Não sei ler e escrever:

Reflexões acerca das vicissitudes do processo de alfabetização

Débora Fernanda Brzezinski Evaldt

Orientadora: Profa. Dra. Simone Bicca Charczuk

 

1.  INTRODUÇÃO

Esta escrita nasce a partir das inquietações e angústias que andam ao meu lado, ao longo da minha trajetória na graduação em Psicologia. Durante esta caminhada sempre estive atravessada pela educação, em minhas escolhas e oportunidades de prática profissional, e pela psicanálise, como algo inspirador e dotado de sentido, entretanto o encontro destas duas abordagens por si só causam muitos tencionamentos. Em Análise Terminável e Interminável (1937/1973), Freud postula que mesmo ensinando catecismo aos índios eles seguirão adorando seus deuses no fundo de seus quintais, assim esta analogia atravessa a psicanálise e educação, visto a sua diferença teórico-epistemológica, no que se diz respeito a sua aplicabilidade dentro de uma educação ou pedagogia psicanalítica e as diferentes concepções de sujeito. O sujeito da educação é o sujeito da cultura, do individual, do singular, da manifestação livre, sendo que o sujeito da psicanálise é descentrado, dividido pelo inconsciente e que se constitui através das primeiras inscrições feitas no bebê pelos pais, pelo sociocultural, pelo outro, pelo simbólico, pela linguagem (KUPFER, 2010).

A experiência com crianças com entraves significativos no ingresso na vida escolar, principalmente nas séries iniciais – 1º, 2º e 3º ano -, acabaram por proporcionar e despertar meu encontro com o desejo de acolhê-las e com a angústia de por muitas vezes me sentir só na tentativa de compreendê-las, considerando que estas não tinham nenhum impeditivo orgânico tão justificador dos males no ambiente escolar. Para estas que não cabiam em uma classificação orgânica, seu lugar virava a margem, pois não eram abarcadas em uma proposta inclusiva ou adaptação curricular, não gostavam de frequentar a biblioteca, fadigavam seus professores que se esvaíam em estratégias pedagógicas ou que se constrangiam por não atingir objetivos, e os apontamentos que acabavam por acontecer de forma natural entre os colegas de sala de aula: você não sabe ler e escrever.

Atualmente no Brasil o Ensino Fundamental é de nove anos, abrangendo uma faixa etária de 6 a 14 anos, este é um direito público de dever do Estado e da família, onde os três primeiros anos são considerados um ciclo para a alfabetização, dessa forma o aluno não poderá ser retido/reprovado (BRASIL, 2010). Dentro desta realidade foi onde me deparei com inúmeras situações, onde crianças em alfabetização tem dificuldades importantíssimas em se inserir e se inscrever, crianças que não se encontram nos grupos, outras com agitação e agressividade intensa, com dores corpóreas que se instalam no período pré aula, e tantas outras que ficam esquecidas, pois nem o corpo fala, tão pouco nossos olhos enxergam, até que se iniciam as reprovações por não atingirem os objetivos ao término do ciclo. Encontrei-me com estes sujeitos nas escolas privadas, com todo material escolar, com água encanada e ‘barriga cheia’; na clínica privada, com alguém pagando para eles ali estarem; no serviço público, em muitas vezes em situação de vulnerabilidade extrema. Estes são alguns exemplos de contrapontos que contribuíram e possibilitaram uma dimensão maior e inquietante para os maiores desencontros que tive nesta caminhada, que foram com os pais, responsáveis, ou cuidadores destas crianças.

As marcas que se inscrevem sobre o corpo da criança pelos pais em sua constituição remetem-nos a sua importância e relevância que atravessará a existência desse sujeito em todas as esferas de sua vida, em especial na aprendizagem. Estes pais não serão necessariamente os pais sociais, pais biológicos, serão os pais da psicanálise que exercem papéis e funções como a materna e a paterna (KUPFER, 1992). A função paterna institui a lei simbólica, que se estabelece na incompletude entre mãe e filho, na falta. Ela se dará na constituição do sujeito, lançando a criança à ordem fálica, revelando uma mãe que falta, que deseja algo além dela, possibilitando assim a operação de corte nesta relação inicialmente dual, oportunizando assim que ela desperte para o mundo do simbólico, da falta, da inserção no social (SPELLER, 2004). Conforme Calazans; Lustoza (2010), o pai em Lacan tem sua função ampliada ultrapassando o nível da família, chegando ao nível da linguagem, possibilitando que a criança possa compreender o que o Outro quer dizer, dando significado aos significantes, permitindo então que o mundo torne-se um lugar “coerente e dotado de sentido, um ponto de vista graças ao qual os elementos dispersos passam a ser reunidos num campo interpretativo comum” (p. 559).

Assim, a partir de minhas vivências de encontros e desencontros, pretendo refletir acerca da constituição destes sujeitos, considerando a intersecção da sua escrita inconsciente, na perspectiva do exercício da função paterna como aquela que apresenta o mundo simbólico, da linguagem, com as dificuldades na escrita ortográfica, tecendo um diálogo entre educação e psicanálise.

Para tanto, nos itens a seguir este trabalho percorrerá pela interface entre educação e psicanálise, considerando a produção acadêmica brasileira nesta área, seguindo pela temática da alfabetização, e as contribuições de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, culminando então na temática de maior relevância, que são as vicissitudes no processo de alfabetização, tomando conceitos como inibição e função paterna, considera-se também a produção acadêmica na área, inspirada por uma revisão sistemática de literatura.

 

2.  REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Educação e Psicanálise

No Brasil do final do século XIX, encontramos as primeiras referências à psicanálise na interface com a educação, através das aulas ministradas pelo psiquiatra Juliano Moreira, na Faculdade de Medicina da Bahia. Porém, seu estudo e prática se desenvolveram ao longo do século XX, em ressonância com as publicações sobre o desenvolvimento infantil de Melanie Klein e Anna Freud, influenciando o campo da educação, nos modelos de gestão e entraves escolares, e na saúde, como modo de tratamento para as crianças com problemas emocionais. Neste momento histórico é lançada a Escola Nova, que se opõe à pedagogia tradicional, promovendo um olhar singular ao desenvolvimento infantil, e é então que a psicanálise entra em consonância com a educação para subsidiar de forma teórico-prática o manejo de dificuldades de aprendizagem e não necessariamente a adaptação ao ambiente escolar de crianças. Como o propósito de dedicar-se ao atendimento dessas dificuldades é criado no Rio de Janeiro a Seção de Ortofrenia e Higiene Mental, dirigido por Arthur Ramos, e em São Paulo a Seção de Higiene Mental Escolar dirigido por Durval Marcondes. Nestas instituições o trabalho voltava-se para a avaliação de crianças, na perspectiva de um viés kleiniano através do brincar, e para a orientação de pais e professores, neste momento ainda não se fazia psicoterapia infantil, visto que esta era considerada muito complexa e, portanto sem profissionais capacitados (ABRÃO, 2009).

Correa (2011), em seu artigo sobre o livro de Arthur Ramos A criança problema- A higiene mental na escola primária (1959), demonstra a importância deste autor para a interlocução entre educação e psicanálise, promovendo uma nova perspectiva para as crianças, que ocupavam até o momento o espaço de anormais e inaptas à aprendizagem, para o prisma do sujeito infantil em desenvolvimento no ambiente sociofamiliar. E é a partir do conceito psicanalítico de transferência que ele começa a dimensionar a possibilidade de correção da dificuldade das crianças, onde na relação professor-aluno deve se estabelecer uma transferência afetiva que é tomada como via de acesso para a reeducação deste sujeito. A crítica recebida por este modelo inicial de diálogo fica em torno deste conceito que é tomado como ideal por Ramos, sendo que para a psicanálise o ideal está em oposição ao desejo, logo está em oposição a sua ética, assim a transferência está a serviço do desejo e não ao ideal. Ainda existem heranças deste modelo higienista, que deve ser considerado em sua criação na perspectiva do momento sócio-histórico, e sua relevância, pois por um período foi à única referência a crianças com dificuldade de aprendizagem (CORREA, 2011).

A psicanálise na educação brasileira, que neste momento estava a serviço da higiene mental, passou por uma transformação nas décadas de 40 e 50, criando espaço para a psicoterapia com crianças, que se estruturou através da qualificação dos profissionais, pela formação psicanalítica e a psiquiatria infantil, que buscava sua autonomia da medicina. A Clínica de Orientação Infantil do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, ilustra este movimento, baseando-se no pensamento kleiniano, difundindo estas ideias no meio médico e possibilitando a prática. Através desta perspectiva histórica é possível afirmar que uma das vias de acesso da psicanálise no Brasil foi à educação, e subsidiou uma nova perspectiva de desenvolvimento infantil, em especial a crianças com defasagens escolares (ABRÃO, 2009).

No que diz respeito à produção teórica que articula psicanálise e educação, esta é lançada ao mundo por Freud na década de 30, com Análise Terminável e Interminável (1937), passando posteriormente por quatro décadas de desaceleração, mas sem ser esquecida por teóricos como Winnicott e Anna Freud. Na década de 80 há um retorno exponencial na produção teórica nesta área, no Brasil esta foi marcada pela divulgação da tese de doutorado de Mokrey (1986), que trazia as primeiras ideias da psicanálise local, em seguida pelo lançamento do livro de Maria Cristina Machado Kupfer, Freud e a Educação (1989), impulsionando a interlocução psicanálise e educação, seguindo com as publicações de Leandro de Lajonquière, comprometendo a discussão entre os campos, como no livro De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens (1993), Sandra Francesca Conte de Almeida, Rinaldo Voltolini, Eliane Marta Teixeira Lopes, também contribuíram com o ressurgimento das produções (KUPFER et al., 2010).

Kupfer et al. (2010) fez um levantamento do panorama de produções brasileiras no campo das articulações entre psicanálise e educação a partir de 1980, neste pode ser constatado que as produções dividem-se em relação ao entendimento da articulação entre aplicação, em uma relação de justaposição paralela, com teor ideológico, e implicação, que associa as duas áreas criando uma terceira considerada educação para o sujeito, que soma o sujeito do desejo ao ato pedagógico. Desta forma, os autores criaram cinco eixos temáticos, que contemplam grande parte das produções, são estes: A transferência no campo educativo, esta abordagem é apresentada com grande diversidade, em grande parte na relação professor-aluno; A psicanálise, o discurso pedagógico e o contemporâneo, busca encontrar instrumentos psicanalíticos a serem introduzidos na educação; Alunos e professores na relação com o saber, considera a psicanálise na perspectiva da leitura dos entraves educacionais; Tratar e educar, estas temáticas se aproximam quando se trata de uma educação inclusiva; Formação de professores e psicanálise, considera a implicação do professor com sua formação, aproximando o viés psicanalítico.

Mesmo com avanços, educação e psicanálise seguem provocando tencionamentos, visto a origem da psicanálise através da prática clínica e seus questionamentos acerca das ciências humanas e as certezas cartesianas (SPELLER, 2004), contudo Holanda e Medeiros (2009), ao fazerem referência a obra freudiana, trazem a intencionalidade de uma psicanálise que se aplique a prática terapêutica, mas também a outros campos, como o da educação, através de seus conceitos e descobertas, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento infantil, entretanto também apontam os limites que já se apresentavam, como a análise pessoal para todos os professores como possibilidade de benefícios na prática com alunos, o que de antemão feriria os preceitos da própria psicanálise. Em Análise Terminável e Interminável (Freud, 1937/1973), que compunha os escritos finais de Freud, deixa-se evidente a incompatibilidade em relação a objetivos e métodos da educação e psicanálise (KUPFER,2010)

Por outro lado, Kupfer (2010) através na noção de sujeito propõe elucidar as diferenças entre educação e psicanálise, e paradoxalmente promover um encontro. O sujeito da educação é o sujeito do contemporâneo, da cultura, onde se valoriza o individual, o singular e a liberdade, afirmando-se em sua origem cartesiana, onde o sujeito é fonte de ação e pensamento. O sujeito da psicanálise enunciado por Freud tem em sua origem a filosofia aristotélica, é o sujeito dividido, do inconsciente, logo não sabe inteiramente de si. Os estruturalistas e pós-estruturalistas ampliaram ainda mais esta noção, trazendo a dimensão da linguagem, onde o sujeito se constitui e se posiciona através do discurso, e na intersecção entre forças libidinais e as práticas socioculturais, que emergem no discurso social, no Outro, desta forma, esta é sustentada por seus outros parentais que lhe fazem inscrições psíquicas, assim o sujeito emerge da linguagem, logo não há liberdade, pois “o sujeito não fala, mas é falado” (p. 270). Assim na interseção entre sujeito livre e sujeito descentrado, a autora propõe uma nova perspectiva no tratamento e inclusão de crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento, através da ‘Educação Terapêutica’, que tem como fundamento o sujeito do inconsciente e a retomada se sua estruturação, através de práticas interdisciplinares com ênfase na educação.

Assim como Kupfer (2010), que propõe a Educação Terapêutica, outras práticas de intervenção também propiciam o encontro entre psicanálise e educação, Besset; Rubim (2007) consideram de extrema relevância a criação de espaços de busca de resolutivas para impasses no meio educacional contemporâneo, para pais, alunos e educadores poderem expressar suas queixas e angústias, norteados pelos princípios psicanalíticos da contingência, ética e responsabilização do sujeito. Kawagoe; Sonzogno (2006) propõem um olhar sobre a educação infantil, onde os professores devem compreender o desenvolvimento emocional infantil e o brincar, entendido a partir de Winnicott, como possibilidade de acesso a criança através daquilo que ela representa no brinquedo.

Através da perspectiva de encontro entre psicanálise e educação de Kupfer (2010), e a definição proposta por Lajonquière (2004) onde, “educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem à criança usufruir um lugar de enunciação no campo da palavra e da linguagem, e a partir do qual seja possível se lançar às empresas impossíveis do desejo”, nos deparamos com o processo de alfabetização e/ou aquisição da língua escrita.

2.2. Alfabetização e/ou Aquisição da Língua Escrita

Ferreiro e Teberosky (1999), através da Psicogênese da Língua Escrita, que foi um marco divisor na história da alfabetização na América Latina, apresentam em sua origem piagetiana, uma perspectiva ampliada de compreender a alfabetização, onde diferentemente de um modelo tradicional onde a criança está passiva as suas aprendizagens, encontramos um sujeito ativo, que procura compreender seu mundo, que aprende através de suas ações e organiza seu mundo ao mesmo tempo em que constrói seus pensamentos. Desta forma a aprendizagem é um processo do sujeito, um ato de criação e não resultado de um método, que é compreendido como uma ação que pode facilitar ou até mesmo frear a aquisição de conhecimentos; assim a aprendizagem da leitura questiona sua natureza, sua função e valor através da escrita, o que acontece muito antes do ingresso da criança na vida escolar, em um modelo construtivista-interacionista.

Para Ferreiro (1990), o processo de alfabetização acontece através de uma tríade entre o objeto que envolve a aprendizagem e suas representações de linguagem, a partir de um sistema de diferenciações e relações, e entre as concepções deste objeto para quem aprende e para quem ensina. Assim, para que a criança possa se utilizar das letras e números deve assimilar seu processo de construção e produção através de suas representações, estas concepções já se apresentam nos primeiros ensaios da criança, quando ela através de garatujas (traçado de linhas), escreve como tal acredita serem as palavras e este processo não cessa e sim evolui de forma regular, desenvolvendo-se também através das práticas no ambiente social, onde ela recebe novas informações, as transforma e as assimila (FERREIRO, 1992). De acordo com esta teoria, a criança passa por fases até que esteja alfabetizada, esta se divide em período logográfico, onde não existe correspondência entre grafia e som, subdividindo-se em: nível pré silábico 1 (PS1) – a escrita é concebida como um desenho, intermediário 1 (I1) – conflito de que não é com desenho que se escreve, nível pré silábico 2 (PS2) – a escrita é através de sinais gráficos e não mais com traços figurativos e intermediário 2 (I2) – conflito com a forma que escrevia, escrever não é mais um aglomerado de sinais gráficos; e em período fonético, onde já se estabelece vínculo entre pronuncia e escrita, subdividindo-se em: nível silábico (S) – existe uma correspondência entre grafia e sílabas, intermediário 3 (I3) – conflito com a vinculação da pronúncia com a escrita e nível alfabético (A) – existe correspondência entre formas e grafias (FERREIRO; TEBEROSKY, 1999).

Em torno de 40 milhões de crianças frequentam o ensino fundamental no Brasil, entre escolas públicas e privadas, convivendo com baixos índices de aprendizagem, estimando-se que grande parte destes se dão devido a dificuldades na alfabetização, considerando que fatores como desrespeito as características etárias, sociais e psicológicas também contribuem a estes, e é neste panorama que o ensino fundamental é ampliado de oito para nove anos (ALEXANDROFF, 2009).  Atualmente no Brasil as instituições públicas de ensino através do ‘Pacto pela Alfabetização na Idade Certa’ que foi firmado pelo governo federal, Distrito Federal, estados e municípios, conforme adesão, trabalham na perspectiva de assegurar a alfabetização a todas as crianças até os 8 anos de idade, ao término do terceiro ano do ensino fundamental, considerando a alfabetização uma prioridade nacional. O pacto é regido por quatro princípios, que serão desenvolvidos através do trabalho pedagógico, considerando a complexidade da escrita alfabética, sendo eles: ensino problematizador e sistemático; o desenvolvimento da capacidade de leitura e produção de textos deve ser iniciado na educação básica, garantindo acesso a gêneros discursivos e oportunizando protagonismo da criança na criação de suas próprias histórias e na interação; a criança deve se apropriar de diferentes conhecimentos, possibilitando que assim ela possa discorrer sobre estes, agindo na sociedade; e o cuidado e a ludicidade são condições básicas nos processos de ensino aprendizagem. Para a efetivação do pacto, as ações se apóiam em eixos de atuação, com formação continuada para professores alfabetizadores, material didático, avaliações e mobilização social, através de controle e gestão (BRASIL, 2012).

Em uma perspectiva psicanalítica, a alfabetização e/ou aquisição da língua escrita, é encarada como subjetivante através dos processos de repetição-elaboração, onde a linguagem é condição para se constituir sujeito, sendo que este advém na grafia dos alfabetizandos, formando assim uma lógica significante que os inscreve no campo do Outro, do sentido, acrescentado a afirmação de Françoise Dolto, que considera que uma criança só aprende a ler e escrever se seu desejo estiver implicado nesta ação. Esta lógica se estrutura entre a letra e seu potencial simbólico, dando assim significado aos significantes, o que em Lacan tem função de representar e determinar o sujeito (BURGARELLI, 2012; KUPFER, 2006; MILMANN, 2003). Kupfer (2002), aponta que a escrita tem potencial para revelar a posição do sujeito e como ele se constituiu, revelando assim como foram suas primeiras inscrições, que se transformarão em significantes, sob a escrita inconsciente, que tem capacidade de sustentar a escrita ortográfica que representa o que está escrito inconscientemente. Assim a escrita textual pode-se equivaler ao inconsciente, e a leitura permite que esta escrita trabalhe, sendo que através da letra estes efeitos significantes encontrem vazão no real (BURGARELLI, 2009). A psicanálise também considera o início da escolarização na perspectiva do afastamento de casa, considerando a faixa etária dos 5 anos propicia para este ingresso, visto o processo de individuação da criança e a elaboração do Complexo de Édipo, favorecendo que a criança desloque seus interesses, abrindo-se para a aprendizagem. Os pais exercem papel importante no interesse dos filhos pela escola, através do desejo manifesto pelos pais elas se identificarão ou não, este desejo muitas vezes está atribuído ao valor dado a alfabetização, a possibilidade de autonomia ou a possibilidades de novas relações interpessoais (ALVES; PEREIRA, 2002).

O envolvimento dos pais no processo de alfabetização dos filhos também torna-se relevante na produção científica, o estudo realizado por Correa; Serra (2005), sobre a expectativa materna e o desempenho da criança na alfabetização, revela que tanto a superestima, quanto a baixa expectativa da mãe neste processo gera reflexos na aprendizagem da criança, ocasionando por vezes insegurança e baixa estima. A pesquisa realizada por Di Nucci (1997), sobre interesses e dificuldades dos pais na alfabetização dos filhos, pôde concluir que mesmo com restrições os pais engajam-se na alfabetização dos filhos, interessando-se por obter informações sobre esta etapa, conscientes de uma parceria com a escola, entretanto com dúvidas diante as suas condutas frente a seus filhos alfabetizandos, assim a autora propõem a criação de espaços de esclarecimentos de dúvidas e orientações sobre este processo.

2.3. Vicissitudes no processo de alfabetização

Inteligência, aptidões perceptivas e motoras, afetividade e maturação, que podem ser promovidas na educação infantil através do estímulo de habilidades para o ingresso no campo da leitura e escrita, são relevantes para o processo de alfabetização (ALVES; PEREIRA, 2002), porém por vezes a demanda escolar se apresenta desproporcional para algumas crianças, onde em vez de preencher um vazio pelo ‘sintoma’ aprendizagem, este acaba por ser ocupado pela inibição intelectual e pela repetição de conteúdos escolares (LAJONQUIÉRE, 1997).

A partir do trabalho clínico é possível encontrar crianças com grandes dificuldades de superar a etapa da alfabetização, algumas hipóteses são levantadas para justificar este entrave, dentre elas a escola enquanto produtora do fracasso, a desqualificação do pai pelo discurso moderno e o que será relevante para este trabalho, enquanto impasse na constituição destes sujeitos devido à falha na função significante do Nome-do-pai, que ao instalar-se mal não ampara o ingresso da criança no simbólico, esta hipótese sustenta-se na perspectiva lacaniana de como o sujeito se constitui como tal, sendo que esta se dará através do estádio do espelho, onde o sujeito advém através da formação do ‘eu’, e a metáfora paterna, onde ele é lançado ao campo do simbólico, da linguagem (AZENHA, 2004; KUPFER, 2002; MILMANN, 2003).

Para Couto (2010), o pai na família tradicional está relacionado ao patriarca àquele que detém autoridade, que procria, que educa e transmite isso a seus filhos, porém com as novas estruturas familiares, os papéis se reorganizam e deslocam-se deste modelo e cabe como desafio à criança contemporânea encontrar seus significantes, sendo o sujeito que a constitui e que a situa em relação ao desejo do outro, mesmo com tantas transformações. Assim o papel do pai na atualidade é colocado a prova, bem como o declínio de sua função, porém esta é fundamental para o desenvolvimento infantil como apontam os estudos realizados por Fagan; Iglesias (1999) e Feldman; Klein (2003), onde consideram a interação inadequada entre pai e filho fator de risco para seu desenvolvimento (BARHAM, CIA; D’AFFONSECA, 2004).

Na obra de Lacan, a partir de sua leitura de Freud, o pai encontra-se no registro do real, simbólico e imaginário, articulados pelo Nome-do-Pai enquanto operador lógico destes três registros que constituem o psiquismo. O pai pode ausentar-se para o filho da forma concreta, através de seu nome, sua figura, ou através do significante, o que nos diz que mesmo este estando presente na família o exercício de sua função pode ser inoperante, sendo que esta função é da ordem do simbólico, que ordena o desejo da mãe, e operadora da castração centralizada no complexo de Édipo, possibilitando assim que o sujeito não se julgue maior que a lei (AZENHA, 2004; ALBERTI, MARTINHO, 2005; FARIA, 2005). O registro Nome-do-Pai é a instância que possibilita a interpretação do desejo do outro, situando-se nesta demanda dependente, que possibilita atribuição de significado ao mundo, ao significante, desta forma o pai em Lacan ultrapassa o nível da família, chegando ao da linguagem (BURGARELLI, 2009; CALAZANS, LUSTOZA, 2010). Azenha (2004); Burgarelli (2009;2012) consideram que a linguagem é inaugurada na castração, na inscrição da metáfora paterna significante, que possibilita a abertura para o sujeito do desejo, que substitui o objeto primordial perdido pela linguagem oral e escrita, permitindo assim o ser falar.

Sendo o pai, aquele que apresenta para a criança o mundo simbólico, o mundo da linguagem, pode-se considerar que a dificuldade de alfabetização de um sujeito incide sobre uma possível falha em sua função? A dificuldade da aquisição da língua escrita pode ser considerada sintoma de inibição, visto que este indica sofrimento psíquico, a inibição é a restrição de uma função egoíca, muitas vezes assumida pelo lugar que o Outro coloca a criança (FREUD, 1925). Assim, através desse percurso que viemos trilhando, que proporciona um encontro entre educação e psicanálise, é possível refletir acerca da função paterna e sua implicação na constituição de sujeitos em processo de alfabetização, sendo estes cindidos pelo desejo, pelo inconsciente, atravessados pelo sociocultural, marcados pelas inscrições feitas pelos que fazem para si a função materna e paterna, que são lançados ao desafio da construção das letras, das palavras, das frases, da leitura de suas histórias, partindo do seio de suas famílias contemporâneas, onde se encontrarão com um pai que exercerá ou não a função de lhes apresentar ao mundo simbólico, ao mundo da linguagem, a partir do interdito da mãe, podendo então ocasionar–lhes possíveis entraves em suas constituições enquanto sujeitos, traduzidas em dificuldade de aquisição da língua escrita.

Haja vista o processo percorrido até aqui, onde se fez relevante considerar a interlocução entre educação e psicanálise, alfabetização, chegando à temática principal deste estudo que reflete acerca das vicissitudes deste processo, realizou-se um levantamento de artigos entre os dias 28 de julho e 28 de agosto de 2013, inspirada em uma revisão sistemática, a partir da base de dados Pepsic sobre os descritores função paterna and alfabetização, função paterna and escrita, função paterna and inibição, escrita and inibição e psicanálise and alfabetização, obtendo-se o resultado de quatro artigos, apresentados conforme os descritores na tabela abaixo e posteriormente apresentados.

Artigos

Descritores

Autor

Título do Artigo

Periódico

Vol., Nº, Ano. Páginas

Função Paterna and Alfabetização

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Função Paterna and Escrita

Ana Caroline Teixeira Pinto

Sobre o tratamento de um menino de sete anos: reflexões sobre inibição e angústia

Estilos da Clínica (SP)

15, 2, 2010. 362-379

Função Paterna and Inibição

Ana Caroline Teixeira Pinto

Sobre o tratamento de um menino de sete anos: reflexões sobre inibição e angústia

Estilos da Clínica (SP)

15, 2, 2010. 362-379

Escrita and Inibição

Jeanne D’Arc Carvalho

Anna Rita Sartore

Ana Carolina Teixeira Pinto

A escrita do que se perde

Inibição na produção de texto

Sobre o tratamento de um menino de sete anos: reflexões sobre inibição e angústia

Estilos da Clínica (SP)

Estilos da Clínica (SP)

Estilos da Clínica (SP)

XIII, 24, 2008. 72-83

XIII, 24, 2008. 132-145

15, 2, 2010. 362-379

Psicanálise and Inibição

Morgana Martins Grudzinski

O laço social e a aprendizagem: algumas breves considerações

Revista Psicopedagogia (SP)

26, 81, 2009. 435-440

O artigo Sobre o tratamento de um menino de sete anos: reflexões sobre inibição e angústia (PINTO, 2010), é obtido como resultado em três descritores, este apresenta um relato de caso sobre Pedro, de 7 anos. O menino chegou até o tratamento sobre a queixa de não saber escrever, apresentava-se frágil, magro, estrábico, com dificuldades motoras como descrevera sua mãe, seu pai trabalhava a noite e a mãe durante o dia, o significante fraco aparecia veementemente quando a mãe discorria sobre as dificuldades do filho e sua vontade de ajudá-lo. No primeiro encontro com Pedro a imagem descrita pela mãe vinha a se confirmar e o significante fraco também, através de sua fala. Nas sessões posteriores as produções gráficas em forma de desenho traziam conteúdos agressivos e ameaçadores, em seu discurso vinham frases como “Meu pai não serve para nada”, “Minha mãe só atrapalha”, em torno da quarta e quinta sessão Pedro já estava escrevendo tudo. A autora considera que o menino apresentava inibição como sintoma de uma falha na função paterna, sendo que este foi incapaz de interditar sua relação com a mãe, e o fato que ilustra este ‘marco’ é quando a terapeuta sugere que a mãe coloque Pedro para dormir em sua cama e não mais junto dela. Pedro passa por um novo processo, se apresenta agora de forma menos infantilizada e com discurso próprio, não mais como repetição da fala materna, vive então um primeiro momento de angústia com a desproteção da mãe e o modifica com a angústia da castração e pela primeira vez se percebe ‘descolado’ desta mãe e consegue trazer em sessão que gostaria de namorar. Em um diálogo com a análise feita por Freud (1966) sobre a fobia de cavalos do pequeno Hans, a autora destaca a importância do analista na prevenção das fobias infantis, que tendem a evoluir a uma histeria, neurose obsessiva ou perversão, considerando que Pedro encontrava-se em um estágio de angústia infantil, devido ao lugar que ocupava junto à mãe.

O artigo A escrita do que se perde (CARVALHO, 2008), é obtido como resultado em um descritor, este considera que em Freud, saber, desejo e falta, sempre estiveram entrelaçados. O texto As Teorias Sexuais Infantis (1908/1976a), traz a ligação entre as investigações da criança e a pulsão, sendo que a curiosidade intelectual está atrelada a sexual, em suas investigações o sujeito fará construções acerca do mundo, ocupando um espaço que até então estava vazio, constituindo um saber, assim considerado a perda promove o desejo de saber, o que torna relevante o diálogo entre o psicanalista e o educador. Cada sujeito organiza seu saber em torno de seus limites, sendo impossível contemplar totalmente o desejo de saber, pois este surge na perda, assim este poderá resultar em um sintoma de inibição intelectual ou desejo na produção da escrita. A luz da segunda tópica e no texto Inibição, Sintoma e Ansiedade (1926), Freud apresenta as formas de mal estar do sujeito, sendo a inibição uma restrição da função do eu, podendo ser esta sexual, nutricional, de locomoção ou de trabalho, relacionada com angústia e recalque, uma renúncia a função; e o sintoma, enquanto modificação das funções, ocasionando novas manifestações. Para Lacan, a inibição é uma posição assumida através de uma captura narcísica.

Acerca do desenho enquanto escrita, a autora se reporta a Pommier (1993), considerando que a matriz simbólica do desenho está ancorada no Outro, assim as primeiras produções gráficas do corpo evocam o corpo psíquico, na tentativa de auto-reconhecimento da criança, Chemama (1996) propõe que o desenho é um esforço do sujeito de se separar do Outro, desta forma se este ato elaborativo ocorre, a criança dará maior valor ao ato de escrever, sincronizando a separação da imagem e do Outro. Reportando-se aos transtornos de aprendizagem relacionados com a escrita, estes podem revelar uma dificuldade na relação narcísica e dual do sujeito com o Outro. Assim proposto, a psicanálise e os relatos de casos clínicos, revelam que a escrita é um importante recurso, oportunizando tratamento para o que não foi perdido, que poderia vir a produzir falha na linguagem.

O artigo Inibição na produção de texto (SARTORE, 2008), é obtido como resultado em um descritor, objetiva, através de Freud e Lacan, considerar os sujeitos que evitam a representação através da escrita, ativando afetos como inibição e angústia, fazendo assim com que não haja um acionamento da imagem de seu próprio corpo. Considerar o componente subjetivo, através da psicanálise que se debruça sobre a formação da cultura e as representações, é fundamental para compreender a reedição do sujeito através da inibição e angústia, contribuição esta que é feita na pedagogia na investigação de alunos com entraves escolares, mesmo que ainda se tenham divergências entre as duas áreas.

Para Lacan, o afeto se apresenta enquanto lapso, que pode retornar como sintoma, ao escrever a inibição é convocada diante de um desenvolvimento psíquico ao encontro do sujeito com o desejo, Freud articula inibição, sintoma e angústia. No âmbito escolar quando é solicitada a escrita, pode emergir na criança afetos como emoção, perturbação, impedimento e sintoma, que se apresentam em fala como “Eu não consigo”, “Tenho esta barreira”, diante destas queixas a inibição é reduzida e passa a ser encarada como modo de ser incontestável, isentando o sujeito do encontro com o desejo. Falta de empenho, vocabulário pobre, falha na alfabetização, leitura insuficiente, são situações comumente descritas por professores, considera-se então que estes entraves do sujeito que se imprimem na escrita, é protetivo acerca daquilo que ele não suporta, revelando a carência na elaboração de estruturas simbólicas de sua infância.

O artigo O laço social e a aprendizagem: algumas breves considerações (GRUDZINSKI, 2009), é obtido como resultado em um descritor, este inicia na interlocução entre psicanálise e educação, remetidas aos escritos de Freud, considerando ao ver da autora, que a educação estava mais ligada com a dada em casa pelos pai, sendo estes que inserem suas crianças no laço social. Em um segundo momento estas crianças são acolhidas em escolas, onde se desenvolve a socialização, a linguagem, hábitos e aprendizagem, e neste espaço o sujeito se mostrará e a escuta apurada de professores poderá detectar possíveis entraves na estruturação psíquica destes. Este artigo objetiva refletir sobre a subjetivação realizada pelos pais, na inserção de seus filhos no social e o não aprender. Em relação à subjetividade, a autora recorre a Lacan, entendendo que esta se dá em relação às figuras parentais e suas funções na vida da criança, perpassando relações inter e intrapessoais, sendo que na primeira relação do bebê com a mãe está servirá de espelho, sendo estruturante em sua vida psíquica, bem como o pai que será o terceiro desta relação, instaurando a lei, as regras sociais, valores culturais, e o Outro que considera a linguagem fundante do psiquismo, desta forma considerada, é relevante pensar sobre a criança que não aprende, sua estruturação psíquica, numa interlocução entre o laço parental e laço social.

É apresentado o caso K., 9 anos, este foi encaminhado a avaliação com a psicopedagogia por estar apresentando dificuldades na alfabetização. O menino é criado por uma tia, pois sua mãe mora em outra cidade e o visita esporadicamente, o pai também mora em outra cidade não mantendo nenhum contato. Os pais são protagonistas nas inscrições feitas sob os filhos, sendo que outras pessoas também podem fazer estas funções, mas como coadjuvantes. K., então é criando por uma tia, que tem uma relação distanciada do contexto escolar, assim o significante para o desejo de aprender é estruturado de forma frágil, onde o saber de sua filiação lhe foi retirado, considerando que o saber de si organiza o mundo, não querer saber do mundo e não querer saber de si, revela não querer pensar em sua problemática sobre a filiação. O sentimento de abandono pode interferir na aprendizagem de K., apresentando agitação e não interesse pela leitura e escrita, não inserindo-se no mundo do simbólico. Assim, para a autora estar com os laços com o mundo não bem estabelecidos, promove uma relação confusa com a aprendizagem, visto que a escola impõe uma relação sólida com a instituição, o não aprender também pode ter outras causas, mas compreender o laço social do sujeito com o mundo na perspectiva da psicanálise, auxiliar a compreensão de educadores sobre o sujeito do desejo.

3.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Através da trajetória percorrida enquanto acadêmica de Psicologia, o presente trabalho veio a dar corpo e voz às angústias e questionamentos recorrentes de uma jovem terapeuta, na perspectiva da criança com entraves na alfabetização. Ao longo da escrita deste trabalho, minha trajetória prática foi tomando corpo junto à escolha das temáticas abordadas, bem como os autores que se transpuseram nos artigos cuidadosamente escolhidos, enquanto interlocutores de evidências vividas no cotidiano que se apresentaram marcadas por prejuízos no processo de alfabetização, somadas a agitação, agressividade, baixa concentração e inúmeros outros sintomas que são vivenciados por cada sujeito.

Kupfer (2002) propõe que a escrita inconsciente sustenta a escrita ortográfica, esta perspectiva foi-se revelando diariamente desde a escolha da temática, em um primeiro ensaio escrito na disciplina destinada ao projeto deste trabalho que objetivou levantar as primeiras hipóteses sobre possíveis obstáculos na alfabetização, sendo refinado para o módulo III do estágio profissional em Psicologia através de minha prática e neste momento enquanto conclusão de curso. Em cada escolha de leitura, autores, em cada rabisco, em cada etapa da escrita realizada, em cada orientação, um grande processo elaborativo foi tomando forma e neste momento podendo ser compartilhado com aqueles que dividem da mesma escolha e dedicação profissional. Este processo elaborativo, que foi desvelando-se de forma tão especial e singular, constitui-se como marco fundamental neste momento em que se aproxima o término da graduação e principalmente o ingresso no campo do trabalho enquanto psicóloga, servindo como propulsor das minhas futuras escolhas de prática profissional e de futuras produções a serem compartilhadas.

Este trabalho se propôs a dar conta de um processo íntimo de elaboração, que hoje compartilhado, revela e amplia a dimensão do escrever, entrando em consonância com a temática da aquisição da escrita, diante de um percurso prático-teórico fundamental para minha formação. Considerando assim, Freud, Lacan e seus contemporâneos, juntamente com teóricos da alfabetização, possibilitaram dimensionar e inferir sobre possíveis enraizamentos das vicissitudes no processo de alfabetização com a instalação da função paterna, sendo esta fundamental para a estruturação do psiquismo do sujeito em seu registro real, simbólico e imaginário, frente ao inconsciente (DOR, 1991).

O levantamento de artigos foi de extrema relevância, ressaltando os que apresentavam estudos de caso que possibilitaram aproximações e afastamentos, das crianças que de alguma forma atravessaram minha formação e as marcas deixadas, possibilitando também que seja salientada a necessidade de mais escritos acerca da alfabetização e suas vicissitudes, corroborado pelo número limitado de artigos obtidos, mesmo que uma única base de dados.

Acerca da minha prática, destaco minha experiência de estágio profissional em núcleo de apoio a inclusão, em um serviço interdisciplinar, que busca subsidiar a escola inclusiva, vinculado a Secretaria de Educação de um município da região do Vale do Rio dos Sinos, onde encontrei um espaço que vai ao encontro das ideias de Kawagoe; Sonzogno (2006), Besset; Rubim (2007) e Kupfer (2010) já exploradas anteriormente, por através das práticas da psicologia promover espaços de busca de resolutivas para os impasses na aprendizagem. Neste espaço educação e psicanálise encontravam-se, sendo a escola fonte de encaminhamento destes sujeitos, atravessados por estigmas e a esperança de uma resolutiva breve, e o núcleo, local de acolhimento destes junto de suas histórias e famílias, onde nossas práticas alicerçavam-se na perspectiva teórica psicanalítica. Pude atuar em diversas frentes, como no acompanhamento institucional, atendimento psicoterápico individual, núcleo de avaliação e parecer técnico, oficina de criatividade e o grupo de contos, prática esta que enfatizo somado aos autores citados acima, pois os contos desde sua origem exercem função terapêutica, ultrapassando séculos, sendo transmitidos por gerações, podendo ser usados como forma de interlocução entre o mundo interno e externo da criança, possibilitando conter aspectos de seu psiquismo e intervindo assim em seu processo de desenvolvimento (SCHNEIDER, 2009).

Ao longo de um ano e meio, através de lobos, sereias, bonecos de madeira, piratas, peixes, desenhos, jogos, massinha de modelar e tinta, esta prática veio a se revelar com todo seu potencial enquanto intervenção com crianças com entraves na aprendizagem, especialmente com questões acerca da alfabetização. Na relação ali estabelecida, triangulavam a história, o sujeito leitor e o sujeito ouvinte, cada um com uma função, sendo o livro ponte de corte, que através de seu conteúdo, personagem e símbolos, expandiam o campo do simbólico, do mundo, do Outro, deixando marcas fundantes naqueles que ali se apresentavam enquanto super-heróis, personagens clássicos, sapos, bruxas, príncipes e princesas.

Desta forma, psicanálise, educação, entraves na alfabetização e uma jovem terapeuta em sua prática profissional, permeiam este trabalho, vislumbrando que as perspectivas aqui abordadas sirvam de instrumento pra novos aprofundamentos, assim como a abordagem terapêutica referida anteriormente através do Grupo de Contos, que neste momento se interpôs a busca de referenciais através do levantamento de artigos revelando assim o sujeito do desejo, sendo sua curiosidade sexual atrelada à intelectual, o sintoma inibição, com a carência na elaboração de estruturas simbólicas da infância, e a relevância do laço social do sujeito com o mundo.

Finalizo este trabalho destacando sua relevância para psicologia, principalmente no campo escolar e clínico, sendo na maioria das vezes um fonte de encaminhamento do outro, demonstrando o enlace entre educação e psicanálise, possibilitando assim que sintomatologias vinculadas ao campo escolar e impasses na alfabetização também possam ser considerados a partir do prisma psicanalítico aqui apresentado, não os reduzindo a transtornos de aprendizagem com resolutiva medicamentosa. Torna-se essencial que novos estudos sejam impulsionados, auxiliando ainda mais em nossas práticas de acolhimento e intervenção a estes pequenos que através de seus sintomas revelam-nos suas inscrições enquanto sujeitos.