto, as normas da função pública não podem ser entendidas apenas como partes do regime organizatório interno da Administração apartado do ordenamento geral: impõe-se entendê-las como normas jurídicas integrantes do ordenamento jurídico-constitucional. (PINTO E NETTO, 2005, p.105-106)

A teoria orgânica prega que a Administração Pública é um organismo cujas partes são seus órgãos e agentes. Aquela seria um ente coletivo cuja vontade não equivaleria às vontades dos indivíduos que a formam. Com base nisso, os “[...] agentes públicos, para a teoria orgânica, estariam privados de sua subjetividade, constituiriam objeto de domínio na organização estatal” (PINTO E NETTO, 2005, p. 108).

Do ponto de vista da teoria orgânica, o agente público, parte do organismo chamado Estado, teria que ser regido pelo Direito Público, devendo ter alta lealdade e comprometimento com os fins do Estado, de onde se extrai que ele, o agente público, deveria agir de forma ascética e imparcial, sem ter visões políticas ou partidárias. Tal teoria serviu de fundamento para negar ao agente público o direito de greve, de sindicalização e sua participação na fixação das condições de trabalhado por muito tempo (PINTO E NETO, 2005, p.109-110).

Um aspecto interessante da teoria orgânica do Estado reside no papel da remuneração do agente público. Segundo Pinto e Netto (2005, p.109):

Os fins estatais colocariam o agente em uma posição de especial obediência diante do Estado, devendo corresponder a este sacrifício pessoal em prol do bem comum uma retribuição que possibilitasse ao agente sustentar-se dignamente segundo a função desempenhada. Segundo a teoria orgânica, esta retribuição não poderia ser comparada àquela recebida pelos trabalhadores do setor privado, uma vez que a função pública não comporta conteúdo econômico. De fato, nos termos desta teoria, a quantia recebida pelo agente público não deve ser tida como contraprestação de um serviço, pois não se confunde com a prestação resultante de uma estipulação contratual, podendo, para alguns teóricos, até ser modificada sem que a isto possa se opor o agente.

Comentários semelhantes àqueles feitos em relação à teoria da impermeabilidade podem ser tecidos contra a teoria orgânica do Estado, pois esta novamente retira do agente público o seu aspecto de sujeito de direito, impondo-lhe deveres de lealdade e comprometimento, mas retirando-lhe certos direitos fundamentais, como aqueles referentes à negociação da remuneração e das condições de trabalho.

Em adição a essas duas teorias, tem-se o entendimento de que os serviços públicos são de interesse público. Assim, aplicando-se os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da unilateralidade das decisões, tem-se defendido que o servidor público não tem direito à negociação coletiva.

Observe-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) também tem entendido que o servidor público não tem direito a negociação coletiva, como pode ser visto da ementa de acórdão a seguir:

CONSTITUCIONAL. TRABALHO. JUSTIÇA DO TRABALHO. COMPETÊNCIA. AÇÕES DOS SERVIDORES PÚBLICOS ESTATUTÁRIOS. CF, art. 37, 39, 40, 41, 42 e 114. Lei nº 8.112, de 1990, art. 240, alíneas “d” e “e”.

I – Servidores públicos estatutários: direito à negociação coletiva e à ação coletiva frente à Justiça do Trabalho: inconstitucionalidade. Lei 8.112/90, art. 240, alíneas “d” e “e”.

II – Servidores públicos estatutários: incompetência da Justiça do Trabalho para o julgamento de seus dissídios individuais. Inconstitucionalidade da alínea “e” do art. 240 da Lei 8.112/90.

III – Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. ADI n 492-1/DF. Direito à negociação coletiva. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=ADI&numero=492&origem=AP>. Acesso em 02/11/2012)

Em sua redação original, a alínea “d” da Lei nº 8.112/1990 previa o direito de negociação coletiva para o servidor público civil da esfera federal. Tal alínea foi vetada pelo Presidente da República, veto esse que foi derrubado pelo Congresso Nacional. A ADI nº 492-1/DF, de 29/04/1991, tendo como requerente o Procurador-Geral da República e como requerido o Congresso Nacional, sendo relator o Ministro Carlos Velloso, teve como pedido que fossem declaradas inconstitucionais as alíneas “d” e “e” da referida lei, pedido esse que foi atendido pelo STF.

Mantendo-se o foco somente na alínea “d” que tratava da negociação coletiva, o STF entendeu que sendo estatutário o regime jurídico ao qual o servidor público federal está submetido, as regras de tal regime são alteradas unilateralmente pelo Estado-legislador, o que não dá direito ao servidor à manutenção do regime anterior. Além disso, enfatizou-se que o projeto de lei que trate de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração são de iniciativa privativa do Presidente da República, conforme redação do art. 61, § 1º, inciso II, alínea “a”, da CRFB/1988.

Saliente-se que o acórdão prolatado na ADI nº 492-1/DF é de 1992, já não se encaixando no cenário de uma Administração Pública moderna. Embora o projeto de lei seja de iniciativa do Presidente da República, na esfera federal, nada impede que seus pontos sejam discutidos com as organizações dos trabalhadores do serviço público. Vez que se prega uma Administração Pública que dialoga com seus administrados, é inaceitável que ela não dialogue também com os seus trabalhadores que são, ao mesmo tempo, seus administrados.

Do acórdão, tem-se uma certa confusão entre negociação coletiva e os instrumentos que a formalizam, já que se tem a idéia de que ela levaria, necessariamente, ao dissídio coletivo, o que resultaria em uma sentença normativa, ferindo-se, dessa forma, o princípio da legalidade no serviço público. Como visto alhures, não há que se confundir negociação coletiva com as suas formas de implementação. Negociação é tratativa, é criação de meios de diálogo entre as partes. A materialização das conversações tomam contornos diferentes caso se trate de iniciativa privada ou setor público.

Na iniciativa privada, o resultado da negociação coletiva poderá ser um acordo coletivo, uma convenção coletiva ou, em último caso, um dissídio coletivo, caso as partes cheguem a um impasse, situação na qual o Poder Judiciário decidirá a controvérsia.

No setor público, o resultado da negociação coletiva poderá ser um arquétipo de projeto de lei a ser encaminhando pelo Chefe do Executivo à Casa Legislativa, o que em nada agride os princípios da legalidade e do interesse público.

Ressalte-se que a posição sustentada pelo STF na ADI nº 492-1/DF perde fundamento perante as Convenções nº 151/1978 e 154/1981, ambas da OIT, já ratificadas pelo Brasil em 15/06/2010 e em 10/07/1992, respectivamente. A primeira garante o direito de negociação coletiva ao empregado da Administração Pública e a segunda visa a incentivá-la em todos os ramos da atividade econômica. Vê-se assim que, em relação do Direito Internacional, o acórdão do STF está anacrônico.

Deve ser pontuado que, no momento em que este artigo foi escrito, tramitava no Congresso Nacional a proposta de emenda constitucional (PEC) nº 369/2005, que, entre outros pontos, visa a alterar a redação do artigo 37, inciso VII, da CRFB/1988, para garantir ao servidor público não só o direito de greve, mas também o direito de negociação coletiva. Salienta a carta de intenções que acompanha a referida PEC que tal alteração tem por objetivo “viabilizar a negociação coletiva no serviço público por meio de lei específica, adaptando-a aos postulados de liberdade sindical no âmbito da Administração”.

Caso tal modificação venha a ser aprovada, não subsistirá argumentos jurídicos para se negar o direito de negociação coletiva ao empregado público, sendo este último termo tomado em seu sentido amplo.

 4  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo abordou, brevemente, a questão da negociação coletiva no serviço brasileiro. Iniciou-se falando sobre o histórico da negociação coletiva, onde foi dito que esta nasceu com os movimentos operários do final do século XIX, onde o proletariado buscava junto a seus empregadores melhores condições de trabalho. Tais movimentos ganharam força com a 1ª Guerra Mundial, pois juntou-se em um mesmo espaço trabalhadores de vários lugares e que sofriam a mesma espoliação por parte do patronato.

Viu-se também que a negociação coletiva foi introduzida no Brasil na década de 1930, tendo ganhado caráter constitucional em 1934, sendo que várias constituições posteriores a mantiveram, inclusive a de 1988, quando a negociação coletiva foi elevada a direito social.

Foi mostrado também que a negociação coletiva rege-se pelos princípios gerais do direito e por princípios próprios, a saber: princípio da subsidiariedade; princípio da interveniência sindical na normatização coletiva ou princípio da obrigatoriedade da atuação sindical; princípio da equivalência dos contratantes coletivos; princípio da lealdade e transparência na negociação coletiva.

Falou-se também sobre as convenções nºs 87/1948, 91/1949, 151/1978 e 154/1981 da OIT. A primeira delas trata do direito à liberdade sindical, a segunda trata do direito à negociação coletiva, a terceira do direito à negociação coletiva na Administração Pública e a última trata do fomento à negociação coletiva.

Explanou-se ainda que é impensável direito à sindicalização sem direito à negociação coletiva, pois reivindicar direitos junto ao empregador, seja ele um ente privado ou a Administração Pública, passa, necessariamente, por canais de diálogo e tratativas, podendo-se ou não chegar a um acordo.

Viu-se, outrossim, que negociação coletiva não se confunde com os meios concretização das tratativas, sejam eles acordo coletivo, convenção coletiva ou lei. Estes três últimos são a materialização daquilo que foi acordado entre as partes. Já a negociação coletiva é o canal de diálogo aberto pelas partes para tentarem chegar a uma solução do conflito.

Verificou-se que, embora existam normas internacionais que garantam ao servidor público o direito à negociação coletiva, a jurisprudência brasileira ainda lhe nega tal direito apegando-se, para isso, na falta de previsão constitucional expressa e nos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da unilateralidade das decisões.

Por fim, falou-se que a PEC nº 369/2005 pretende alterar o inciso VII, do artigo 37, da CRFB/1988, para garantir ao servidor público, além do direito de greve, o direito à negociação coletiva.

REFERÊNCIAS

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_____. Supremo Tribunal Federal. Constitucional. ADI n 492-1/DF. Direito à negociação coletiva. Disponível em : <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp?classe=ADI&numero=492&origem=AP>. Acesso em 02/11/2012.

FERREIRA, Silvana Zarth Soares. Negociação coletiva no serviço público federal: aspectos do ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/34599>. Acesso em 02/11/2012.

GERNIGON, Bernard; ODERO, Alberto; GUIDO, Orácio; NETO, José Francisco Siqueira; ANASTASIA, Antonio Augusto Junho. A negociação coletiva na administração pública brasileira. 1ª ed. Escritório de Brasílis. Oficina Internacional del Trabajo. 2002.

MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. 2ª.ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2011.

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 26ª ed. São Paulo: Editora Atlas. 2010.

PINTO E NETTO, Luísa Cristina. A Contratualização da Função Pública. 1a. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey. 2005.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 25ª ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2001.

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SUÍÇA. Convenção nº 87. Convenção sobre a Liberdade Sindical e à Proteção do Direito Sindical. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1948. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/content/convention_no>. Acesso em 02/11/2012.

_____. Convenção nº 98. Convenção relativa ao Direito de Organização e de Negociação Coletiva. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1949. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/convention>. Acesso em 02/11/2012.

_____. Convenção nº 151. Direito de Sindicalização e Relações de Trabalho na Administração Pública. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1978. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/convention>. Acesso em 02/11/2012.

_____. Convenção nº 154. Convenção sobre Negociação Coletiva. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1981. Disponível em <http://www.oitbrasil.org.br/convention>. Acesso em 02/11/2012.

TEIXEIRA, Márcia Cunha. A negociação coletiva de trabalhado no serviço público. São Paulo. 2007. Disponível em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2138/tde-13122007-114804/pt-br.php>. Acesso em 02/11/2012.



[1]      De acordo com Miguel Reale (2001, p. 306), os princípios gerais de direito “são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas”. Para o autor, esses princípios, mais que cumprir a tarefa de preencher as lacunas da legislação, impregnam todo o Direito vigente. Como exemplos desses princípios, o autor cita (p. 307), entre outros: a proibição de locupletamentos ilícitos, a função social da propriedade, a economia das formas e dos atos de procedimentos e a boa fé como pressuposto da conduta jurídica.