Antonio Barbosa Lúcio

A estrutura agrária brasileira, viciada em favorecimentos estatais, permanece intacta após anos de acirrada luta. No período colonial, houve extensa legislação voltada para a proteção latifundiária. Se naquele período, a terra era um ingrediente a mais, para estabelecer o poder dos grandes proprietários de escravos, visando a produção agroexportadora, a partir do início do Brasil Império, com a ascensão da burguesia, da lógica liberal de conceber a sociedade e, da supremacia do capital sobre o trabalho, a terra passa a ser considerada, no Brasil, uma necessidade para manter a estrutura de dominação vigente. Assim, a Constituição de 1824, passa a estabelecer a propriedade privada como uma necessidade do Império. Mais que isso, uma necessidade dos proprietários sobre os trabalhadores. Mantém-se intacto o sistema de propriedade, inclusive, o de seres humanos. Ao mesmo tempo, favorece a manutenção do processo de dominação do capital estrangeiro, primeiro sob o domínio imperialista da Inglaterra e, paulatinamente, dos Estados Unidos.

Nesse meio termo, os movimentos sociais, especialmente aqueles que faziam parte dos interesses populares, como algumas revoltas regenciais, ou as do segundo império, vão sendo continuamente destruídas sob a lógica do poder oligárquico. Este, não exitava que assassinar quem se colocasse contrário aos seus interesses. Estabeleceu a forma que até hoje prevalece na estrutura agrária brasileira, através da Lei de Terras de 1850, deixava claro o poder de compra como a forma de propriedade e que o Estado brasileiro deveria defendê-lo. Ao contrário, a tal política excludente, especialmente, para a população empobrecida e escravizada, o Estado se apresentava com toda a sua força utilizando o poder repressivo, através de seu exército e a sua capacidade de condenar aqueles que não coadunavam com a forma de exclusão que ora se apresentava. O certo foi que a maioria da população não pode ter acesso ao principal bem de produção da época, tendo em vista que o Estado regularizava a apropriação indevida de grandes quantidades de terras, entregues especialmente aos amigos do poder.


Assim, diversos movimentos sociais, geralmente de caráter espontâneo, surgiram como forma de contestação dos interesses das forças opressoras. A exemplo de Canudos, todos foram dizimados com extrema crueldade. Não estava em jogo apenas a propriedade de terra, mas a ousadia de pequenos camponeses pobres contestar os interesses da elite econômica. Esta tratou de passar para as gerações futuras, a concepção de que essas pessoas em visionárias, messiânicas, fanáticas, loucas. Buscou-se apagar das mentes das futuras gerações qualquer menção ao camponês que luta pela terra, como seres demandantes de direitos. O Estado de orientação positivista, apenas percebia a sociedade como um corpo orgânico, tendo as elites como encabeçando o processo social, como dirigentes máximos da nova sociedade que se pretendia fazer surgir. Ideologicamente, promove-se o enfraquecimento da população, o afastamento das escolas, a manutenção e distanciamento do acesso a terra e a direitos. A legislação que passou a ser preparada deveria representar os interesses desses agrupamentos privilegiados, supostamente superiores. Aproveitava-se das incipientes condições de aprofundamento teórico proporcionado a população, para acirrar divergências, impulsionar o clientelismo e, favorecer, o assistencialismo entre a população carente de tudo.

A lógica de desenvolvimento social impetrada pelas elites brasileiras necessitava ser aquela aonde não houve reivindicações, lutas, revoltas, revoluções. As elites, geralmente religiosas, também defendiam a cultura da paz, desde que esta estivesse sob a forma de aceitação da condição de miserabilidade "permitida" por Deus aos pobres pecadores. Estes deveriam conhecer e reconhecer seu lugar na estrutura da sociedade. Não como vencidos, mas como pessoas que não tiveram a sorte de galgar postos mais elevados na sociedade.


Como a essa situação não pode ser constantemente reeditada, tendo em vista que revoltas “pipocavam” contra as formas de dominação oligárquica surgiam por todo país, a exemplo, revolta da chibata (1910), Revolta da Vacina (1904), Contestado (1912 a 1916), do Cangaço, a Sedição de Juazeiro (1913). A reação das elites não demorou a surgir quer através da cooptação de suas lideranças, assassinatos em massa ou aproveitando-se, por vezes, do espontaneísmo desses movimentos para minar suas forças. O certo foi que não houve perdão. Ninguém poderia ousar em confrontar os grupos dominantes e ainda continuar vivo.

A legislação brasileira se aperfeiçoa e, mais uma vez, no Período Vargas, trata-se de envolver os movimentos sociais sob a tutela do Estado. Engessam-se esses movimentos, legalizando-os e excluindo-os do processo de luta social. A propaganda oficial, utilizada por importantes meios de comunicação da época, como o rádio e os púlpitos das Igrejas, clamavam a busca pela paz, em uma época de prosperidade. Mesmo assim, a partir da década de 1940, movimentos de posseiros no sudoeste do país e Ligas camponesas no Nordeste, apontavam que a tão esperada paz, teria sido realizada com o sangue e suor de milhares de camponeses. Publicizavam as condições de vida e de trabalho de milhares de camponeses empobrecidos, forçados ao assalariamento, expulsos de suas terras, sem rumo destinando-se ao mundo desconhecido das cidades. A esses movimentos juntaram-se outros. Sob a lógica desenvolvimentista impetrada a partir da década de 1950, de feição industrial, ao forçar a população ao assalariamento nas indústrias criavam outras formas de dominação e de exclusão social. Mantinham-se milhares de ex-camponeses em favelas nos arredores dos setores industriais, arregimentavam-se milhares de trabalhadores nordestinos para as grandes cidades, especialmente São Paulo, voltando-os para a construção civil. Destino de milhares de pessoas, quase todas analfabetas e sem perspectivas em sua região de origem. Os novos movimentos sociais urbanos buscavam, também, moradias, educação, saúde. Os movimentos rurais estavam centrados na reforma agrária, recursos financeiros, condições mínimas de sobrevivência no campo.


As elites agrárias e urbanas trataram de conter as lutas populares. Primeiro, tomando o poder sob a forma de Ditadura Militar. Utilizavam, novamente, a lógica do poder a qualquer custo, não exitaram em assassinar e torturar. Ao mesmo tempo, ampliam a escola de massa visando, sob sua lógica, manter a população empobrecida distante da possibilidade de atingir o chamado “topo da pirâmide”. A massificação do ensino, antes um reivindicação dos movimentos sociais em geral, passou a ser uma bandeira dos economicamente privilegiados, transformando as escolas, em locais excepcionais de contentamento social. Não foi propiciada a qualidade de ensino e, os cursos de técnicas para o trabalho afastavam grande parte da população do acesso a Universidade.


A lógica dual de escola deixava claro quem poderia ser dirigente e quem seria o dominado. Milhares de camponeses são jogados em escolas urbanas, de orientação para a produção capitalista. Essa nova lógica estaria, tanto em manter os trabalhadores afastados da possibilidade de conhecimento, como voltados para a aceitação de suas condições. Visa-se, portanto, a não ampliação de movimentos sociais reivindicatórios, tendo em vista que grande parte das ditas conquistas sociais estariam sendo paulatinamente resolvidas. Mesmo assim, a estrutura de dominação que passou a ser organizada a partir do Brasil Colônia, não teria sido modificada. Percebe-se que sob os parâmetros do século XIX onde o Brasil possuía média de vida de cerca de 30 anos; no primeiro triênio do século XX cerca de 37 anos, e a partir da década de 1970 a partir de 60 anos, apesar de crescente não atingia a toda a população, ao mesmo tempo que demonstrava que viver ou morrer também depende da forma como a sociedade distribui as riquezas a sua população. Os parâmetros dos pais anteriores a década de 1970, passam nos atuais a redimensionamentos, não aceitando, em parte, que agrupamentos sociais privilegiados possuam condições acima da média em todos os períodos da História brasileira.


Os novos movimentos sociais, contidos com bastante força pelas elites dominantes, através de uma política ideologizante impregnada na escola, nos jornais, revistas, internet e televisão, demonstra apenas que essa elite possui condições de tentar perpetuar suas ideais como dominantes na sociedade, mas também, que essa mesma sociedade pode, a partir de formas alternativas suplantar o controle massivo impetrado sob a lógica da dominação.


Além disso, a elite não deixa de reutilizar as velhas formas de dominação. Mantém-se o poder de polícia sobre a população empobrecida; a manutenção do poder judiciário sob a lógica da perpetuação da Lei sobre os homens. Esquece-se que a Lei foi elaborada por seres sociais e sua interpretação depende, também, que estes aceitem a submissão como regra. Ou seja, para haver o Estado absoluto hobbesiano seria necessária a completa aceitabilidade por todos dos ditames ditos legais. Esquece-se, também, que a ideologia positivista de orientação organicista foi uma invenção das elites dominantes e, como toda percepção idealista, não parte da realidade, não pode ser perpetuada eternamente. Ao partir de uma falsa realidade e, ao tentar a todos convencer, as elites econômicas brasileiras não percebem ou não querem perceber a dialética existente na realidade social.

Montam um mundo imaginário, sem movimentos sociais; confrontos políticos entre as classes; contentamentos com escolas excludentes; postos de saúdes inexistentes; salários defasados e não condizentes com a manutenção da vida. Esse mundo ideal começa a ruir. O Estado passa a defender suas elites e, ao mesmo tempo, nutri a esperança que ninguém se posicione contrário. Desde Rousseau, com sua democracia elitista, essa situação não perdurou por muito tempo. O Brasil é exemplo disso! As várias tentativas de conter as populações, apenas serviram para manter hibernando por longos ou curtos períodos a necessidade de sobrepor os interesses dominantes. Não conseguiram calar definitivamente as diversas vozes que ressoam no intransigente mundo da exclusão social.

Se os brasileiros, em sua maioria, ainda não estão sabendo como acordar desse longo período de hibernação, as próprias elites, em sua ânsia para proteger o capital, destruindo a tudo e a todos, tende a favorecer mudanças. Mesmo com a utilização de políticas assistencialistas, revestidas como distribuição de rendas, passam a ser questionadas quando milhares percebem que os recursos públicos estão sendo, agora sim, distribuídos aos banqueiros, setores automobilísticos setor sucroalcooleiro, grandes latifundiários, etc.. Novas formas e velhas formas de confisco social são continuamente reeditadas. Parte da população atônica, ainda não sabe o que fazer. Alguns debandam para a criminalidade sem aquela visão do Banditismo Social dos séculos XIX e início do século XX, mas como uma forte reação ao poder desefreado dos grupos economicamente dominantes. Lamentamos os equívocos sociais, mais estes são engendrados pela própria lógica de exploração.

Entretanto, no Brasil agrário a esperança continua a persistir. Milhares de brasileiros, geralmente honestos, buscam reeditar velhas formas de superação da desigualdade. Passam a realizar tentativas de reforma agrária e, ao mesmo tempo, questionam a estrutura agrária brasileira. A elite dirigente e economicamente desenvolvida, teme não apenas a reforma agrária, pois, de certa forma, percebem que ela não pode ser contida. Temem, especialmente, a ampliação do processo de expansão as avessas, ou seja, que os brasileiros urbanos e rurais, passem a exigir o direito de viver dignamente com o resultado do seu trabalho, que se recusem a aceitar as migalhas assistencialistas. Temem que satisfeitas algumas necessidades, passem a exigir que as demais sejam concretizadas. Ficam preocupados que satisfeitas as necessidades de acesso a Universidade, por exemplo, queiram, também, o acesso aos bens que ela pode favorecer, especialmente como proporciona a alguns setores da sociedade.


O grande medo da elite econômica brasileira, não estaria em favorecer algumas condições de melhorias de vida. Já realizaram com o chamado Estado do Bem Estar Social. Mas perceberam que a população não pode ser enganada continuamente. Tentou modificar tudo, revogando direitos conquistados a força pelos trabalhadores. Apesar de constantes avanços nesse sentido, não consegue conter os movimentos sociais. No Brasil, sabe-se a força do povo, pois se localiza rodeado em um “barril de pólvora” chamado América hispânica. As cidades brasileiras possuem pequenos bolsões de riquezas, circulados por grandes bairros periféricos de estrema pobreza. As elites, apesar de constantes tentativas, não conseguem contê-los, tendo em vista que é de sua natureza o constante afunilamento das riquezas sob o poder de poucos e, o crescente poder numérico das classes menos privilegiadas. O poder numérico, pode se transformar em poder político. Eis o grande temor das elites diante os movimentos sociais!