Nesta época atual de valorização do dinheiro – época de luta entre o Deus Jeová e Mamom (o deus do lucro e do mercado) – vemos muitas pessoas serem desprezadas e até consideradas “amaldiçoadas” porque não conseguem se estabelecer economicamente neste mundo injusto e capitalista na sua forma mais selvagem. Esse pensamento atinge a igreja em todo o mundo e transforma a riqueza em sinônimo de bênção e escolha de Deus... infelizmente! Sob este pensamento, elaborei essa história para ilustrar um sermão baseado nas bem-aventuranças de Lucas 6.

Nos tempos de Jó, havia a teologia da retribuição. Segundo sua doutrina, era possível saber quem era justo e quem era pecador. Seus bens e saúde demonstravam que alguém tinha aquilo porque era “honrado” por Deus. Hoje, com a teologia da prosperidade, há uma diferença sutil. Se você fizer tudo que lhe for orientado na sua religiosidade, Deus o abençoará com bens, riquezas e saúde. Se assim não acontecer, é porque você não está sendo fiel para com Deus. Quanta crueldade com aqueles irmãos e irmãs que não se estabelecem e sofrem pela ingerência de governos e ganância dos mais ricos e poderosos. Que Deus nos ensine e modificar essa realidade, já que não é assim que encontramos na Palavra de Deus, nas Bem-aventuranças...

 Na porta do céu

            Ele era um homem “abençoado”. Sua vida havia mudado completamente depois que ele aceitou Jesus e entrou para aquela Igreja. Mudou-se de um bairro do subúrbio para a zona sul, trocou seu carro já antigo por um importado zero-quilômetro e deixou seu simples emprego de metalúrgico para dedicar-se à sua locadora de automóveis que já tinha até duas grandes filiais no centro da cidade.

            A partir daí, passou a ser um dos maiores dizimistas daquela grande e “bem-sucedida” Igreja. O pastor o considerava um exemplo a ser seguido por todos. Participava de todas as atividades e até foi convidado a dar seu testemunho na tevê contando como Deus mudou sua vida tirando-o da “lama” do subúrbio para a “maravilhosa” zona sul; como deixou de ser um “derrotado” empregado para ser um “vitorioso” empresário; e, a grande prova de que era abençoado: “Deus lhe deu” um carro importado. Sem contar o celular e as viagens constantes ao exterior com toda a família.

            Com o avanço da tecnologia, dos quais a Igreja não pode fugir, e com seu grande poder aquisitivo – aliado à fidelidade nos dízimos e nas ofertas – ele pôde receber a mais nova segurança de salvação dos crentes: O CARTÃO MAGNÉTICO PERSONALIZADO PARA ENTRADA NO CÉU. Era a garantia de que ele estaria no Reino de Deus pela sua grande fidelidade e por ser um “abençoado”, como ficou mais do que provado.

            Mas sua hora havia chegado: ele morreu! Todos, no seu velório e no seu sepultamento, comentavam que aquele era, com certeza, um homem que caminhava para o céu. E assim foi. Ele caminhou em direção à porta do céu com seu cartão magnético que lhe garantia a entrada. Ao chegar lá, encontrou algumas pessoas com o cartão na mão tentando passá-lo de novo e de novo. Ao perguntar o que houve, disseram-lhe que o acesso estava negado para eles. Enquanto que alguns, que chegavam sem nada nas mãos – e até descalços, vejam só! –, conseguiam entrar. É claro, achou aquilo um absurdo. Mas com ele não poderia acontecer isso! Fora fiel dizimista e não faltara a uma reunião da prosperidade! Nosso amigo passou o cartão e... ACESSO NEGADO! “Mas como? Não aceito isso!” Era a maneira como ele tinha aprendido a falar com Deus. Ele se uniu com os que já estavam lá e com outros tantos que chegaram depois e também tiveram o acesso negado. Gritaram tanto que alguém veio ver aquela manifestação. Eles exigiam a presença de Deus. Queriam falar com ele. Deus chegou e perguntou:

            - O que houve?

            - Queremos saber o que aconteceu, pois nosso acesso foi negado. Todos nós temos aqui o cartão e já vimos pessoas entrarem sem ele.

            - Bem, eu não posso fazer nada. – Disse Deus. Se o acesso foi negado, eu lamento, vocês terão que procurar outro lugar.

            - Mas nós queremos ficar aqui. Como é que o Senhor diz que não pode fazer nada? Não foi o Senhor que criou tudo? Portanto é seu e é o Senhor quem manda!

            - Não é bem assim! Vocês não leram na Bíblia? Está lá em Lucas 6.20: “Felizes são vocês, os pobres, porque o Reino de Deus vos pertence”. É verdade que fiz o Reino dos Céus, mas dei aos pobres, esses que vocês estão vendo entrar aqui sem os cartões. Portanto vocês só entram se eles deixarem. O Reino dos Céus é deles! E eles até deixam entrar muitos amigos, mas quanto a vocês não sei. Conversem com eles!

            E assim, Deus voltou lá pra dentro.

            Pouco depois, chegou um homem dizendo-se o representante dos que herdaram de Deus o Reino dos Céus e perguntou:

            - Nosso Deus me mandou vir falar com vocês. O que querem?

- Já que nós descobrimos que o próprio Deus deu o Reino dos Céus a vocês. Queremos saber por que não podemos entrar.

            - Vocês provaram, com seu constante acúmulo selvagem de bens lá no mundo, que não vão conseguir viver neste Reino que é de partilha e solidariedade. Além disso, lembramos muito bem quando vocês falaram para todos que eram “escolhidos” pelo que tinham, tirando de nós a possibilidade de compartilhar de sua “abençoada” comunidade. Se deixarmos vocês entrarem, estaremos arriscando a deixar entrar também, o egoísmo, a ganância e a mesquinhez, o que acabaria com a proposta de Deus para este lugar que ele nos confiou.

            - Mas vocês não acham isso muita crueldade? – disse o “abençoado”.

            - Não! Vocês já tiveram sua alegria e nem se lembraram de nós. Não vão ficar aqui, podem ir embora! Além do mais, “tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; estive nu e não me vestistes; estive longe de casa e não me recebestes nas suas; estive doente e preso e não cuidastes de mim” (Mateus 25.42-43).

            Com isso, ele fechou a porta e voltou lá pra dentro.

            Nosso amigo “abençoado” saiu procurando um outro lugar pra ficar, junto com todo o grupo, tendo seus cartões nas mãos.

            Será que encontraram outro lugar pra ficar?

 

Sandro Xavier

[email protected]

Publicado em Vida plena para toda la creación (Aipral/Isedet), em 2006

 

 

 

Questões para debater:

1. Meister Eckhart (místico do séc. XIII) dizia que se alguém quando pede algo a Deus e ao não receber rebela-se contra ele demonstra que seu coração está naquilo que pediu e não em Deus. Comente essa afirmativa entre o grupo e dê exemplos.

2.  Após a leitura de Lucas 6.20, qual é a sua impressão deste versículo? Há várias versões deste texto em Bíblias diferentes. A sua dá uma outra impressão? Partilhe com o grupo.

3. Na leitura do texto, ao conhecer o fiel dizimista que tinha o cartão magnético, que atitudes dentro da igreja fazem perceber que algumas pessoas demonstram merecer mais “o céu” que outras.

4. Quais são as consequências de dar mais importância a acumular bens e dinheiro como bênção dentro da comunidade?

5. Como a igreja pode superar esse pensamento que só considera abençoado o rico, o bem empregado, o saudável, deixando o pobre, o desempregado e o doente como uma espécie de “amaldiçoado”?