A vida é aquilo que acontece enquanto você está planejando o futuro.

(John Lennon)

 QUANDO GAROTO GOSTAVA MESMO ERA DE ROCK AND ROLL. Fazia um solo de guitarra razoável, aprendi sozinho. Ai junto com o Xandão, o Zé Perneta e o Luiz do Ranho montamos a banda Os Sequelados. O Xandão era o bandleader, fazia vocal e era o menos feio de nós. A mulherada enlouquecia quando ele tirava a camisa. Digamos que o Xandão tentava ser uma imitação paraguaia do Axel Rose.

O Zé Perneta era nosso batéra, tocava com entusiasmo e vigor, às vezes empolgava-se tanto que não conseguia acompanhar a banda, a gente é que tentava entrar no ritmo dele. O Zé, depois que foi atropelado pelo trem ficou rengo de uma perna (acho que da direita, não tenho certeza), mas ninguém notava, já que ficava escondido atrás da bateria.

No baixo tínhamos o Luiz do Ranho, que recebeu o apelido por viver limpando o salão. O Luiz era um baixista sem ouvido musical, servia para quebrar o galho. Os Sequelados foi uma banda que, assim como muitas, buscava um lugar ao sol, mas que vivia à sombra das oportunidades.

 O amigo do amigo, do primo de um camarada meu, havia prometido nos apresentar para o tio do vizinho de um conhecido radialista. A promessa: deixar um CD demo nas mãos do cara, mas para isso correria por fora um jabá. Afinal, a emissora não pagava tão bem assim ao radialista, não o suficiente para que ele tivesse o trabalho extra de ouvir um bando de barbados cantando o que todo mundo cantava, do jeito que a maioria da gurizada fazia. Mas a coisa toda havia dado em nada.

Desencanados, insistíamos. Certo dia, sugeri ao Luiz, Zé e Xandão que deveríamos ter a própria identidade dentro da banda. O Luiz do Ranho, sem pensar, disse:

– Oba, eu quero ser o Superman .

– Não esse tipo de personagem – suspirei, impacientado: – Cada um de nós deve criar uma personalidade para Os Sequelados.

– Ah, tá – respondeu sem convicção, ele ainda não havia entendido a proposta.

– A gente deve se fantasiar da gente mesmo é isso?

– É – respondi sem muita convicção.

 A ideia não vingou. A cena do Luiz do Ranho grudando massinha de modelar no braço do baixo foi dantesca. O Zé Perneta bem que tentou, a sacada era boa. Apareceu disfarçado de Saci. Gorro vermelho e cachimbo. Nada poderia ter sido mais original – só que o filho-da-puta do Zé puxava uma brisa e, brisado ele não coordenava as baquetas.

 – E tu Murrinha?

– Eu o quê? – Era o Xandão que perguntava.

– Qual a tua sacada?

De fato eu havia sugerido, mas não tinha nada em mente, então para me livrar do compromisso, fui logo disparando:

tudo uma bosta.

 Peguei a guitarra e sai no meio do ensaio.

 No outro dia apareci assim: cabelo arrepiado, camiseta, tênis botinha e calça skinny cor de laranja. A galera pirou em mim.

 – Que p... é essa – Exclamou o Xandão, exibindo o peitoril malhado.

– Ué – pensei em fazer o estilo “happy rock”.

– Boa – disse o Zé, meio brisado, apontando a baqueta na minha direção.

– Gostei – Ponderou Luiz do Ranho – mas acho que ficou meio bichona.

– A mulherada se amarra nisso ai – disse Xandão vestindo a camisa – dentro!

 Os Sequelados fez a primeira apresentação numa quarta-feira. Era novembro e chovia muito. O boteco do Rodrigo, um camarada nosso lotou. A plateia pulava ao som da nossa releitura para Twist and Shout. Éramos uma espécie de Beatles a cores. Quatro garotos com o mesmo sonho – montar uma banda, pegar gatinhas e ganhar muita grana.

 Fizemos alguns shows. Tocamos em três festas de quinze anos: na da Priscila, na da Jéssica e na da Janice. Nas bodas de trinta anos do tio do Motoca (amigo do cunhado do Xandão) e na formatura da minha turma de terceiro ano do colegial. Também fizemos apresentação em dois bailinhos da terceira idade (tocamos praticamente Beatles– embora uma vovozinha insistisse com o Xandão, para que cantássemos uma música do Roberto Carlos, mas não rolou, não era a nossa praia).

Na minha opinião o show que valeu à pena ter feito, foi o de  abertura do festival estudantil de rock and roll da nossa cidade. Lotamos o ginásio. A plateia curtiu o música inédita: “Relax Baby, relax”, composição do Luiz do Ranho e, que dizia mais ou menos assim:

“Relax Baby, relax,

pra que duplex,

sem estresse,

no meu cafofo

é tudo free,

é very nice, é relax”.

 

Para um começo de carreira, íamos bem, sob essa ótica o sucesso era apenas uma questão de tempo.

 EU ERA VIRGEM ANTES DE ENTRAR PARA OS SEQUELADOS. Continuei virgem depois que a banda acabou. O Xandão passava rodo geral na mulherada. O Zé transava mesmo era um baseado e o do Ranho comeria até carniça.

 

 Sem graça e sem iniciativa eu ficava na reserva. Enquanto a galera relava, eu fingia mandar torpedos pelo celular, quando na verdade jogava paciência no modo silencioso. Eu era um garoto tímido, louco para amar e ser amado, mas não era estúpido, a ponto de dispensar uma sessão gratuita de sexo.

Ser integrante dos Sequelados tinha lá suas vantagens. Metade da cidade conhecia a gente, estávamos no Youtube, nas redes sociais e tínhamos 353 seguidores no twitter. Eu levava fé na banda, mas tinha dúvidas quanto a minha permanência nela. Mais cedo ou mais tarde, eu teria que optar entre a faculdade e a música, essa hipótese me causava calafrios. Precisava tirar o máximo de proveito possível, enquanto ainda tinha tempo hábil.

Por falta de coragem, eram as garotas que chegavam a mim (geralmente as refugadas pelo Xandão e as que não simpatizavam com o biótipo do Luiz do Ranho.) Eu não era um cara bonito, mas também, não era medonho, embora usasse aparelho ortodôntico nas duas arcadas dentárias.

Entre beijos, amassos, mão aqui, acolá, a coisa fluía. Mas ai eu começava a suar, mais de ansioso, menos de excitação. Suava as bicas. Logo as garotas desistiam de mim.

– Que nojo, está todo molhado!

– Está ficando tarde, tenho que voltar para casa. – diziam as mais educadas. Ficava literalmente na mão, maldizendo a sudorese excessiva,.

Quanto a nós, íamos de mal a pior.

Tocávamos na base da amizade em troca de um xis salada e de um refri. Por conta disso ainda não havíamos ganhado um centavo sequer. O grupo então começou a se desentender. O Xandão disse que precisava fazer e não gastar dinheiro.

– Os coroas tão apertando – levou as mãos ao pescoço e simulou o próprio enforcamento.

Lá em casa a situação não era diferente.

 – É tudo uma questão de tempo – eu disse com a maior naturalidade do mundo. Agora tinha lá minha dúvida quanto à continuidade da banda, mas a mantive em segredo.

 O Zé passava a maior parte do tempo chapado. O que atrapalhava a concentração dele e, consequentemente o andamento das músicas. Ele não sabia, mas estávamos à procura de outro baterista.  

O Luiz do Ranho havia engordado um bocado e já não cabia nas calças skinnys (ficou ridículo nas slims). Começou a usar bermudão de surfista e tênis le cheval.. Parecendo um integrante de uma banda de heavy metal adotado por nós. A coisa ficou meio confusa.

O Xandão passou a dividir a banda com a nova namorada e o bico de frentista num posto de gasolina, de bandeira desconhecida. Descuidado dos estudos, peguei recuperação, mas, ainda não havia contado a novidade lá em casa.

Fizemos mais duas apresentações assim, o grupo sem muita vontade, com o mal tempo sob nossas cabeças. Não deu muito certo e fomos vaiados. Dos males o menor, recebemos o primeiro cache em forma de um cheque. Mais por consideração do que pela performance. Torramos a grana na mesma noite, bebendo todas. Assinávamos assim um contrato com o destino, a banda estava com os dias contados.

Depois daquela apresentação, o Zé ficou desaparecido por uma semana. Mais tarde soubemos que a mãe dele, numa tentativa desesperada de resgatar o filho, o havia internado em uma clínica de desintoxicação. Fomos atrás de outro baterista, mas a moral dos Sequelados estava abalada. Até tentamos com o Chocolate, o percursionista da Escola Unidos do Samba-canção, ele exigia cache e transporte. Seguramos as pontas por mais dois meses, até o Xandão desistir da banda porque ia ser pai.

Com Chocolate no vocal (na falta do Xandão apelamos para os dotes do Chocolate, já que nem Luiz, nem eu cantávamos) Luiz do Ranho no baixo, eu na guitarra, Os Sequelados ganhou o reforço dos estreantes Macuco e Sabiá, ambos na percussão. Dois crioulos que o próprio Chocolate havia arrastado para dentro dos Sequelados, junto com o cavaquinho dele. De fato nenhum dos dois tocava bateria, tivemos que improvisar com um surdo e um pandeiro.

No final da apresentação Luiz, visivelmente desiludido olhou para mim e disse:

– Cara, isso não é a gente!

Concordei e, em silêncio compactuamos o fim do sonho que, antes foi dos quatro garotos, mas agora, já não pertencia a nenhum.

 Na manha seguinte vendi a guitarra, o amplificador e as caixas acústicas. Com o dinheiro da venda dei entrada no curso pré-vestibular. Passei para Engenharia Civil, como queriam os velhos. Mas, por dificuldades financeiras, tranquei a faculdade no segundo ano. O pai adoeceu, morrendo em seguida.

 Não é passado muito tempo, quatro anos e meio, talvez um pouco mais. Do Xandão sei que se tornou pai de um casalzinho de gêmeos, separou-se da antiga mulher, engordou e trabalha na revenda de carros usados, do tio do Motoca.

 O Zé converteu-se e hoje é pastor de igreja.

O Luiz mudou de cidade e trabalha de padeiro na padaria de uma rede de supermercado famosa. Proibiu amigos e conhecidos de o chamarem de Luiz do Ranho e excluiu sua conta do Facebook.

JÁ EU, VULGO “MURRINHA”, DEPOIS QUE A BANDA SE DESFEZ, METI A CARA NOS LIVROS. Eu hoje sou professor e leciono História para garotos que, assim como os integrantes dos Sequelados, tem a pretensão de montar uma banda. Olho para eles e não digo nada, nem quem fui, nem quem sou. A magia, o fascínio do rock and roll esta no fato dele ser democrático, quando o sonho morre para uns, ele nasce para outros.