Não é a minha praia

Nas minhas relações de comprador assíduo nos balcões da internet, curioso, ouço com frequência arremates de conversa como este:
- O senhor vai estar recebendo a encomenda em apoximadamente dez dias.
Isto me parece um novo jeito de falar. Tenho ouvido muita gente falando assim, inclusive noutros mercados.
Ontem mesmo me telefonaram para oferecer um cartão de crédito. Perguntei se tinha de comparecer à agência do banco.
- Não será necessário ? respondeu a moça ? o senhor vai estar recebendo o cartão pelo correio.
Um jeito novo de falar inatacável aos olhos da gramática, mas discutível quanto a méritos cognitivos. Com efeito, não consigo perceber nenhum ganho do entendimento com a troca de vai receber a encomenda em dez dias ? que seria o jeito curial de comunicar o prazo de entrega da encomenda ? por vai estar recebendo a encomenda em dez dias.
Se no âmbito das transações comerciais houvesse espaço para inflexões de ordem estética, eu até poderia imaginar um horizonte barroco orientando a troca de vai receber, por vai estar recebendo, ou seja, a troca da locução linear, pela fórmula desenvolvida. Poderia imaginar que o vendedor, nesse caso o vendedor-poeta ? quisera projetar não o ato da recepção pura e simples, não a banal entrega do pacote pelo correio, mas antecipar a imagem de um momento venturoso em que a apropriação do bem adquirido mergulha o afortunado comprador.
Em busca de compreensão, como sempre faço, telefono para Luca Matéria. Mestre Luca, como sempre faz, me atende com presteza:
- Estou entendendo ? diz ele. Você padece de uma doença em extinção. Padece da vontade de não confundir o que é familiar com o que é conhecido. O dizer dos vendedores lhe é familiar. O problema é que você ainda não conseguiu capturar a dialética que o anima. Louvo a sua enfermidade, se me permite esta pilhéria, mas devo preveni-lo de que você não encontrará a resposta que procura, se não estender a sua curiosidade a outras expressões da mesma natureza. Se não entender que o surgimento de ?vai estar recebendo? não se deve a nenhum impulso de critividade individual, mas a injunções caprichosas do gênio coletivo. Ipso facto, a análise em âmbito restrito leva a interpretações equivocadas, ainda que plausíveis, como a de imaginar pretensões barrocas por trás de ?vai estar recebendo?.
- Quer dizer então que há outras expressões a considerar?
- Com certeza, meu caro.
- E o que elas têm em comum com ?vai estar recebendo??
- O fascínio. Digo melhor, a opção pelo fascínio em detrimento do sentido.
- Pode dar exemplos?
- Claro. Num concorrido encontro social, Margot pergunta a Paulo: - Paulo, voce gosta de música clássica? Paulo responde: - Não é a minha praia. Eis aí o fascínio triunfando sobre o sentido. A resposta não satisfaz a inteligência de ninguém inteligente, mas fica difícil deixar de aplaudir o olé que Paulo aplica ao touro. Consta que o touro, digo, consta que Margot sorriu e, de tão fascinada, acabou casando com o toureiro, digo, com Paulo.
- Seria isso uma tendência? Estaria realmente o povo inclinado a se orientar não pelo sentido, mas pelo fascínio dos objetos veiculados?
- Com certeza. Aí estão os filósofos e os sociólogos que não nos deixam mentir. Um só reparo merece o seu questionamento. Você fala em povo, mas não é o povo que se deixa fascinar. Onde não há sentido, por definição, não pode haver povo. Ali onde você refere povo, sugiro que refira massa. Não é o povo que se orienta pelo fascínio, mas a massa.
- Espere um momento! O que o senhor está dizendo é muito grave. Pense nas implicações políticas. Que horror!
- Você acha?
- É o que eu penso, se bem que o senhor só tenha apresentado dois exemplos.
- Exemplos não faltam. Sem perder de vista o desbunde do consumo compulsivo, veja o cabelo do Ronaldinho Gaúcho. Examine o uso emblemático que se vem fazendo das palavrinhas ?enfim? e ?assim?, observe a reeleição contumaz de candidatos corruptos, o sufrágio do bizarro Tiririca, examine o sucesso tautológico da expressão ?é complcado?, testemunhe o apoio deslumbrado aos gastos insensatos da copa do mundo, pegue tudo isso e diga se não é o fascinio ? jamais o sentido ? que lhe dá sustentação.
- E o povo, como é que fica?
- O povo está morrendo, meu caro. Se nada se fizer para salvá-lo, o jeito será reconhecer na próxima assembléia que todo o poder emana da massa e em seu nome será fascinante.