(por Lucia Czer)

Decididamente, senti que hoje não era "o dia"! Tiro dos olhos a venda de cetim preto com gel relaxante e já vislumbro a claridade de um novo dia de sol. Já faz calor, e no fundo do pensamento me pergunto: "-Cadê o friozinho do sul? Geada? Cerração? Diabos! Como esse povo pode viver sem frio, sem necessidade de cobertor felpudo, edredon macio e gostoso? Mantas de lá do Uruguai? Que há de mal num pijama de pelúcia?"

Nada resta fazer a não ser levantar já com o som estridente do toque do celular. Levo a perna em direção ao solo procurando a chinelinha, mas a mão grande e morena me retém: "-Mor?" E a mão desliza pela minha coxa procurando o recanto mais escondido. Quase me escapa um intempestivo: "-Usa os cinco, oras!" Mas iniciar uma discussão agora vai me atrasar mais. Cedo e me volto pra ele...

Miúda, dou passos rápidos e curtos pelo corredor, Cheila mal consegue me acompanhar: "-Olha, chegou mais material pra você revisar..." Nem respondo, quero chegar logo à minha sala. Já lá me aguarda uma jovem com seu trabalho de conclusão de curso. Faz uma semana que discutimos juntas o desenvolvimento do artigo. Ela masca chiclete sem parar, cheira à desodorante e sacode sem parar o pé esquerdo, com as pernas cruzadas e o dorso inclinado para frente. Não nos entendemos, mas é preciso terminar logo essa revisão. Fico me perguntando como chegam semi-analfabetos ao curso superior! É do tipo que se você perguntar sobre o Vale do Paraíba, ela vai dizer: "-Que mal tem? Se existe vale pra estudante, idosos e deficientes, por que não dar vale pro paraíba?" Rsrsrsrs...

Já são quase doze horas e toca o celular com sinal de sirene de polícia. É Edu... "-Mor? Mooor... você não esqueça de que tem que abastecer, no cruzamento da avenida X tem um posto que tá vendendo a 10 centavos menos... Moor???"

- Ãhãh! Sei...

- Cris não veio e vou ter de pegar duas turmas pra substituir... Você ta bem?

- Hum, hum, sim, tudo bem. Pode deixar, eu abasteço, ok? Beijo!

Baixo a guarda, amoleço, essa voz arrastada e cantante tem esse poder sobre mim.

Droga, dez centavos... Mas pra Edu é fundamental. Sempre sem pressa... Bem capaz que eu vá sair do trajeto em busca do posto de gasolina por causa de dez centavos! É almoçar e retornar pra artigos, monografias, pesquisas e alunos.

Chego ao pátio e o porteiro uniformizado vem de mansinho como de costume... "- Doutora, já vai, quer deixar algum recado?"

Sei bem o que ele quer, "doutora" a p.q.p... Mexo no fundo da bolsa pra pegar as moedas soltas que coloco na mão dele e sorrio forçada.

Merda! O que faz a civilização! Por que não posso ter um dia de Amy Winehouse? A educação e cultura herdadas não permitem, assim como a pose elegante e cuidada, a roupa de corte aprimorado, os sapatos caros, a bolsa que paguei em oito vezes no Visa... Entro no carro e procuro um cd... Evanescense! Droga. Edu deixou os cds dele aqui. Onde estão os meus?

Ajusto no rosto os Dior e arranco de mau humor com o carro fazendo a curva em direção à saída.

..................................................................................

Com o garfo, mexo na salada sem vontade de comer. Usualmente, almoço aqui por ter grelhados gostosos e muitas vezes, Edu vem me encontrar aqui pra podermos ficar juntos por um tempo durante o dia. Depois de comer saímos de mãos dadas a caminhar sob as árvores. Aqui ninguém repara no jovem grandalhão, moreno, de mãos dadas com a "coroa" baixinha e loura. Esta é uma das qualidades desse povo que aprendi a valorizar. Na minha terra, todos estão sempre com os olhos voltados pra tudo que é diferente ou que contrarie os padrões.

De repente sou surpreendida pela voz de Elis Regina. Ah, como me faz bem! Desanuvio e penso no que tem sido o dia desde o amanhecer. Elis canta "O bêbado e o equilibrista".

Realmente, a nossa vida resume-se nisso: Equilibrar-se sobre uma corda suspensa! São os deveres, os compromissos que assumimos, as pessoas que cativamos...

Estou mais leve, meto a mão na bolsa procurando o celular.

- Edu?

- Sim, mor. Aconteceu alguma coisa? Você abasteceu?

- Edu, sim, abasteci, estou bem, não aconteceu nada, ou melhor, aconteceu, sim: Descobri que sou feliz porque te tenho. Te amo, mor!