1

Colaço, o operador da máquina impressora desliga-a e calmo, dirige-se ao banheiro logo adiante, onde tomará o banho e trocará o macacão pela roupa com a qual chegou pela manhã. Em seguida, baterá o cartão e retornará a casa. Move-se pensativo. Ao lado, outros trabalhadores também cuidam de se trocar, para largarem.

Fora, a noite recém-nascida, agasalha as cessões conjugadas, o muro que limita os domínios da fábrica com a avenida, com veículos e pedestres cruzando-a. Saber que todos daqui entrarão de férias coletivas, que a situação da indústria não está bem, que...

- Melhor nem pensar.

Resume-se, em vez baixinha. Mas, como não pensar, se...

- Colaço!

Pára e se voltando reconhece o outro impressor, o negro Damião, que se avizinha.

- O boato por aí é de que com as férias coletivas, a gente vai ficar desempregada. Que é que você acha, colega?

Colaço então lhe é franco, realista:

- Também fico receoso. Tava até meditando sobre isso. O negócio anda feio, segundo o próprio Seu Giba, o chefe da produção.

- Pois é...

Silenciam e lado a lado devagar se encaminham ao banheiro, entregues às reflexões angustiantes, no temor à realidade, amarga realidade. E a sirene apita, anunciando o próximo turno, como se tudo corresse normalmente.

Adentram no banheiro, onde operários tomam banho e se vestem sem se fitarem,  entregues ao mesmo silêncio.

A sirene prossegue o seu grito estridente, mais do que nunca irritante e prolongado.

 

2

O portão largo é aberto e o automóvel cinza passa, ganhando a avenida defronte.

O vigilante então fica vendo-o se distanciar e se perder ao subir e descer a inclinação adiante da avenida. O carro do doutor João, um dos acionistas da empresa.  Um homem rico, cheio de prepotência. Mas se a firma fechar... A arrogância dele persistirá?

- Acho difícil.

O outro vigilante se avizinha:

- Como é vai ficar aí falando sozinho?

José desperta das reflexões e, irritado responde:

- Preto se fecha, porra!

Esse cai na risada, satisfeito em ter provocado a resposta do colega.

O portão é fechado e, apressados os dois retornam à portaria, onde se entregam à função de acompanhar a saída e entrada dos funcionários que chegam para o novo turno.

- Bate o cartão devagar!

Reclama José e, Preto, sorrindo:

- Esse pessoal não aprende. Terminam quebrando o relógio.

Homens e mulheres em silêncio passam, ganhando a avenida e encaminhando-se às seções nas quais exercem suas funções e, de repente, os dois guardas se vêm sozinhos e ficam ouvindo o som dos pneus e das buzinas dos veículos que transitam lá fora, no movimento normal de mais uma noite. Até quando ainda escutarão esse som?

- José tás com medo de perder o emprego? Com a “onda” dessas férias é um mau-sinal...

O vigilante não responde. O Preto quer irritá-lo. Provoca-o. Conhece bem o colega.

- Perdesse a língua?

Então se mais se conter, José explode, gritando:

- Te lasca, porra!

Outra risada e silenciam.

Do salão grande, o coração da fábrica, vem a zoada ritmada das máquinas que começam a funcionar.

- Boa noite.

- Boa noite, Seu Colaço. Largou agora?

Este repõe o cartão no quadro e cruzando a seção, enfrenta a noite de fora.

Cabisbaixo, José escreve no bloquinho sobre o birô: Seu Colaço, Seu Colaço, Seu Colaço... Tá na “lista negra” dos demitidos.

Curioso Preto se avizinha e, José, erguendo o rosto:

- Que é o que você quer?

- Nada, nada não irmão.

O sorriso de dentes perfeitos no rosto gordo, lustroso, mais negro com o suor.

José fecha o bloquinho e desvia o rosto de lado, fugindo,  enquanto Preto se afasta, retornando à cadeira vizinha ao relógio.

- Esse José...

 

3

Com a nova mudança na economia do país, tudo se modificou e com a inflação subindo, as conseqüências surgem e...

- As indústrias fecham.

Diz doutor João, dando voz ao que pensa. As demissões infelizmente, ocorrerão após as férias coletivas, já anunciadas. Depois... Sempre há um depois. A esperança. A fé do otimismo.

- É, vamos ver.

Dirige.   O movimento dos carros, motos e pedestres, aos poucos, diminui, para na próxima noite, mais uma vez retornar, como sempre. Tudo obedecendo a uma ordem, sob o comando de uma Grande Força!

Ali está a residência. Murada. Dois andares. A varanda larga. As cadeiras em volta do centro, com o jarro, de flores artificiais. E, na cadeira de balanço próxima, a Marly, sua esposa, esperando-o, como nas vezes das noites anteriores.

Diminui a marcha, aproximando-se. Então o rosto pálido da mulher magra se volta, reconhecendo  o carro e sorri, apaziguando o coração aflito, pois só sossega quando vê o João chegar!

O portão é aberto e o automóvel cinza adentra. Macio. Importado. Último modelo. A porta se abre e o homem salta. Devagar. Cabisbaixo. Entregue ao seu mundo de preocupações ante a incerteza dos próximos dias.

 

4

Por que Colaço está com a mania de falar do passado? Com os demais idosos isso também ocorre? Fecha os olhos, fingindo cochilar, e ouve o desabafo (tão repetitivo!).

- Pois é, Maria. Naquele tempo, a fábrica deu as férias coletivas e depois demitiu os operários. Está me ouvindo? Mas, você bem sabe disso, do quanto a gente passou. Fiquei desempregado, você grávida do Júnior... o doutor João (a arrogância personalizada), dizem que foi descansar e morreu dormindo... Coração! O Preto, você se lembra, aquele que também era vigilante, meu colega? Comentam também que ao perder o emprego, não tardou e  entrou no mundo das drogas e terminou por ser executado, num ajuste de contas entre eles traficantes!

De repente silencia e fita o rosto pálido da mulher caído sobre o busto magro, de seios batidos, os braços secos, as pernas inchadas... Então com os olhos embaçados se ergue devagarzinho para não se desnudar no que sente, e  arrastando os pés, no andar da velhice, retira-se do terraço. Ah, o que é a vida! Saber que viveu aquela época, sofreu, conheceu o lado  cruel da realidade... Mas, tudo passa.

Na cozinha, abrindo o refrigerador, retira   a garrafa d’água e despejando o líquido no copo, toma-o.

No terraço a mulher abre os olhos e liberta das recordações (tão conhecidas!) sorri. Coitado do José: preso ao passado, ao mundo dos mortos...