INTRODUÇÃO

Nos primeiros anos de República, o Brasil foi governado por militares e era chamado de República da Espada (1889-1894), a ela seguia-se um período caracterizado por presidentes ligados às oligarquias rurais, constituídas por cafeicultores de São Paulo e pecuaristas de Minas Gerais – era a chamada República do café-com-leite (1894-1931). Além da nobreza fundiária, que era o sustentáculo do governo civil, exercia um papel político relevante a burguesia industrial (em formação no Rio de janeiro e em São Paulo), como abordaBosi (2000, p. 303):

(...) assentava-se na hegemonia dos proprietários rurais de São Paulo e de Minas Gerais, regendo-se pela política dos governadores, o "café-com-leite", fórmula que reconhecia à lavoura cafeeira somada à pecuária peso nas decisões econômicas e políticas do país.

Paralelamente, aumentavam as disparidades entre as regiões e entre as diferentes classes sociais. Os antigos escravos, que pouco ou nada haviam conseguido desde a Abolição, que eram marginalizados, e os imigrantes europeus, que chegavam para trabalhar nas lavouras ou nas indústrias recém criadas, eram submetidos a condições de trabalho aviltantes. Em todo o país estouravam revoltas do povo contra o sistema político e sócio-econômico: o nordeste vivia a estagnação econômica, São Paulo era palco de inúmeras greves operárias, e o Rio de Janeiro sofria a revolta da vacina, que foi um protesto do povo, mais contra a opressão do que contra a vacina obrigatória.

Apesar deste quadro histórico, poucos foram os literatos que observaram criticamente a realidade da época, a grande maioria repetia o que se fazia na Europa e cultivava o beletrismo, freqüentando cafés (ponto de encontro dos intelectuais). E buscando prestígio social através da literatura, repetiam-se os padrões da estética parnasiana e simbolista, preocupando-se mais com a maneira de dizer do que com o que havia de ser dito. Desta forma, o que se produziu em literatura pouco ou nada tinha a ver com a realidade social brasileira, criando uma literatura que se convencionou chamar "sorriso da sociedade".

Lima Barreto, fugindo à regra, viu com olhos críticos a realidade nacional construindo uma obra renovadora. O lugar de destaque que ocupa em nossa literatura se deve ao realismo com que apresentou a sociedade carioca do começo do século passado, sobretudo, o povo sofrido dos subúrbios, cuja vida amarga e sem horizontes soube tão bem descrever, como menciona Massaud Moisés (2001, p. 197): "Lima Barreto conhece bem a arraia - miúda, a pequena burguesia, o mundo dos subúrbios: é o ficcionista dos subúrbios, como a crítica tem já assinalado".

Não se limitou a estigmatizar a hipocrisia e a mediocridade arrogante da burguesia nascente. Assim, Carlos Nelson Coutinho (2000, p.116) diz que:

Reagindo contra a herança imediata de Machado, Lima Barreto expressa a sua categórica rejeição do "intimismo" e, ao mesmo tempo, lança as bases de sua luta - solitária na época pela retomada da linha realista no que ela tinha de essencial.

O romance Triste fim de Policarpo Quaresma é a grande contribuição de Lima Barreto para a literatura brasileira. Contextualizado no final do século XIX, no Rio de Janeiro, a obra narra os ideais e a frustração do funcionário público Policarpo Quaresma, homem metódico e nacionalista fanático. A relação de Lima Barreto com a cidade do Rio de Janeiro é uma relação visceral, ele vivia a cidade assim como ela vivia dentro dele. Nesse sentido, a cidade é uma espécie de laboratório para pensar o Brasil, bem como um objeto de reflexão profunda sobre a sociedade brasileira de seu tempo, sobre uma sociedade republicana. É assim que ele vai cunhar uma expressão "botafogano" para identificar aqueles que, mesmo nascendo no Rio de Janeiro, viviam com a cabeça em Paris.

A proposta desta monografia é pesquisar sobre o ângulo mais específico a questão do nacionalismo no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e as drásticas conseqüências que esse nacionalismo "doentio" e utópico provocaram à vida do major Quaresma. O romance disseca o sonho de um patriota exaltado, ao mesmo tempo em que apresenta uma sátira impiedosa e bem humorada do Brasil oficial.

Como embasamento teórico, foram utilizados os seguintes autores: Afrânio Coutinho (1997), que aborda a vida e as obras de Lima Barreto, estabelecendo relação com a sociedade; Carlos Nelson Coutinho (2000), que caracteriza a produção literária de acordo com o contexto sócio – cultural da época; Holanda (1959), que sintetiza a questão do ufanismo no romance; Lins (1976), que faz um estudo sobre a personagem "Major Quaresma"; Oiticica (1963), que critica o positivismo, ideologia vigente na época; e outros.

Esta monografia está dividida em três capítulos. No primeiro, caracteriza-se a trajetória do autor Lima Barreto. Em seguida, aborda-se sobre o patriotismo inconseqüente do Major Policarpo Quaresma. E o terceiro capítulo traça a revolta de Policarpo Quaresma perante as questões de seu país. Por fim as considerações finais, sintetizando que o estudo da literatura, por meio desse trabalho monográfico, é um grande instrumento para desvelar as questões sociais e históricas da sociedade brasileira.

1 - A TRAJETÓRIA DO AUTOR LIMA BARRETO: VIDA E OBRA

Afonso Henriques de Lima Barreto era mestiço e de origem humilde. Nascido no Rio de Janeiro, em 1881, fez parte dos estudos preparatórios no Colégio Pedro II. Ingressou na Escola Politécnica, que abandonou antes da formatura para assegurar o sustento no funcionalismo público. Dedicou-se de uma forma polêmica ao jornalismo e à literatura da crítica social, onde ele enfocava os problemas de seu tempo. Aposentou-se em 1918, e no ano seguinte declara-se candidato, inutilmente para a Academia Brasileira de Letras.

Foi especialmente, o "romancista da primeira República" vista pelos olhos da classe média dos subúrbios do Rio de Janeiro. Seu pai foi considerado louco e ele próprio passou por grandes desenganos e humilhações. Esteve internado em casa de desajustados mentais por duas vezes, por causa da dipsomania, "tendência mórbida e irreversível para o consumo exagerado de bebidas alcoólicas" (COUTINHO, A., 1997, p. 219), responsável por seu desregramento de vida. A boêmia e o alcoolismo parecem não ter prejudicado seu trabalho intelectual, mas o levaram à morte prematura, em 1922, aos 41 anos de idade.

As obras de Lima Barreto se enquadram no período do Pré-Modernismo, um período literário caracterizado por inovações como o uso da linguagem mais próxima da fala e a focalização dos problemas reais do Brasil da época, mas com características conservadoras que provinham do Realismo e o Naturalismo, como mostra o fragmento:

Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa. (BARRETO, 1998, p. 19)

No entanto, nem tudo o que Barreto escreveu foi publicado em vida. Boa parte dos escritos que formam os 17 volumes de sua obra completa teve de ser coligidas dos jornais e revistas dos quais colaborou. No escritor, a paixão é mais forte que a inteligência. Sua obsessão pela literatura pode ser explicada por uma irreprimível necessidade de explorar temas ligados a sua própria vida. Assim, conforme Massaud Moisés (2001, p. 192-193) Lima Barreto deixou...

(...) os seguintes romances: Recordações do Escrivão Isaias Caminha (1909), Triste Fim de Policarpo Quaresma (publicado em folhetinsno Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1911; em volume, 1915), Numa e a Ninfa (em folhetins, no Jornal A Noite, do Rio de Janeiro, em 1915: em volume, no mesmo ano), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), Clara dos Anjos (em folhetins, na Revista Souza Cruz, Rio de Janeiro, 1923 -1924: em volume, 1948). Em 1956, a Editora Brasiliense de S. Paulo, publicou-lhe as obras completas, em 17 volumes, enfeixando inéditos e dispersos: Histórias e Sonhos, contos: Os Bruzundangas, sátira: Coisas do reino do Jambon, sátira; Bagatelas, artigos; Freiras e Mafuás, artigos e crônicas: Vida Urbana, artigos e crônicas; Marginália, artigos e crônicas; Impressões de Leitura, crítica: Diário Íntimo, memórias; O Cemitério dos Vivos, memórias; Correspondência...

Dentre os temas que abordou, Lima Barreto deixa entrar o cheiro forte da realidade nos quais destacam-se os preconceitos da sociedade da época contra os mestiços e pobres. Seus romances apresentam sempre indignação contra a insensibilidade dos ricos, a superficialidade dos burocratas, a corrupção dos políticos, a esterilidade dos falsos artistas, conforme comentário de Afrânio Coutinho (1997, p. 219):

Deliberadamente empenhado em ridicularizar sem tréguas a sociedade, cujo desdém o feriu tão profundamente, desde suas primícias Lima Barreto procurava converter a literatura numa verdadeira arma de combate.

O espírito crítico de Barreto também se revela no campo lingüístico, o qual caracteriza a língua cotidiana da época, utilizado uma linguagem crítica e despojada, como mostra Afrânio Coutinho (1997, p. 218):

Atraído, por alguns fatores irrecusáveis, às lutas de reivindicações transportadas para a estética pelo Naturalismo, a que não fugiu de todo, Lima Barreto teve como afã absorvente a crítica social. Por isso mesmo, era levado a praticar freqüentemente a literatura em função do jornalismo e, neste, o panfleto é que melhor se ajustava às suas disposições.

E, sua principal contribuição para a literatura contemporânea consiste no abandono do modo artificial e erudito de escrever, dominante em seu tempo. Adotou em seus romances a informalidade estilística própria do jornalismo e da fala coloquial. Nesse sentido, colaborou para a soltura e descontração da frase, o que agradou parte dos escritores modernistas da Semana de 1922. Soube registrar com minúcia muitos aspectos da vida social e política do Rio de Janeiro no tempo da Primeira República.

Lima Barreto, embora mostrasse simpatia pelo folclore e pela vida das camadas pobres da periferia, não soube admirar o futebol como expressão de cultura popular. Era também contra a liberação feminina. Entretanto, foi capaz de, em 1917, admirar a Revolução Russa. Essas e outras posturas revelam um intelectual contraditório, com algumas antecipações avançadas e outras posturas conservadoras.

Tomamos como enfoque principal a obra Triste fim de Policarpo Quaresma, o segundo romance de Lima Barreto. Neste romance é dissecado o sonho de um patriota exaltado, ao mesmo tempo em que é apresentada uma sátira impiedosa e bem humorada do Brasil oficial.

A obra está dividida em três partes: na primeira, Policarpo se dedica ao projeto cultural, ele faz uma petição propondo que se adote no Brasil a língua Tupi-guarani que considera a verdadeira expressão nacional. Na segunda parte, há um projeto agrícola, onde ele vai provar que a terra brasileira tudo dá e que é questão de método, uma questão de dedicação. E na última parte há um projeto político, conforme afirma Moisés (2001, p. 197):

(...) Triste fim de Policarpo Quaresma, (...) passa-se em 1893, (...) A narrativa estrutura-se em três partes, correspondentes a três espaços distintos (o subúrbio, a roça e a cidade) ou as três obsessões do herói (o violão, o sítio e a guerra / Floriano).

Prendendo-se à autenticidade histórica daquele tempo, Moisés continua a postular que:

(...) Lima Barreto se recusa a "fazer obra d'arte, romance": seu propósito, entre confesso e implícito, não é "também fazer uma obra de ódio: de revolta enfim", mas documentar, usando o processo ficcional como instrumento, seu drama de mestiço em meio a uma sociedade preconceituosa. (2000, p.195)

Sua ficção retrata acontecimentos importantes da vida republicana. Consciente dos problemas critica o nacionalismo exagerado e utópico, oriundo do romantismo quixotesco em Triste fim de Policarpo Quaresma, nele, tem-se o nacionalismo tomado como bandeira isolada, tornando-se absurdo e patético. Além disso, aponta para o exagerado militarismo em nossa política republicana, que levou o país à ditadura de Floriano Peixoto, período de conflito entre os militares da linha dura e a elite civil, que almejava um governo descentralizado e federalista, aspirando uma centralização do poder. Os republicanos de São Paulo apoiavam Floriano Peixoto, apesar das tendências centralizadoras deste, dando origem a um nacionalismo manipulado e perigoso.

Para Carlos Nelson Coutinho (2000, p. 27), o autor

(...) em seu principal romance o Policarpo Quaresma, (...) faz uma crítica demolidora da sociedade brasileira, atingindo-a em seu ponto talvez mais típico: no modelo de desenvolvimento "prussiano", "pelo alto", que o florianismo e o militarismo (...) encarnavam tão bem.

O espírito crítico se revela também no campo lingüístico, o qual Lima Barreto, em sua obra, rompeu conscientemente com a linguagem anacrônica, classificada como um Rui Barbosa e Olavo Bilac, escritores da época. Assim, juntando linguagem culta e cotidiana, Barreto fez refletir as contradições culturais daquele período. Em um estilo leve e fluente, o autor utiliza intencionalmente expressões da língua falada da época. Próximo do discurso jornalístico, esse estilo, apesar de muito criticado, acabou sendo usado por muitos autores modernistas, após 1922. Nesse período, os adversários de Lima Barreto o acusaram de desleixado quanto à linguagem da obra, no entanto, ele acusava os escritores acadêmicos de fazerem da literatura "uma continuação do exame de português".

Usando como base a colocação de Massaud Moisés (2000, p. 196),

(...) Lima Barreto desejando que suas narrativas espalhassem mais a vida que a arte acabou por temperar uma com a outra e onde alçou equilíbrio deixou marcas de superioridade artesanal. O meio-tom, a ambigüidade, o implícito na linha do melhor Machado de Assis.

Lima partilhava da idéia de que a literatura devia expressar diretamente o sentimento e as idéias pessoais do escritor. Por isso, quase todos os seus romances possuem lances autobiográficos. Julgava ainda que a função primordial da literatura fosse unir os homens e desmascarar os falsos valores e as instituições que exploram a inconsciência popular.

1.1– A obra nacionalista de Lima Barreto

O Dicionário Prático da Língua Portuguesa (1995, p. 625) define nacionalista como "Que se refere à independência e aos interesses nacionais. Patriótico. Pessoa partidária do nacionalismo". Em Lima Barreto o que incentiva a reflexão sobre o nacionalismo e o patriotismo é o sentimento do relativo, do precário, do manipulável. Tais noções contêm e, mais do que tudo, o temor de uma ideologia servil e tirana armada que o fanatismo engendra. Há por isso um alcance literário no desabafo de Policarpo, capaz de acusar no seu discurso os "conquistadores" e as "nossas subserviências psicológicas".

Assim, Barreto descreve a defesa que Policarpo Quaresma fazia a modinha (poesia tradicional cantada ligeiramente em qualquer área e geralmente dividida em estrofes iguais ou coplas) e suas estantes de livros de autores nacionais ou sobre o Brasil. Demonstra, assim, seu caráter nacionalista, afirmando que "Policarpo era patriota", pois:

Desde moço, ai pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o por inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor, o que o patriotismo o fez pensar, foi um conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa. (BARRETO, 2000, p. 22)

Vê-se que Lima Barreto caracteriza Quaresma como um nacionalista convicto, relacionando o patriotismo com o carreirismo político e administrativo. Continuando nessa linha crítica, ele associa a administração ao ramo militar, decisão de Policarpo, como mostra o trecho:

Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo que é bem o hábito da Pátria. (BARRETO, 2000, p. 22)

Policarpo Quaresma representa um autêntico nacionalista que, entre outras coisas, chegava a ponto de redigir um requerimento à Câmara, solicitando ao Congresso a adoção do Tupi-Guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro, como retrata o fragmento:

Policarpo Quaresma, (...) certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar e o escrever em geral, (...) se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua; sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e escritores, com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, (...) usando do direito que lhe confere a Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani, como língua oficial e nacional do povo brasileiro.(BARRETO, 2000, p. 52)

Como conseqüência disto, Quaresma virou motivo de piada em todos os jornais do Rio, foi tido como louco e afastado de seu cargo, posteriormente, passou a se interessar pela terra e:

(...) Então pensou que foram vãos aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida era uma forte base agrícola, um culto pelo solo ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela tinha de preencher. (BARRETO, 2000, p. 76)

É neste momento que acontece a transição do interesse de Policarpo: a questão puramente cultural à questão política, embora, ainda lhe parecesse estranho o interesse pela política que via na zona rural carioca onde passara a morar. A sua preocupação era com a terra e com o exemplo que haveria de dar à nação, colaborando com a formação de uma "forte base agrícola", através do seu sítio.

A personagem Olga ao visitar Policarpo começa a observar a miséria da roça e pergunta ao empregado do sítio do seu padrinho por que ele não planta nas terras. Felizardo, o empregado, responde: "Terra não é nossa... E "frumiga"?... Nós não "tem" ferramenta... isso é bom para italiano ou "alemão", que governo dá tudo... Governo não gosta de nós..." (BARRETO, 2000, p. 103).

Nesta passagem, Lima Barreto coloca com muita clareza a situação daqueles que estão sem acesso aos meios de produção, desvendando, assim, a máscara da sociedade de classe e revelando a situação do trabalhador rural sem acesso a terra. Mas não se limita a isso, pois a sentença o "Governo não gosta de nós" traz um significado: o governo, ou o estado, não "gosta" daqueles que não tem os meios de produção, ou seja, o estado defende os interesses da classe dominante que detém os meios de produção. Coloca-se, então a contradição entre a "idéia" de pátria e a pátria real. O próprio Policarpo Quaresma, na narração de Lima Barreto, ao negar o pedido de um político da região e com isso receber uma intimação municipal absurda, esboçou a compreensão desta contradição como nos mostra o fragmento:

A luz se lhe fez no pensamento... aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as. (BARRETO, 2000, p.114)

Assim, Policarpo compreende que a miséria da população não é "natural" e sim um problema criado pela sociedade. Mas, Policarpo não abandonava o patriotismo, apenas o fazia mudar de alguma forma. Depois de uma nova perseguição política, "Quaresma veio a recordar-se do seu Tupi, do seu folk-lore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas – tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil..." (BARRETO, 2000, p.116).

Pois,

Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; torna-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Suelly e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levando o cultivador... então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz. (BARRETO, 2000, p. 116)

Os defensores da pátria, os militares, tornam-se os objetos da crítica de Lima Barreto: a maioria é apresentada como defensora de seus interesses pessoais e a minoria é apresentada como adepta,

(...) desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regime normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso em fim, com inscrições em escritura fonética e eleito calçados com sapatos de sola de borracha!... (BARRETO, 2000, p.121)

Essa é uma crítica à relação forçada entre "ordem e progresso" e ao positivismo (tendência para encarar a vida só pelo seu lado prático e útil) como um todo, que era a ideologia dos militares da época. Os militares, os "defensores da pátria" esperavam realizar os seus anseios com a revolta da Esquadra, atrás de seus mesquinhos interesses pessoais e ...

Essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supriram os títulos e habilitações para ocupá-las, além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações. (BARRETO, 2000, p.122)

Ora, se os defensores da pátria defendem, na realidade seus interesses pessoais, então a pátria é apenas um mecanismo que mantêm a ordem e conquista o servilismo das classes exploradoras. Além disso, se observa aqui a revelação de uma das funções do estado para manter a dominação de classe: criar um conjunto de funcionários que passam a depender do estado e por isso irão defendê-lo, ou seja, criar a burocracia, classe auxiliar da burguesia. Esta possui seus interesses particulares, entre os quais o de se reproduzir aumentando o seu espaço de participação no estado, criando novos cargos e departamentos. Tal como o sociólogo Max Weber já tinha observado que a burocracia busca sempre se expandir criando novos espaços burocráticos, e o interesse geral de manter o seu empregador, o estado. Por isso, a burocracia estatal é sempre conservadora.

Assim, Lima Barreto desfaz a ideologia da pátria. Essas considerações lembram a do anarquista José Oiticica em sua obra "A organização Militar" In: Anarquismo, roteiro de libertação social, que disse que o...

Patriotismo, sentimento natural, é pelo estado convertido em elemento psicológico de obediência para fins egoístas, para manutenção da ordem, para repressão violenta e brutal dos famintos e desafortunados. (1963, p.197)

Policarpo Quaresma se decepciona com o Marechal Floriano Peixoto, de modo particular com a guerra contra os "revoltosos", movimento por unidades da Marinha do Brasil contra o governo de Marechal Floriano Peixoto, apoiado pela oposição monarquista à recente instalação da República. Começou a delinear-se em março de 1892, quando treze generais enviaram uma carta - manifesto ao presidente da República, Floriano Peixoto. Esse documento exigia a convocação de novas eleições presidenciais para que, cumprindo-se o dispositivo constitucional, se estabelecesse a tranqüilidade interna na nação. Floriano reprimiu durante o movimento, determinando a prisão de seus líderes. Para ele,

A sociedade e a vida pareceram-lhe coisas horrorosas, e imaginou que do exemplo delas vinha os crimes que aquela punia, castigava e procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéias; muitas vezes julgou que delirava. (BARRETO, 2000, p.172)

Portanto, a ideologia da pátria já havia sido denunciada pelo narrador onisciente, o qual passa a ser desmascarado pelo personagem principal, Policarpo Quaresma, que chegou a seguinte conclusão:

A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectualidade, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati. (BARRETO, 2000, p.175)

Lima Barreto coloca o nacionalismo como uma criação histórica e que serve à determinados interesses, avançando mais em um romance do que o anarquista José Oiticica em seu escrito político, pois este diz que o patriotismo é um "sentimento natural" que o estado o utiliza para fins egoístas. O patriotismo ou nacionalismo não é um sentimento natural e sim um produto do desenvolvimento histórico e que serve aos interesses de quem detém o poder. Para o autor, o nacionalismo não é um "sentimento natural", mas sim uma idéia criada historicamente e utilizada pelos "conquistadores" que se utilizam também das nossas fraquezas psicológicas.

A reconstrução literária da ideologia nacionalista por Barreto assume um caráter nitidamente crítico e desmistificador. A crítica ao nacionalismo ocorre desde o início, atravésdo narrador, e atinge o ponto culminante quando Policarpo Quaresma reconhece seu engano e se conscientiza de que a pátria é uma ficção. O final apresenta a unidade de pensamento do narrador e Policarpo, realizados através do desenvolvimento da consciência deste último, que ocorreu por intermédio de sua experiência própria e demonstra a completa superação da ideologia pelo segundo, como mostra a obra:

E, bem pensado, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo império se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da crendice dos povos greco - romanos de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombrase era preciso alimentá-las para que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para os Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições... (BARRETO, 2000, p.175)

Portanto, a reconstrução literária de Lima Barreto se caracteriza por ser uma crítica radical ao nacionalismo.

2 – O PATRIOTISMO INCONSEQUENTE DO POLICARPO QUARESMA

A reconstrução literária da idéia de nacionalismo efetuado por Lima Barreto é simultaneamente, uma reconstrução das contradições da sociedade brasileira no início do século XX, que assume um caráter crítico e realista. Conforme Carlos Nelson Coutinho (2000, p. 27), "Lima Barreto foi o primeiro intelectual brasileiro a se beneficiar diretamente das condições sociais da sociedade civil capitalista", construindo uma obra renovadora, rompendo os padrões da estética parnasiana e simbolista que se preocupava mais com a maneira de dizer do que com o que havia de ser dito.

Já no início do romance, Barreto nos apresenta a figura do major Policarpo como a de um homem que, incapaz de explicitar seu núcleo no vazio mundo burocrático em que é forçado a viver, desenvolve no isolamento de sua subjetividade um profundo amor pelo país, um grande desejo de empregar seus talentos e capacidades a serviço do progresso nacional, como mostra o trecho:

Policarpo era patriota. Desde moço, ai pelos os vinte anos, o amor da pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente, nada de ambições políticas ou administrativas; (BARRETO, 2000, p. 22)

Assim, ironizado pelos que queriam levar ao ridículo aquele que trabalhava em silêncio para a grandeza e a emancipação da Pátria, o herói de Lima Barreto vai levando a vida, metade na repartição (burocrática), sem ser compreendido, e a outra metade em também sem ser compreendido. Não se sabia bem onde nascera, mas, não fora decerto em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo. Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte do seu país, tanto assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não eram só os Pampas do Sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas Gerais, não era a beleza de Guanabara, era tudo isso junto, fundindo e reunido sob a bandeira estrelada do cruzeiro, como evidencia o fragmento:

(...) o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa. (BARRETO, 2000, p. 22)

Os problemas surgem quando tais idéias são defendidas no âmbito público por Quaresma, o que o leva ao centro de um amplo movimento de difamação animada por seus pares. Enquanto vivia quase isolado e imobilizado pela burocracia de seu trabalho e por suas pesquisas livrescas, foi possível manter um precário equilíbrio íntimo. Assim que parte para uma ação mais concreta – a redação do requerimento ao Marechal Floriano para pedir a adoção do Tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro -, rompe-se esse equilíbrio e Policarpo vive uma triste experiência no Hospício, para ele uma sepultura em vida, um inferno social, "(...) de todas as coisas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura ..." (BARRETO, 2000, p. 74).

2.1 - A razão quaresmiana

Buscando a lógica para seus ideais, através da História, Geografia e Literatura Brasileira, Quaresma alçou a tragédia. A razão "quaresmiana" assume como real o próprio delírio, até tornar-se mundana no sentido de ser o centro de tudo o que o cerca. A lógica desta razão possui peculiaridade própria já que está voltada a propósitos subjetivos, às coisas do pensamento. Para ele o Brasil é modelo de perfeição inquestionável, seja pela beleza exuberante do país, seja pela singularidade da cultura produzida em terra própria.

A lógica da razão mundana está voltada à fantasia e por não existir uma experiência específica que explique o funcionamento da razão, a solução de certos problemas devem ser buscadas na própria razão. Para Policarpo Quaresma a razão mundana constrói uma meta imaginária, observa-se que...

Desinteressado de dinheiro, de glória e posição, vivendo numa reserva de sonho, adquirira a candura e a pureza d'alma que vão habitar esses homens de uma idéia fixa, os grandes estudiosos, os sábios, e os inventores, gente que fica mais terna, mais ingênua, mais inocente que as donzelas das poesias de outras épocas. (BARRETO, 2000, p. 54)

A capacidade infinita que tem a razão de formular problemas pode ser tomada como sendo uma das definições possíveis do homem. Contudo, os problemas pela razão levantados devem circunscrever apenas o campo da existência. Restrição que tem por finalidade desconstruir a razão mundana. Este problema sinaliza para a solução do impasse dialético criado pela própria razão. Só por meio da desconstrução é que se pode compreender como a razão mundana produz, ela mesma, sua ilusão dialética de um mundo representado de maneira caótica.

As melhores qualidades humanas de Policarpo eram a inteireza de caráter e o profundo desejo de emancipação social, que conseguem se manter inalterados diante daquilo que Carlos Nelson Coutinho (2000, p. 138), citando Lukács chamou de "transformação negativa das formas fenomênicas dadas da sociedade". Mas o preço dessa manutenção, precisamente por causa do isolamento da personalidade é a deformação bizarra daquelas qualidades. Desligado do contato criador com a realidade, incapaz de explicitar-se numa prática social adequada, a emoção nacional-popular de Policarpo assume a forma extravagante de um nacionalismo fanático, ufanista, fundado em mitos romântico-reacionários.

Ainda que sem jamais por em dúvida a retidão subjetiva de seu personagem, Lima Barreto dissolve no humor os elementos equivocados desse nacionalismo. O importante é ressaltar que essa crítica autenticamente democrática ao falso nacionalismo ufanista é, realizado com meios especificamente estéticos, ou seja, através da figuração narrativa de sua completa inadequação à realidade (que assume estilisticamente a forma espirituosa e levemente irônica na expressão); essa inadequação culmina na proposta, claramente absurda para a sociedade, de adoção do Tupi-guarani como língua nacional brasileira. Deve-se observar que, na representação dessa ambivalência do herói expressa na contradição entre suas corretas intenções de participação social e os conteúdos equivocados que ela assume, Barreto figura o elemento "problemático" dos heróis romanescos, nos quais a busca de valores autênticos, em função da solidão e do isolamento a que são socialmente condenados, assume traços objetivamente degradados.

2.2 - A imaginação utópica de Quaresma

A personalidade romanesca do major Quaresma além de possuir traços degradados o levou a utopia. A idéia de utopia é importante para compreender seu projeto. Crença e esperança são os motores de todas as utopias. A palavra utopia alcança ampla significação a partir de 1516, quando inglês Thomas More publica em latim o livro "Utopia" (nome de um país imaginário criado por ele). Ou-topos significa não-lugar ou lugar do sonho, um projeto irrealizável, uma fantasia. O utopista sonha, e é dominado pelo sonho. A imaginação utópica aponta necessariamente para o futuro; ela carrega a crença de que seu ideal é a expressão da verdade de um povo ou da condição humana.

Essa idéia de utopia vincula-se à literatura consumida por Quaresma: autores nacionais ou os viajantes e cronistas estrangeiros que escrevem sobre o Brasil, tendo como pano de fundo cultural o mito do Eldorado, do paraíso mundano. Entre outros que descreveram o impacto da descoberta dessa natureza sensual e abundante no espírito europeu, Quaresma lê Hans Staden, Jean de Léry, Saint-Hilaire, cronista da viagem de Fernão de Magalhães. Esses autores trazem informações que permitem ao leitor captar as condições primitivas de uma cultura, a qual voltaria a essas raízessempre que precisasse marcar sua diferença diante do estrangeiro. Entreos autores nacionais, as estantes do protagonista mostravam Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, José de Alencar e Gonçalves Dias, entre outros. Os traços comuns a esses autores que formam a biblioteca de Quaresma, são as reflexões sobre as raízes da nacionalidade brasileira e os dados necessários à constituição de uma identidade nacional pautada na crítica ferrenha e na negação e recusa de tudo que não fosse puramente brasileiro.

3 - SINAIS DO TEMPO: A REVOLTA DE POLICARPO QUARESMA PERANTE AS QUESTÕES SOCIAIS DE SEU PAÍS

3.1 – A importância da terra brasileira

No desenvolver da trama, o sentido utópico desloca-se para a criação de uma forte base agrícola, no interior do país, a partir da qual se pudesse comprovar a fecundidade da terra brasileira e realçar a grandeza da Pátria estremecida:

Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o milho, o feijão, a batata-inglesa... Tu irás ver as minhas culturas, a minha horta, o meu pomar – então é que te convencerás como são fecundas as nossas terras! (Barreto, 2000, p. 74)

Sérgio Buarque de Holanda (1959) em Visão do Paraíso registra: o clima ameno e temperado favorece o cultivo dos deliciosos frutos tropicais. Esse horto de delícias, emblema de uma paisagem edênica, corresponde à biblioteca brasiliana – textos de viajantes, que criaram uma imagem utópica das potencialidades da terra brasileira. O ufanismo, tratado no romance como uma doença mental, não mudou; apenas se manifesta, agora, com a mesma obsessão, no espaço rural.

De acordo com Lins (1976, p. 39), contrariamente à visão utópica do "paraíso terreal" o resultado será aqui outro desastre e a terra quase nada produz, e as saúvas aferroam o major com a mesma violência que a da impiedosa reação geral ao seu infeliz requerimento. A esterilidade de Policarpo Quaresma – que não tinha filhos – é a mesma de seus projetos utópicos:

Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua pele magra. (...) (...) Matou uma, duas, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma morde-o, depois outra, e o foram mordendo pelas as pernas, pelos os pés, subindo pelo seu corpo. Não pode agüentar, gritou, sapateou e deixou a vela cair. (Barreto, 2000, p. 105)

Diante de situações tão adversas, o major Quaresma escreveu um memorial denunciando as péssimas condições de vida no campo. Ao saber da eclosão da Revolta da Armada em 1893, o protagonista apressa-se em manifestar sua solidariedade ao presidente Floriano Peixoto. Passa-lhe um telegrama, pedindo-lhe energia e garantindo que seguia imediatamente para alistar-se nas forças da incipiente República Brasileira contra os rebeldes. Leva consigo o memorial. Novamente, as palavras precedem a ação, e o resultado é, como sempre, um estrondoso fracasso.

3.2 – A literatura de Quaresma: um protesto em relação aos militares da época

Conduzindo para o encerramento da obra, o autor propõe nova mudança do espaço e nova ação. Quaresma seria um dos chefes do quartel provisório, e sua ação deveria ser militar. É nessa parte que se vai ampliar radicalmente o fosso que separa o protagonista dos outros personagens. Com exceção de Ricardo-Coração-dos-outros, seu futuro subordinado no quartel, ninguém mais se entenderá com o Major, que fará uma amarga autocrítica, culminando na desencantada carta à irmã Adelaide, em que escreve: "O melhor é não agir, Adelaide (...). Além de que, penso que todo este meu sacrifício tem sido inútil" (BARRETO, 2000, p. 167).

De resto, todo o sistema de idéias que o fizera meter-se na guerra civil se tinha desmoronado. Policarpo via em Floriano Peixoto o Henrique IV brasileiro. Esse rei da França havia cortado os abusos dos governadores de províncias que cobravam do povo impostos exorbitantes. Floriano não era esse déspota iluminado (soberano, absoluto), mas um homem ferozmente caricaturado, como retrata a obra:

Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande mosca; os traços flácidos e grosseiros; (...) Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos. (BARRETO, 2000, p. 130)

Policarpo foi transformado em carcereiro dos revoltosos derrotados e, numa noite, assiste a uma cena chocante: um oficial do governo, acompanhado de uma escolta, vai selecionando, ao acaso, prisioneiros que são retirados das celas e levados para serem fuzilados. Quaresma não se contém e escreve veemente carta de protesto a Floriano. Os defensores da pátria, os militares, tornam-se os objetos da crítica de Lima Barreto:

a maioria é apresentada como adepta "desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico limitado e estreito, que justifica todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da ordem, condições necessárias ao progresso e também ao advento do regime normal: a religião da humanidade, a adoração do grão-feitiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escrituras e eleitas calçados de sola de borracha!..."(Oiticica, 1963, p. 200).

Essa é uma crítica à relação forçada entre "Ordem e Progresso" e ao positivismo como um todo, que era a ideologia dos militares da época.

A carta que escreveu a Floriano é sua última transgressão, corresponde a hybris (a desmedida) da tragédia grega. Novamente, as palavras estão na raiz da tragédia de Policarpo, que em represália à sua coragem moral, viu-se trancafiado em uma masmorra na Ilha das Cobras – por sinal, o mesmo espaço de reclusão do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga. A prisão o leva a uma terrível crise existencial que o força a refletir sobre sua vida:

Desde dezoito anos que o tal patriotismo o absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois se fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas coisas de tupi, folklore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma! (BARRETO, 2000, p. 175)

Seu destino assemelha-se ao dos grandes personagens das tragédias clássicas: não apresenta nenhuma saída. Seu fuzilamento é inevitável, um fatalismo. O destino o arrasta até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito de acreditar num Brasil forte, rico e soberano, e querer salvá-lo dos políticos corruptos. Apenas de seu próprio aludir ao fato de que, ironicamante, morreria tragicamente, sem deixar descendentes. Pois, Policarpo vem do grego (Polykarpos) e significa o de muitos (poly) frutos (karpos) e Quaresma também lembra tristeza e penitência, além de no Brasil ter um sentido particular de potoqueiro (mentiroso) exagerado.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lima Barreto coloca o nacionalismo como uma criação histórica, o qual serve a determinados interesses, avançando mais no romance do que o anarquista José Oiticica em seu escrito político, pois este diz que o patriotismo é um "sentimento natural" que o estado utiliza para seus fins egoístas. O patriotismo ou nacionalismo não é um sentimento natural e sim um produto de desenvolvimento histórico e que serve aos interesses de quem detém o poder. Para Lima Barreto, o nacionalismo não é um "sentimento natural", mas sim uma idéia criada historicamente e utilizada pelos "conquistadores" que se utilizam também das nossas fraquezas psicológicas.

A reconstrução literária da ideologia nacionalista realizada por Lima Barreto assume um caráter nitidamente crítico e desmistificador. A crítica ao nacionalismo ocorre desde o início através do narrador e atinge o ponto culminante quando Policarpo Quaresma reconhece seu engano e se conscientiza de que a pátria é umaficção. O final apresenta unidade de pensamento do narrador e de Policarpo, realizada através do desenvolvimento da consciência deste último, que ocorreu por intermédio de sua experiência própria e demonstra a completa superação da ideologia do primeiro.

Por não conseguir decifrar os códigos de sua sociedade, Quaresma torna-se um melancólico, isola-se de tudo por saber que nada poderia alterar. Seu mundo desmorona, sua história não contribui em nada, não faz parte do mundo dos homens poderosos, constata melancolicamente que a História é escrita pelos vencedores. Porém, o ingênuo e caricato "Dom Quixote" de Lima Barreto, parece nada perceber ou ver, mas é através de sua luta contra "moinhos de ventos", que nós leitores começamos a enxergar a figura caricata da sociedade e do nacionalismo.

A tese central do romance, apocalíptica, pressupõe não haver esperança na terra para o idealista ou humanista que, como o próprio Quaresma, sonha com um futuro melhor para o ser humano. Presenciamos um desespero mórbido, sofrido, sem pressupostos filosóficos, sinal da psicose de fim de mundo que sacode as últimas décadas do século XIX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. 23 ed. São Paulo: Ática, 2000.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 6 ed. São Paulo: Global Editora, 1997.

COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.

LINS, Osmam. Lima Barreto e espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.

OITICICA, José. A organização militar. In: LEUENROTH, Edgard (org). Anarquismo, roteiro de libertação social. Rio de Janeiro: Mundo livre, 1963.

ROUSUT, Aleixo et al. Dicionário Prático de língua portuguesa comp. Melhoramentos. In: MARINS, Francisco (org). São Paulo: Indústria de Papel, 1995.