A presente discussão que propomos refere-se à compreensão dos efeitos de sentidos produzidos na/pela mídia e configurados nas formações imaginárias constitutivas do processo de inscrição dos sujeitos no simbólico e na construção subjetiva da identidade. Mais especificamente buscamos analisar a constituição e a circulação de sentidos numa propaganda publicitária veiculada na TV aberta, a qual se estrutura na convergência de múltiplas linguagens e institui os sujeitos-espectadores nas vias de um processo identificatório.
Para a realização de tal empreita, nos filiaremos às concepções da teoria crítica da linguagem, a Análise do Discurso, e em especial as proposições analíticas disponibilizadas por Orlandi (1995, 1999), Stübe Netto (2007) e Gregolin (2007). Deste modo, e a posse deste arcabouço teórico, perguntamos pelos sentidos que se constituem na propaganda, pelo jogo significante entre a construção identitária ritualizada pela mídia e as formações imaginárias no social.
A propaganda, objeto de nossa análise e contida no espaço mercadológico dos comerciais televisivos, é uma produção de uma empresa que promove relacionamentos à distância pelo telefone. O produto oferecido neste merchandising, nomeado Superpapo, possibilita aos consumidores em potencial a interação via aparelho telefônico com outras pessoas de diversas regiões do país, com a possibilidade de, a partir das ligações, haver a consecução de relacionamentos afetivos.
Esta propaganda nos é apresentada no formato teledramatúrgico, no qual a representação filmográfica se estrutura por meio de um enredo no qual se sucedem acontecimentos consectários das fases anterior e posterior à utilização dos serviços do produto anunciado. A rede de planos fílmicos segue a ação rotineira de um cidadão comum em suas atividades, sequenciando-as e construindo os cenários e a composição cromática segundo as perspectivas emocionais da personagem principal. Isso sugere que as possibilidades combinatórias de cores estarão em relação ao padrão de comportamento ritualizado pelo trato ficcional nas cenas do comercial. Importa realçar tais pontos, pois aqui tratamos da materialidade imagética, a qual funciona sob parâmetros próprios de construção. Destarte, compreendamos que esta materialidade imprime sua própria maneira de ser e de se significar, de onde entendemos ressaltá-la como um discurso autônomo. Faz-se sobremaneira necessário instituirmos esta concepção de um discurso próprio à imagem, enquanto veiculo de produção e circulação de sentidos, para que logremos êxito ao nos conduzirmos a um trabalho analítico.
A constituição da propaganda dá-se pela injunção de diferentes materialidades, as quais a tornam uma amálgama significativa. Sendo assim, sua constituição enquanto uma materialidade significante estará subsidiada pela conjunção dos elementos: cor, som, planos de imagens, etc. Por constituir-se neste conjunto heteróclito de linguagens, a Análise do Discurso serve-nos como arcabouço interpretativo, porquanto "(...) permite trabalhar não exclusivamente com o verbal (o lingüístico), pois restitui ao fato da linguagem sua complexidade e sua multiplicidade, isto é, aceita a existência de diferentes linguagens (...)". (ORLANDI, 1995, p. 35) E advém daí que "o importante para a AD não é só as formas abstratas, mas as formas materiais de linguagem" (Idem, p. 34). Deste modo, da injunção de um conjunto de diversas materialidades o discurso, e principalmente o discurso midiático, eleva seu poder como meio de se fazer circular sentidos e construir identidades para os sujeitos.
Na verdade, a presença dessa multiplicidade de linguagens implica pensarmos nas formas do verbal presentes em nosso material de análise, pois atentamos para o fato de que o verbal insinua-se como mais um componente significante. Isto quer dizer que ao mesmo tempo em que as imagens, o som e o recurso da narração em off pretendem se dizer enquanto formas autônomas, o verbal materializa-se em legendas que instituem-se como um elemento a mais para formar o ?acontecimento discursivo?, alocando para si a tarefa de significar a propaganda pelos dizeres grafados no televisor do espectador. Diante dessa estratégia instaurada, pensamos nos efeitos de sobredeterminação do verbal sobre o não verbal, pois "por esse efeito ideológico, também a mídia funciona através da redução do não verbal ao verbal, produzindo o efeito de transparência, da informação, do estável (ou, pelo menos, do diretamente decodificável)." (Ibidem, p. 41-42) É justamente por esse efeito ideológico de pensar o verbal como fonte última de significação que a propaganda instaura as legendas como a instância significativa em relação as demais linguagens, o que deve ser tomado como efeito do uso, por parte da mídia, de uma concepção, altamente difundida no senso comum, de ?transparência informativa? que intenta ser decodificável para o sujeito-espectador.
Na realidade, ao postular a continuidade e composição discursiva das diferentes materialidades significantes para a decodificação sistêmica e adequada do conteúdo veiculado a propaganda intenta conjurar os sujeitos-espectadores a introspecção da ordem de um processo identificatório, o qual está prementemente constituindo-se pelo imaginário destes mesmos sujeitos em relação a aquilo que deles é significado no discurso midiático.
Cumpre, desta maneira, visarmos os efeitos de sentidos constituídos no simbólico do discurso midiático para a inserção de sujeitos históricos na construção subjetiva de suas identidades. Assim, pensamos em como o discurso midiático da propaganda promove sentidos sobre a identidade do sujeito-espectador por um processo de subjetivação deste discurso. O que entendemos é que todo sujeito se apresenta como "fragmentado, esfacelado, emergindo apenas pontualmente pela linguagem, lá onde se percebem lapsos, atos falhos." (CORACINI apud STÜBE NETTO, 2007, p. 130) Sendo assim,

uma vez que esse sujeito emerge apenas na linguagem, precisamos considerar que a linguagem é uma ordem simbólica, na qual as representações, os valores e as práticas sociais encontram seus fundamentos. Ela é entendida como efeito de sentidos entre sujeitos historicamente situados, imbricando conflitos, reconhecimentos, relações de poder e constituição de identidades. (STÜBE NETTO, 2007, p.131) (grifo nosso)

Vale dizer, retomando o que nos assegura a autora, que por intermédio da linguagem é que se dá a constituição de identidades, por isso a apropriação ampla feita pela mídia desta particularidade dos sistemas simbólicos. Deste modo, e no caso específico de nosso material de análise, a mídia faz uso da linguagem, enquanto fundante de identidades, para instituir um processo subjetivo de identificação, que tem por objetivo fazer com que os sujeitos-espectadores se reconheçam no discurso proferido e consequentemente se apropriem do produto colocado à venda. Por outro lado, o que o discurso da mídia oferece "(...) não é a realidade, mas uma construção que permite (ao sujeito) produzir formas simbólicas de representação da sua relação com a realidade concreta." (GREGOLIN, 2007, p. 16) Segundo a mesma autora,


Na sociedade contemporânea, a mídia é o principal dispositivo discursivo por meio do qual é construída uma "história do presente" como um acontecimento que tensiona a memória e o esquecimento. É ela, em grande medida, que formata a historicidade que nos atravessa e nos constitui, modelando a identidade histórica que nos liga ao passado e ao presente. (Idem, Ibidem)

Por este viés, a forma como os sujeitos se enxergam, ou seja, a construção imaginária que fazem do que representam ser, sua identidade, está intimamente ligada, na contemporaneidade, ao discurso midiático, pelo que ele diz e em como diz. De todo modo, entendemos que "as identidades são, pois, construções discursivas (...)" (Idem, p. 17), e que elas erigem-se por meio da linguagem.
A força de atração do discurso da mídia na sociedade dá aos sujeitos modelos generalizados de identificação, que funcionam pela ordem do consumo. Nestes modelos generalizados de identificação promove-se a uniformidade social por meio de discursos que preconizam paradigmas para os sentidos do sujeito sobre si próprio, sobre sua subjetividade e sobre seu corpo. Assim,

podemos enxergar [... uma] rede de discursos tomando alguns exemplos de propagandas, veiculadas na grande mídia brasileira, com base nas quais institui-se a subjetivação tanto nas práticas que propõem a modelagem do corpo como na construção dos lugares a serem ocupados por homens e mulheres na sua relação com os outros. Articuladas a outros enunciados que com elas dialogam nos meios de comunicação, essas propagandas são verdadeiros dispositivos por meio dos quais instalam-se representações, forjam-se diretrizes que orientam a criação simbólica da identidade. (GREGOLIN, 2007, p. 18)

Para instar os papéis que devem ser ocupados pelos sujeitos-espectadores no meio social, a mídia agencia sentidos que estão em funcionamento na contemporaneidade, que dão a dimensão de como se configura a subjetividade desses sujeitos. Assim, falamos da invenção de uma subjetividade pela relação dos sujeitos que apreendem o discurso das propagandas com o processo de construção identitária disposto nos veículos de comunicação. Diante disso, podemos entender que "(...) a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social." (GUATTARI apud CHNAIDERMAN, 1998, p. 49) Isto nos assegura pensar que os sentidos dados aos sujeitos-espectadores nas propagandas são sentidos constituídos na coletividade, sentidos que circulam por uma memória discursiva, "(...) que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pre-construido, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra." (ORLANDI, 1999, p. 31) Desta maneira, os efeitos de sentidos produzidos nas propagandas lidam com um saber discursivo coletivo e isto porque "o interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada." (Idem, Ibidem)
Portanto, as propagandas se significam na medida em que se movem em meio a sentidos já constituídos na sociedade. Por isso, podemos perceber que "a memória discursiva concerne ao que se inscreve na constituição do sujeito e, assim, sustenta o (in)dizível desse sujeito, pois onde se produzir memória produz-se linguagem: uma forma de o sujeito se dizer e dizer o mundo." (STÜBE NETTO, 2007, p. 133) No entanto, observamos que os sujeitos-espectadores se significam a partir do que lhes é identificado como pertencente a sua subjetividade, eles se dizem pela intervenção do Outro constituído pelas propagandas. Assim, é na memória discursiva que se constitui os sujeitos e na qual eles se relacionam com o real: "aquilo que se inscreve no corpo, a partir da intervenção do Outro, e que permite que o sujeito ?saiba? quem ele é, reconheça-se, identifique-se com seu nome próprio e seja capaz de dizer: ?este sou eu?, sem precisar presentificar-se, certificando-se de si mesmo diante de sua imagem especular" (KEHL apud STÜBE NETTO, 2007, p. 133)
Segundo Chnaiderman (1998, p. 54), "é o olhar de um outro que permite a constituição de uma imagem unitária. Surge um eu sempre mediado pela relação com um outro. O sujeito se vê como é visto por seus semelhantes." O que nos faz perceber que

para que ocorra o reconhecimento do eu com a imagem é preciso que ele esteja imerso em uma estrutura simbólica. A linguagem é condição sine qua non de constituição do sujeito. A regulação da estruturação imaginária efetua-se através do registro simbólico. É no espaço do Outro que se situa o ponto de onde o sujeito se olha. (Idem, p. 55)


Diante destes apontamentos, parece evidente falarmos da constituição de identidades quando "vislumbramos os processos identificatórios na heterogeneidade, no esfacelamento, na dispersão das múltiplas vozes e dos múltiplos sentidos, no reconhecimento da alteridade, no Outro como lugar da significação." (COSTA apud STÜBE NETTO, 2007, 132)
Se por via da interação com o Outro é que os sujeitos podem constituir sua identidade, há de se considerar também que o processo de subjetivação realizado por esses sujeitos para definirem sua identidade é mediado por um imaginário. Desta forma, podemos entender que "(...) a identidade é ilusória e só existe como construção imaginária." (CORACINI apud STÜBE NETTO, 2007, p. 132) Sendo assim, os processos identitários se constituem por meio de representações, o que implica dizermos que os sujeitos-espectadores vêem sua identidade a partir de um complexo jogo de antecipação no discurso produzido pela mídia, pois sua identificação estará mediada pelos dizeres do Outro constituído nos discursos das propagandas e consequentemente pela representação que esses sujeitos fazem da representação que esses discursos fazem deles. Podemos pensar assim que há um jogo intricado de formações imaginárias em funcionamento, tendo em vista que "esse mecanismo produz imagens dos sujeitos (...)" (ORLANDI, 1999, p. 40), e condiciona o modo como estes últimos se representam. De todo modo, "(...) as identidades resultam desses processos de identificação, em que o imaginário tem sua eficácia." (Idem, p. 41)
Para perceberem-se enquanto possuidores de uma identidade os sujeitos-espectadores são atravessados por múltiplas vozes que se caracterizam "pela dispersão, pela heterogeneidade, inteiramente vinculada ao momento histórico-social e ideológico, [que] atravessam, de forma conflituosa e dissonante, a constituição identitária." (CORACINI apud STÜBE NETTO, 2007, p. 132) Isto nos leva a compreender que não há como dissociarmos a produção subjetiva de identidades pelos discursos das propagandas de uma intersecção ideológica realizada dentro deles. Deste modo, os sentidos sobre a identidade no discurso midiático constituem-se num nível renovado de instabilidade, em que a produção de modelos de representação identitária para os sujeito-espectadores dá-se na forma como esses modelos criam sujeitos-espectadores/consumidores ideais. Isto quer dizer que as identidades são criadas na medida em que a mídia demanda padrões de representação identitária que lhe sirvam para efetivar o câmbio entre o produto anunciado e seu consumo.
Entendemos, então, que a ideologia tem como característica "(...) dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento, produzindo um tecido de evidencias "subjetivas", entendendo-se "subjetivas" não como "que afetam o sujeito" mas, mais fortemente, como "nas quais se constitui o sujeito". (ORLANDI, 1999, p. 46) Assim, pensamos que o discurso midiático institui sempre novos modos de ressignificar os sujeitos-espectadores, construindo, destruindo e resconstruindo suas identidades. Na verdade, "há uma permanente tensão entre "a produção de kits de subjetividade" e "a criação de singularidades". O mal-estar contemporâneo vem dessa tensão entre uma "desestabilização acelerada" e a "persistência da referência identitária". (GREGOLIN, 2007, p. 21) E ainda mais, "a mídia leva essa operação a seu nível exponencial, fornecendo verdadeiras próteses de identidade, "identidades prêt-à-porter". (Idem, Ibidem) Produzem-se, deste modo, no discurso midiático enunciados que fazem circular sentidos de matizes diversos e essa "circulação incessante desses enunciados leva os sujeitos a viverem uma tensão constante entre as oportunidades infinitas de singularização e a insistência poderosa nos modelos identitários (subjetividades-clone)." (Idem, Ibidem)
Ao nos focarmos na propaganda que tomamos como objeto de análise, podemos observar estes mesmos movimentos que configuram a construção subjetiva da identidade dos sujeitos-espectadores. Observamos, pois, que a propaganda que oferece relacionamentos afetivos pela utilização dos serviços de uma empresa que intermedia a interação dos participantes requer que os sujeitos se movam em meio a sentidos sobre sua subjetividade, sobre sua identidade na contemporaneidade, para que assim possa instituir-lhes uma representação conveniente a seus propósitos de consumo. O que se apresenta, na verdade, é o agenciamento dos sentidos de identidade por parte da propaganda a partir de uma ideologia capitalista, pois a mídia é lugar privilegiado da constituição subjetiva de identidades bem como da ressignificação da ideologia do consumo.
Contudo, compreendemos que "a significação é um movimento, assim como a identidade é um movimento." (ORLANDI, 1995, p. 38) Sendo assim, é por meio deste funcionamento da significação e da identidade que a propaganda pode agenciar sentidos que promovam a representação identitária dos sujeitos-espectadores, é pela movência de sujeitos, sentidos e identidades, evidentemente em relação à produção de um imaginário constitutivo de formações imaginárias imbricadas pela intervenção de um jogo antecipatório.









REFERÊNCIAS


CHNAIDERMAN, Mirian. Língua(s)-linguagem(ns)-identidade(s)-movimento(s): uma abordagem psicanalítica. In: SIGNORINI, Inês (org). Língua(gem) e identidade. Campinas, SP: Mercado da Letras, 1998

GREGOLIN, M. R. Análise do discurso e mídia: a (re)produção de identidades. Revista : Comunicação , mídia e consumo. São Paulo vol. 4 n. 11 p. 11 - 25 n o v. 2007

LAGAZZI, Suzi. O recorte significante na memória. Coletânea: O Discurso na Contemporaneidade: materialidades e fronteiras, Claraluz, 2009.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999

____________. Efeitos do verbal sobre o não ? verbal. Revista: Rua, Campinas, 1:35-47, 1995

STÜBE NETTO, A. D. Sujeito e linguagem: (des)construindo identidades. Revista da ABRALIN, v. 6, n. 1, p. 129-146, jan./jun. 2007