NATUREZA JURÍDICA DA POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL À LUZ DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL[1]

 

Débora Costa Sousa[2]

Graziele Silva Montenegro[3]

Socorro Almeida de Carvalho[4]

Sumário: 1 Introdução; 2 Conceito de crime e o art. 28 da Lei de Drogas; 2.1 Conceito doutrinário de crime; 2.2 A definição legal de crime no Brasil; 3 Legitimidade da norma diante dos princípios do Direito Penal; 4 Conclusão. Referências

RESUMO

Desde que o legislador distinguiu usuário e traficante de drogas, culminando sanções diferenciadas,  a discussão jurídica acerca de sua natureza limitou-se à legislação positivada sem, todavia, discutir a legitimidade da norma do art. 28 da Lei n. 11.343 de 2006 . Assim, este trabalho pretende, além de expor os argumentos objetivos apontados pela doutrina e jurisprudência para determinar a natureza jurídica de tal norma, discutir a adequação do tratamento legislativo do usuário de drogas aos princípios do Estado liberal e democrático de direito. Para tanto, iniciará conceituando uma conduta criminosa, tanto através da perspectiva doutrinária quanto da determinação legal vigente no Brasil. Posteriormente a partir do já exposto, apresentará os critérios simplistas que corroboram com a afirmação de que houve a descriminalização, como também os que corroboram com a criminalização. Por fim, e mais importante, apresentará diversos princípios do Direito Penal, contrapondo-os com a norma em análise e o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas.

Palavras-Chave: Usuário. Descriminalização. Despenalização. Bem Jurídico. Autolesão. Princípios. Paternalismo. Ilegitimidade.

 

1 INTRODUÇÃO

A Lei n. 11.343 de 2006 distinguiu o usuário do traficante, tratando o porte para consumo pessoal próprio e o tráfico de drogas em capítulos distintos: o primeiro, como prevenção, com penas mais brandas; o segundo, como repressão, com maior rigor das penas cominadas.

Neste diapasão, sustentou parte da doutrina que o seu art. 28 teria abolido o caráter criminoso da conduta anteriormente descrita no art. 16 da Lei n. 6.368 de 1976, consistente em adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine a dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Tal afirmação se dá, principalmente, porque o possuidor de drogas para o consumo pessoal não estará sujeito, em princípio, à pena de reclusão ou detenção, mas sim a advertências sobre s efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas; enquanto que a Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei das Contravenções Penais considera crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa.

Para outros, entretanto, o aludido dispositivo contempla sim um crime, e houve tão somente uma despenalização moderada, pois não haveria óbices para que leis criem crimes sem imposição de pena de reclusão ou detenção.

De qualquer forma, o que a doutrina e a própria jurisprudência têm olvidado, quando da análise de tal conduta, é de fazê-la num contexto principiológico. O estudo acerca da natureza jurídica à luz dos princípios do Direito Penal se faz necessária, haja vista que os princípios reguladores do controle penal têm a função de orientar o legislador para a adoção de um sistema voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, mínimo e garantista, como assevera a melhor doutrina.

Em outras palavras, através de uma abordagem dialética com os princípios, é possível responder se seria adequado o tratamento legislativo das drogas aos preceitos do Estado liberal e democrático de direito, considerando a liberdade do usuário que não atinge diretamente terceiros. É questionar: é legítima a norma que protege as pessoas de autolesões?

2 CONCEITO DE CRIME E O ART. 28 DA LEI DE DROGAS

O primeiro passo para entender a natureza jurídica da conduta inserta no art. 28 da Lei de Drogas é saber no que consiste uma conduta criminosa. O entendimento doutrinário a respeito da conceituação de um crime, contudo, não é unívoco. Ademais, o legislador atribuiu um critério – muito criticado pela doutrina – para a identificação de crimes. Vejamos, pois, cada um desses conceitos.

2.1 Conceito Doutrinário de Crime

Não existe uma única forma na doutrina de conceituar um crime, como foi dito; mas três principais: o conceito formal, o material e o analítico.  Explica Bitencourt (2011) que pelo aspecto formal, crime é toda ação ou omissão proibida por lei, sob a ameaça de pena. Em outras palavras, seria conduta prevista pelo legislador e, consequentemente a mera subsunção da conduta ao tipo penal, não levando em consideração o dolo ou a culpa. Pelo aspecto material, aduz o autor que crime seria toda ação ou omissão que contraria os valores ou interesses do corpo social, exigindo sua proibição com a ameaça de pena. Assim, a principal preocupação desse conceito é a essência da conduta, ou seja, o animus.

É notório que os conceitos formal e material são insuficientes para permitir à dogmática penal a realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime. Destarte, elaborou-se a forma analítica de conceituação, que leva em consideração os elementos estruturais do crime. A conceituação analítica pode ser feita através de três perspectivas ou teorias, segundo os ensinamentos de Bitencourt (2011):

A primeira é a teoria bibartida ou bipartite, segundo a qual o crime seria todo fato típico e ilícito (ou antijurídico), e a culpabilidade seria analisada no momento de aplicar a pena. A segunda é a teoria tripartida ou tripartite, conceituando crime como fato típico, ilícito (ou antijurídico) e culpável. A terceira é a teoria quadripartida, com pouquíssimos adeptos, consistindo o crime em fato típico, ilícito (ou antijurídico), culpável e punível.

Durante muito tempo o entendimento dominante foi pela teoria bipartida. Atualmente, entretanto, apenas os autores mais tradicionais assim considera o conceito de crime. Bitencourt (2011) não acompanha este entendimento tradicional, segundo o qual crime é somente uma ação típica e antijurídica, admitindo a culpabilidade somente como mero pressuposto da pena. Tampouco, ao contrário de alguns autores, inclui a punibilidade no conceito de crime, porque, segundo o autor, ela não faz parte do crime, mas é tão somente sua consequência.

Levando em consideração como parâmetro qualquer das três as teorias decorrentes do conceito analítico – bipartida, tripartida e quadripartida – como critério, é possível afirmar que a posse de drogas para consumo pessoal é crime? Note-se que aqui se questiona tão somente a aplicação das teorias, não levando em consideração os princípios, a legitimidade de tal descrição típica e, tampouco, a definição legal de crime no Brasil. A resposta, a priori, parece ser afirmativa, já que o art. 28 da Lei de Drogas descreve uma ação, consistente em “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, sendo, portanto, típica, enquadrando-se, até aqui, na teoria bipartida. E, para quem assim entende, havendo capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta, será culpável, podendo ser, ainda, punível.  

Embora seja possível considerar a conduta descrita no art. 28 da Lei de Drogas um crime considerando tão somente as construções doutrinárias para sua conceituação, a análise da natureza jurídica de tal conduta não se encerra aqui. Assim, algumas considerações devem ser feitas em relação à definição legal de crime no Brasil paralelamente ao art. 28 da Lei de Drogas, além de, claro, dos princípios do direito penal.

2.2 A Definição Legal de Crime no Brasil

O atual Código Penal brasileiro não define crime como já fez anteriormente, deixando a elaboração de seu conceito à doutrina nacional. De acordo com Bitencourt (2011), as experiências anteriores, além de puramente formais, eram incompletas e defeituosas, recomendando o bom-senso e abandono daquela prática. Então veio a Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 3.914/41), fazendo a seguinte definição de crime, em seu art. 1º, in verbis:

Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, soladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

A definição legal se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção, sem nenhuma preocupação científico-doutrinária, restringindo-se à natureza da pena de prisão aplicável. Assim, a doutrina quase que unanimemente repudia a definição legal.

Mesmo assim, há quem afirme que um dos motivos de ter havido a descriminalização formal da conduta inserta no art. 28 da Lei de Drogas foi justamente pelo fato de que ela não culmina a pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; mas, ao invés, trouxe outras sanções:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3o  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4o  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5o  A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6o  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7o  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Por outro lado, há quem afirme que não houve a abolição criminosa, mas tão somente uma despenalização moderada. Este, aliás, foi o entendimento do STF no RE 430105/RJ. Primeiramente, porque o art. 1º da Lei de Introdução não obsta a que a lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime pena diversa – como o fez o art. 28 da Lei de Drogas. A própria Constituição prevê, no seu art. 5º, inciso XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais.

Além desse, Luiz Flávio Gomes (2006), apesar de discordar, cita outros argumentos de quem defende tal posição, dentre os quais o que o art. 28 está inserido no Capítulo III, do Título III, intitulado “dos crimes e das penas”; o art. 28, §4 fala em “reincidência”, e segundo o Código Penal (art. 63) e a Lei de Introdução (art. 7º), é reincidente aquele que, depois de condenado por crime, pratica nova infração penal; o art. 30 da Lei de Drogas regulamenta a prescrição da posse de droga para consumo pessoal, e apenas os crimes (e contravenções penais) prescreveriam; o art. 28 deve ser processado e julgado nos termos do procedimento sumaríssimo da lei dos juizados, próprio para os crimes de menor potencial ofensivo etc.

Gomes (2006), que não concorda que houve tão somente a despenalização, e acredita que houve tanto a descriminalização formal quanto a despenalização refuta cada um desses argumentos. Ele acredita que o fato deixou de ser crime formalmente porque já não é punido com reclusão ou detenção. Também não seria uma infração administrativa, pois as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais. Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há qualquer cominação de pena de prisão), e se não é possível admitir que se trata de uma infração administrativa, só resta concluir que consiste em uma infração penal sui generis.

Para o Gomes (2006), e parte da doutrina, o fato de a Constituição prever, em seu art. 5º, inciso XLVI, penas outras que não a de reclusão a e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais – como no caso do art. 28 – não conflitaria, ao contrário, reforçaria a tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente por conta das penas alternativas distintas. O autor ancora sua posição, ademais, em outros argumentos, tais como o de que a etiqueta dada ao Capítulo III, do Título III, da Lei de Drogas (“Dos crimes e das penas”) não confere, por si só, a natureza de crime para o art. 28, porque o legislador, em muitos dispositivos, não tem apreço ao rigor técnico.

O Min. Relator no RE 430105/RJ, todavia afirma que “a tese e que essa conduta passou a constituir infração penal sui generis implica sérias consequências, que estão longe de se restringirem à esfera puramente acadêmica” (2007, p. 5).

O fato é que, tanto o posicionamento que considera que não houve a descriminalização, mas tão somente uma despenalização moderada; bem como o que considera que houve tanto a descriminalização quanto a despenalização, ignoram a apreciação do tema através de uma abordagem dialética com os princípios do Direito Penal. Assim, antes de concluir pela criminalização ou não da conduta de possuir drogas para o consumo pessoal, é necessário averiguar se seria legítima tal criminalização.

3 LEGITIMIDADE DA NORMA DIANTE DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL

Como foi exposto, existem argumentos objetivos contundentes que corroboram tanto um posicionamento quanto o outro acerca da descriminalização ou não do art. 28 da Lei de Drogas. Esses conceitos ou critérios, entretanto, são insuficientes se se pretende uma análise eficiente do assunto. Mesmo assim, a discussão da doutrina e da jurisprudência acerca das drogas parece limitar-se à legislação positivada, sem considerar a legitimidade da norma e os princípios do Direito Penal.

O que realmente importa, na verdade, é se seria adequado o tratamento legislativo das drogas aos preceitos do Estado liberal e democrático de direito, considerando a liberdade do usuário que não atinge diretamente terceiros. Em outras palavras, se pensarmos nos princípios da insignificância, da ofensividade, da adequação social, da intervenção mínima e da alteridade e transcendentalidade, considerando que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública em geral (um bem difuso) e que o dano está restrito ao próprio usuário, há que se falar de criminalização legítima?

Estabelece o art. 28 da lei que é proibido adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Marinelli (2009) frisa a expressão “para consumo pessoal”, pois daí pode-se extrair uma conclusão importante para a discussão da legitimidade do crime:

A leitura do artigo nos remete à seguinte afirmação: para o legislador, o simples fato de possuir drogas para consumo próprio é fato merecedor de sanção penal. A lei não está a reprimir uma lesão ou um perigo de lesão a alguém, simplesmente está a interferir na conduta de alguém que deseja consumir substância entorpecente. Quer dizer, na verdade, existe a possibilidade de uma autolesão do usuário de drogas e a lei, por meio da pena, pretende impedir tal consequência (MARTINELLI, 2009, p. 16).

Segundo Martinelli (2009), podemos até dizer que, na medida em que diversas pessoas consomem entorpecentes, a soma das autolesões acaba por atacar o bem saúde pública. Tal ideia, diz o autor, pode ser vinculada à teoria dos “delitos por cumulação”, segundo a qual a lei pode proibir comportamentos individuais que, isoladamente, não representem dano a um bem, mas, se ocorrerem cumulativamente, podem ser prejudiciais. No entanto, confrontando a questão com os princípios do direito penal no Estado democrático de direito, percebe-se que o problema que enxergamos é anterior à teoria do delito. É um problema de legitimidade da norma.

Explica Bitencourt (2011, p. 51) que pelo princípio da insignificância, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico”. Assim, seria imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Dessa forma, as condutas que se amoldam a determinado tipo penal sob o ponto de vista formal, mas não apresentam nenhuma relevância material, pode-se, nessas circunstâncias, afastar liminarmente a tipicidade penal, porque, em verdade, o bem jurídico não chegou a ser lesado. Em suma, a insignificância da ofensa afasta a tipicidade.

Outro princípio a ser analisado na visão de Bitencourt (2011, p. 52) é o da ofensividade. Por ele, para que se tipifique algum crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, algum perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido. Para o autor, e assim o segue grande parte da moderna doutrina, “somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado”. Por essa razão é que, em Bitencourt, são inconstitucionais todos os crimes de perigo abstrato no âmbito do Direito Penal e de um Estado Democrático de Direito.

 O legislador deve abster-se, portanto, de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar em perigo concreto o bem jurídico protegido pela norma penal. Não se abstendo, pode ser exercida uma interpretação quando surge a oportunidade de operacionalizar-se o Direito Penal no momento em que se deve aplicar no caso concreto a norma penal.  É que, sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal.

Decorre do princípio da adequação social que o Direito Penal tipifica – ou, ao menos deveria tipificar – somente condutas que tenham uma certa relevância social. Bitencourt (2011) deduz, por consequência, que as condutas socialmente adequadas não podem ser consideradas criminosas.

O principio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, aduz Bitencourt (2011), preconizando que uma conduta só é legítima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Destarte, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes pra a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas, e não as penais.

Por fim, pelo princípio da alteridade e transcendentalidade, Martinelli (2009, p. 17) esclarece que não cabe ao direito penal intervir no comportamento de um sujeito para evitar autolesões quando existe capacidade de discernimento, isto é, o adulto capaz não pode ser reprimido penalmente porque deseja provocar um dano em si mesmo. “Não é finalidade do direito penal coagir o adulto capaz a um comportamento que o Estado entende ser o melhor”.

Dessa forma é que reprimir a vontade de um adulto que queira praticar uma autolesão consentida não é legítimo ao direito penal. Trata-se de um comportamento paternalista do Estado pelas seguintes razões apontadas por Martinelli (2009): a) há uma interferência do Estado na vontade de alguém; b) para evitar uma autolesão; c) para buscar o bem da pessoa contra sua vontade. De fato, pode até ocorrer um dano indireto, mas não é isso que o tipo incrimina. O dano direto que se quer evitar é à saúde pública e o porte, assim como o uso efetivo individual só pode provocar danos a terceiros indiretamente, explica o autor.

Conceber o art. 28 como crime significa, então, qualificar o possuidor de droga para consumo pessoal como “criminoso”, quando na verdade não há vítima.

Não podemos apontar uma vítima em tal conduta, pois quem sofre o dano é aquele que age. Não é da natureza do direito penal reprimir comportamentos sem vítimas efetivas ou em potencial. A vitimização não é condição suficiente, mas é necessária, para tornar crime determinado comportamento. Se assim não fosse, qualquer comportamento imoral poderia residir na esfera penal, situação que não se encaixa no Estado democrático de Direito (MARTINELLI, 2009, p. 18).

Assim é que, em que pese o posicionamento do Supremo Tribunal Federal e as relevantes considerações doutrinárias, este trabalho filia-se ao entendimento de que houve tanto a despenalização quanto a descriminalização. Isso porque considerar uma criminalização da conduta em análise é também aceitar que é ilegítima, pois contraria todos os princípios do Direito Penal aqui expostos. Sendo ilegítima, não coaduna com o ordenamento jurídico.

4 CONCLUSÃO

Foi abordado que com a edição da Lei 11.343 de 2006, que distinguiu o usuário de drogas do traficante, não tardou a surgir na doutrina a visão de que houve a abolitio criminis acerca da posse de drogas para o consumo pessoal, consubstanciada no art. 28 da aludida Lei. Em contrapartida, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, bem como de muitos doutrinadores, foi de que não houve a abolição criminosa. Entretanto, essas discussões ativeram-se em critérios meramente objetivos e simplistas, como a definição legal de crime, uma hermenêutica meramente gramatical e a localização topográfica do dispositivo, não levando em consideração a questão mais importante: a legitimidade do tipo penal. 

Ocorre que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública – um bem jurídico difuso –, impassível de ser violado diretamente através de uma autolesão. Para que alguém responda criminalmente por um fato, deve-se delimitar a razão de sua punição e  a sua pena ter feito algo, sendo que ambas são inconcebíveis em relação à conduta em apreço. Não há como responsabilizar criminalmente alguém que praticou uma autolesão, pois o dano não sai da esfera da própria pessoa que age contra a lei. Seria, antes de um crime ou uma infração penal sui generis, uma norma ilegítima.

Por isso é que não importa, em verdade, os demais argumentos objetivos apresentados pela doutrina e jurisprudência. Apenas a infração a diversos princípios do direito penal, em especial o da alteridade e transcendentalidade, é suficiente para entendemos que houve tanto a despenalização quanto a descriminalização da conduta em apreço. Pensar o contrário é, além de ter que aceitar uma criminalização ilegítima, ignorar os ditames do Estado democrático de direito. 

 

                                                                                                                   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

Gomes, Luiz Flávio. CUNHA, Rogério Sanches.  Posse de Drogas Para Consumo Pessoal. LFG, 2006. Disponível em: <http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20061212113559593&mode=print>. Acesso em 20 de Ago de 2013.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Vol 1, 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 430.105-QO/RJ. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Recorrido: Juízo de Direito do X Juizado Especial Criminal da Comarca do Rio de Janeiro. Recorrido: Juízo de Direito da 29ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. DF – Distrito Federal.

MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo na Lei de Drogas. Revista Liberdades. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, 2009. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/15-ARTIGO>. Acesso em 05 de set de 2013.

 

 

 



[1] Paper apresentado à disciplina Direito Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Aluna do 6º Período do Curso de Direito da UNDB

[3] Aluna do 6º Período do Curso de Direito da UNDB

[4] Professora orientadora

NATUREZA JURÍDICA DA POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL À LUZ DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL[1]

 

Débora Costa Sousa[2]

Graziele Silva Montenegro[3]

Socorro Almeida de Carvalho[4]

 

 

Sumário: 1 Introdução; 2 Conceito de crime e o art. 28 da Lei de Drogas; 2.1 Conceito doutrinário de crime; 2.2 A definição legal de crime no Brasil; 3 Legitimidade da norma diante dos princípios do Direito Penal; 4 Conclusão. Referências

 

 

RESUMO

Desde que o legislador distinguiu usuário e traficante de drogas, culminando sanções diferenciadas,  a discussão jurídica acerca de sua natureza limitou-se à legislação positivada sem, todavia, discutir a legitimidade da norma do art. 28 da Lei n. 11.343 de 2006 . Assim, este trabalho pretende, além de expor os argumentos objetivos apontados pela doutrina e jurisprudência para determinar a natureza jurídica de tal norma, discutir a adequação do tratamento legislativo do usuário de drogas aos princípios do Estado liberal e democrático de direito. Para tanto, iniciará conceituando uma conduta criminosa, tanto através da perspectiva doutrinária quanto da determinação legal vigente no Brasil. Posteriormente a partir do já exposto, apresentará os critérios simplistas que corroboram com a afirmação de que houve a descriminalização, como também os que corroboram com a criminalização. Por fim, e mais importante, apresentará diversos princípios do Direito Penal, contrapondo-os com a norma em análise e o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas.

Palavras-Chave: Usuário. Descriminalização. Despenalização. Bem Jurídico. Autolesão. Princípios. Paternalismo. Ilegitimidade.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A Lei n. 11.343 de 2006 distinguiu o usuário do traficante, tratando o porte para consumo pessoal próprio e o tráfico de drogas em capítulos distintos: o primeiro, como prevenção, com penas mais brandas; o segundo, como repressão, com maior rigor das penas cominadas.

Neste diapasão, sustentou parte da doutrina que o seu art. 28 teria abolido o caráter criminoso da conduta anteriormente descrita no art. 16 da Lei n. 6.368 de 1976, consistente em adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine a dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Tal afirmação se dá, principalmente, porque o possuidor de drogas para o consumo pessoal não estará sujeito, em princípio, à pena de reclusão ou detenção, mas sim a advertências sobre s efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas; enquanto que a Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei das Contravenções Penais considera crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa.

Para outros, entretanto, o aludido dispositivo contempla sim um crime, e houve tão somente uma despenalização moderada, pois não haveria óbices para que leis criem crimes sem imposição de pena de reclusão ou detenção.

De qualquer forma, o que a doutrina e a própria jurisprudência têm olvidado, quando da análise de tal conduta, é de fazê-la num contexto principiológico. O estudo acerca da natureza jurídica à luz dos princípios do Direito Penal se faz necessária, haja vista que os princípios reguladores do controle penal têm a função de orientar o legislador para a adoção de um sistema voltado para os direitos humanos, embasado em um Direito Penal da culpabilidade, mínimo e garantista, como assevera a melhor doutrina.

Em outras palavras, através de uma abordagem dialética com os princípios, é possível responder se seria adequado o tratamento legislativo das drogas aos preceitos do Estado liberal e democrático de direito, considerando a liberdade do usuário que não atinge diretamente terceiros. É questionar: é legítima a norma que protege as pessoas de autolesões?

 

2 CONCEITO DE CRIME E O ART. 28 DA LEI DE DROGAS

O primeiro passo para entender a natureza jurídica da conduta inserta no art. 28 da Lei de Drogas é saber no que consiste uma conduta criminosa. O entendimento doutrinário a respeito da conceituação de um crime, contudo, não é unívoco. Ademais, o legislador atribuiu um critério – muito criticado pela doutrina – para a identificação de crimes. Vejamos, pois, cada um desses conceitos.

 

2.1 Conceito Doutrinário de Crime

Não existe uma única forma na doutrina de conceituar um crime, como foi dito; mas três principais: o conceito formal, o material e o analítico.  Explica Bitencourt (2011) que pelo aspecto formal, crime é toda ação ou omissão proibida por lei, sob a ameaça de pena. Em outras palavras, seria conduta prevista pelo legislador e, consequentemente a mera subsunção da conduta ao tipo penal, não levando em consideração o dolo ou a culpa. Pelo aspecto material, aduz o autor que crime seria toda ação ou omissão que contraria os valores ou interesses do corpo social, exigindo sua proibição com a ameaça de pena. Assim, a principal preocupação desse conceito é a essência da conduta, ou seja, o animus.

É notório que os conceitos formal e material são insuficientes para permitir à dogmática penal a realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime. Destarte, elaborou-se a forma analítica de conceituação, que leva em consideração os elementos estruturais do crime. A conceituação analítica pode ser feita através de três perspectivas ou teorias, segundo os ensinamentos de Bitencourt (2011):

A primeira é a teoria bibartida ou bipartite, segundo a qual o crime seria todo fato típico e ilícito (ou antijurídico), e a culpabilidade seria analisada no momento de aplicar a pena. A segunda é a teoria tripartida ou tripartite, conceituando crime como fato típico, ilícito (ou antijurídico) e culpável. A terceira é a teoria quadripartida, com pouquíssimos adeptos, consistindo o crime em fato típico, ilícito (ou antijurídico), culpável e punível.

Durante muito tempo o entendimento dominante foi pela teoria bipartida. Atualmente, entretanto, apenas os autores mais tradicionais assim considera o conceito de crime. Bitencourt (2011) não acompanha este entendimento tradicional, segundo o qual crime é somente uma ação típica e antijurídica, admitindo a culpabilidade somente como mero pressuposto da pena. Tampouco, ao contrário de alguns autores, inclui a punibilidade no conceito de crime, porque, segundo o autor, ela não faz parte do crime, mas é tão somente sua consequência.

Levando em consideração como parâmetro qualquer das três as teorias decorrentes do conceito analítico – bipartida, tripartida e quadripartida – como critério, é possível afirmar que a posse de drogas para consumo pessoal é crime? Note-se que aqui se questiona tão somente a aplicação das teorias, não levando em consideração os princípios, a legitimidade de tal descrição típica e, tampouco, a definição legal de crime no Brasil. A resposta, a priori, parece ser afirmativa, já que o art. 28 da Lei de Drogas descreve uma ação, consistente em “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, sendo, portanto, típica, enquadrando-se, até aqui, na teoria bipartida. E, para quem assim entende, havendo capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta, será culpável, podendo ser, ainda, punível.  

Embora seja possível considerar a conduta descrita no art. 28 da Lei de Drogas um crime considerando tão somente as construções doutrinárias para sua conceituação, a análise da natureza jurídica de tal conduta não se encerra aqui. Assim, algumas considerações devem ser feitas em relação à definição legal de crime no Brasil paralelamente ao art. 28 da Lei de Drogas, além de, claro, dos princípios do direito penal.

 

2.2 A Definição Legal de Crime no Brasil

O atual Código Penal brasileiro não define crime como já fez anteriormente, deixando a elaboração de seu conceito à doutrina nacional. De acordo com Bitencourt (2011), as experiências anteriores, além de puramente formais, eram incompletas e defeituosas, recomendando o bom-senso e abandono daquela prática. Então veio a Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 3.914/41), fazendo a seguinte definição de crime, em seu art. 1º, in verbis:

 

Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, soladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

 

A definição legal se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção, sem nenhuma preocupação científico-doutrinária, restringindo-se à natureza da pena de prisão aplicável. Assim, a doutrina quase que unanimemente repudia a definição legal.

Mesmo assim, há quem afirme que um dos motivos de ter havido a descriminalização formal da conduta inserta no art. 28 da Lei de Drogas foi justamente pelo fato de que ela não culmina a pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; mas, ao invés, trouxe outras sanções:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3o  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4o  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5o  A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6o  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7o  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

Por outro lado, há quem afirme que não houve a abolição criminosa, mas tão somente uma despenalização moderada. Este, aliás, foi o entendimento do STF no RE 430105/RJ. Primeiramente, porque o art. 1º da Lei de Introdução não obsta a que a lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime pena diversa – como o fez o art. 28 da Lei de Drogas. A própria Constituição prevê, no seu art. 5º, inciso XLVI, penas outras que não a de reclusão e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais.

Além desse, Luiz Flávio Gomes (2006), apesar de discordar, cita outros argumentos de quem defende tal posição, dentre os quais o que o art. 28 está inserido no Capítulo III, do Título III, intitulado “dos crimes e das penas”; o art. 28, §4 fala em “reincidência”, e segundo o Código Penal (art. 63) e a Lei de Introdução (art. 7º), é reincidente aquele que, depois de condenado por crime, pratica nova infração penal; o art. 30 da Lei de Drogas regulamenta a prescrição da posse de droga para consumo pessoal, e apenas os crimes (e contravenções penais) prescreveriam; o art. 28 deve ser processado e julgado nos termos do procedimento sumaríssimo da lei dos juizados, próprio para os crimes de menor potencial ofensivo etc.

Gomes (2006), que não concorda que houve tão somente a despenalização, e acredita que houve tanto a descriminalização formal quanto a despenalização refuta cada um desses argumentos. Ele acredita que o fato deixou de ser crime formalmente porque já não é punido com reclusão ou detenção. Também não seria uma infração administrativa, pois as sanções cominadas devem ser aplicadas pelo juiz dos juizados criminais. Se não se trata de um crime nem de uma contravenção penal (mesmo porque não há qualquer cominação de pena de prisão), e se não é possível admitir que se trata de uma infração administrativa, só resta concluir que consiste em uma infração penal sui generis.

Para o Gomes (2006), e parte da doutrina, o fato de a Constituição prever, em seu art. 5º, inciso XLVI, penas outras que não a de reclusão a e detenção, as quais podem ser substitutivas ou principais – como no caso do art. 28 – não conflitaria, ao contrário, reforçaria a tese de que o art. 28 é uma infração penal sui generis exatamente por conta das penas alternativas distintas. O autor ancora sua posição, ademais, em outros argumentos, tais como o de que a etiqueta dada ao Capítulo III, do Título III, da Lei de Drogas (“Dos crimes e das penas”) não confere, por si só, a natureza de crime para o art. 28, porque o legislador, em muitos dispositivos, não tem apreço ao rigor técnico.

O Min. Relator no RE 430105/RJ, todavia afirma que “a tese e que essa conduta passou a constituir infração penal sui generis implica sérias consequências, que estão longe de se restringirem à esfera puramente acadêmica” (2007, p. 5).

O fato é que, tanto o posicionamento que considera que não houve a descriminalização, mas tão somente uma despenalização moderada; bem como o que considera que houve tanto a descriminalização quanto a despenalização, ignoram a apreciação do tema através de uma abordagem dialética com os princípios do Direito Penal. Assim, antes de concluir pela criminalização ou não da conduta de possuir drogas para o consumo pessoal, é necessário averiguar se seria legítima tal criminalização.

 

3 LEGITIMIDADE DA NORMA DIANTE DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL

 

Como foi exposto, existem argumentos objetivos contundentes que corroboram tanto um posicionamento quanto o outro acerca da descriminalização ou não do art. 28 da Lei de Drogas. Esses conceitos ou critérios, entretanto, são insuficientes se se pretende uma análise eficiente do assunto. Mesmo assim, a discussão da doutrina e da jurisprudência acerca das drogas parece limitar-se à legislação positivada, sem considerar a legitimidade da norma e os princípios do Direito Penal.

O que realmente importa, na verdade, é se seria adequado o tratamento legislativo das drogas aos preceitos do Estado liberal e democrático de direito, considerando a liberdade do usuário que não atinge diretamente terceiros. Em outras palavras, se pensarmos nos princípios da insignificância, da ofensividade, da adequação social, da intervenção mínima e da alteridade e transcendentalidade, considerando que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública em geral (um bem difuso) e que o dano está restrito ao próprio usuário, há que se falar de criminalização legítima?

Estabelece o art. 28 da lei que é proibido adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Marinelli (2009) frisa a expressão “para consumo pessoal”, pois daí pode-se extrair uma conclusão importante para a discussão da legitimidade do crime:

A leitura do artigo nos remete à seguinte afirmação: para o legislador, o simples fato de possuir drogas para consumo próprio é fato merecedor de sanção penal. A lei não está a reprimir uma lesão ou um perigo de lesão a alguém, simplesmente está a interferir na conduta de alguém que deseja consumir substância entorpecente. Quer dizer, na verdade, existe a possibilidade de uma autolesão do usuário de drogas e a lei, por meio da pena, pretende impedir tal consequência (MARTINELLI, 2009, p. 16).

 

Segundo Martinelli (2009), podemos até dizer que, na medida em que diversas pessoas consomem entorpecentes, a soma das autolesões acaba por atacar o bem saúde pública. Tal ideia, diz o autor, pode ser vinculada à teoria dos “delitos por cumulação”, segundo a qual a lei pode proibir comportamentos individuais que, isoladamente, não representem dano a um bem, mas, se ocorrerem cumulativamente, podem ser prejudiciais. No entanto, confrontando a questão com os princípios do direito penal no Estado democrático de direito, percebe-se que o problema que enxergamos é anterior à teoria do delito. É um problema de legitimidade da norma.

Explica Bitencourt (2011, p. 51) que pelo princípio da insignificância, “a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico”. Assim, seria imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Dessa forma, as condutas que se amoldam a determinado tipo penal sob o ponto de vista formal, mas não apresentam nenhuma relevância material, pode-se, nessas circunstâncias, afastar liminarmente a tipicidade penal, porque, em verdade, o bem jurídico não chegou a ser lesado. Em suma, a insignificância da ofensa afasta a tipicidade.

Outro princípio a ser analisado na visão de Bitencourt (2011, p. 52) é o da ofensividade. Por ele, para que se tipifique algum crime, em sentido material, é indispensável que haja, pelo menos, algum perigo concreto, real e efetivo de dano a um bem jurídico penalmente protegido. Para o autor, e assim o segue grande parte da moderna doutrina, “somente se justifica a intervenção estatal em termos de repressão se houver efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, que represente, no mínimo, perigo concreto ao bem jurídico tutelado”. Por essa razão é que, em Bitencourt, são inconstitucionais todos os crimes de perigo abstrato no âmbito do Direito Penal e de um Estado Democrático de Direito.

 O legislador deve abster-se, portanto, de tipificar como crime ações incapazes de lesar ou, no mínimo, colocar em perigo concreto o bem jurídico protegido pela norma penal. Não se abstendo, pode ser exercida uma interpretação quando surge a oportunidade de operacionalizar-se o Direito Penal no momento em que se deve aplicar no caso concreto a norma penal.  É que, sem afetar o bem jurídico, no mínimo colocando-o em risco efetivo, não há infração penal.

Decorre do princípio da adequação social que o Direito Penal tipifica – ou, ao menos deveria tipificar – somente condutas que tenham uma certa relevância social. Bitencourt (2011) deduz, por consequência, que as condutas socialmente adequadas não podem ser consideradas criminosas.

O principio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, aduz Bitencourt (2011), preconizando que uma conduta só é legítima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Destarte, se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes pra a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas, e não as penais.

Por fim, pelo princípio da alteridade e transcendentalidade, Martinelli (2009, p. 17) esclarece que não cabe ao direito penal intervir no comportamento de um sujeito para evitar autolesões quando existe capacidade de discernimento, isto é, o adulto capaz não pode ser reprimido penalmente porque deseja provocar um dano em si mesmo. “Não é finalidade do direito penal coagir o adulto capaz a um comportamento que o Estado entende ser o melhor”.

Dessa forma é que reprimir a vontade de um adulto que queira praticar uma autolesão consentida não é legítimo ao direito penal. Trata-se de um comportamento paternalista do Estado pelas seguintes razões apontadas por Martinelli (2009): a) há uma interferência do Estado na vontade de alguém; b) para evitar uma autolesão; c) para buscar o bem da pessoa contra sua vontade. De fato, pode até ocorrer um dano indireto, mas não é isso que o tipo incrimina. O dano direto que se quer evitar é à saúde pública e o porte, assim como o uso efetivo individual só pode provocar danos a terceiros indiretamente, explica o autor.

Conceber o art. 28 como crime significa, então, qualificar o possuidor de droga para consumo pessoal como “criminoso”, quando na verdade não há vítima.

Não podemos apontar uma vítima em tal conduta, pois quem sofre o dano é aquele que age. Não é da natureza do direito penal reprimir comportamentos sem vítimas efetivas ou em potencial. A vitimização não é condição suficiente, mas é necessária, para tornar crime determinado comportamento. Se assim não fosse, qualquer comportamento imoral poderia residir na esfera penal, situação que não se encaixa no Estado democrático de Direito (MARTINELLI, 2009, p. 18).

 

Assim é que, em que pese o posicionamento do Supremo Tribunal Federal e as relevantes considerações doutrinárias, este trabalho filia-se ao entendimento de que houve tanto a despenalização quanto a descriminalização. Isso porque considerar uma criminalização da conduta em análise é também aceitar que é ilegítima, pois contraria todos os princípios do Direito Penal aqui expostos. Sendo ilegítima, não coaduna com o ordenamento jurídico.

 

4 CONCLUSÃO

 

Foi abordado que com a edição da Lei 11.343 de 2006, que distinguiu o usuário de drogas do traficante, não tardou a surgir na doutrina a visão de que houve a abolitio criminis acerca da posse de drogas para o consumo pessoal, consubstanciada no art. 28 da aludida Lei. Em contrapartida, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, bem como de muitos doutrinadores, foi de que não houve a abolição criminosa. Entretanto, essas discussões ativeram-se em critérios meramente objetivos e simplistas, como a definição legal de crime, uma hermenêutica meramente gramatical e a localização topográfica do dispositivo, não levando em consideração a questão mais importante: a legitimidade do tipo penal. 

Ocorre que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública – um bem jurídico difuso –, impassível de ser violado diretamente através de uma autolesão. Para que alguém responda criminalmente por um fato, deve-se delimitar a razão de sua punição e  a sua pena ter feito algo, sendo que ambas são inconcebíveis em relação à conduta em apreço. Não há como responsabilizar criminalmente alguém que praticou uma autolesão, pois o dano não sai da esfera da própria pessoa que age contra a lei. Seria, antes de um crime ou uma infração penal sui generis, uma norma ilegítima.

Por isso é que não importa, em verdade, os demais argumentos objetivos apresentados pela doutrina e jurisprudência. Apenas a infração a diversos princípios do direito penal, em especial o da alteridade e transcendentalidade, é suficiente para entendemos que houve tanto a despenalização quanto a descriminalização da conduta em apreço. Pensar o contrário é, além de ter que aceitar uma criminalização ilegítima, ignorar os ditames do Estado democrático de direito. 

 

                                                                                                                   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

Gomes, Luiz Flávio. CUNHA, Rogério Sanches.  Posse de Drogas Para Consumo Pessoal. LFG, 2006. Disponível em: <http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20061212113559593&mode=print>. Acesso em 20 de Ago de 2013.

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Vol 1, 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 430.105-QO/RJ. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Recorrido: Juízo de Direito do X Juizado Especial Criminal da Comarca do Rio de Janeiro. Recorrido: Juízo de Direito da 29ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. DF – Distrito Federal.

 

MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo na Lei de Drogas. Revista Liberdades. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, 2009. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/15-ARTIGO>. Acesso em 05 de set de 2013.

 

 

 



[1] Paper apresentado à disciplina Direito Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

[2] Aluna do 6º Período do Curso de Direito da UNDB

[3] Aluna do 6º Período do Curso de Direito da UNDB

[4] Professora orientadora