*Gracinda Vieira Barros

Partindo da argumentação de Richard Morse em o Espelho de Próspero, em especial do capítulo intitulado "a sombra do porvir" é possível identificar alguns elementos comuns entre a dominação interna que Morse critica nos Estados Unidos e algumas novas posturas sociais dos ibero-americanos, em especial os brasileiros. Um dos exemplos dessas novas posturas é a difusão das redes sociais como Orkut.

Uma das hipóteses de Morse sobre a massificação e a dominação interna é que elas estão intimamente ligadas à trajetória do pensamento liberal e do utilitarismo na Anglo-América. No entanto, falar de liberalismo no Brasil é bastante complicado, devido às diversas formas que o liberalismo assumiu na América Latina, perdendo muitas vezes o caráter liberal de sua origem lockeana. Para isso foi considerado a mudança da economia nacional das últimas décadas onde o liberalismo passou ao título de neoliberalismo.

Acrescentando alguns fatos recentes do cenário cultural brasileiro, à argumentação de Morse, esse artigo propõe o "espelho de Calibã".

O Espelho de Próspero

O Espelho de Próspero é um livro profundamente analítico, onde Richard Morse apresenta uma visão original e complexa da colonização americana, baseando nossa história numa intricada matriz européia de fins da Idade Média.

Ao enxergar na Europa nossa matriz e considerar que dentro dessa matriz foram feitas escolhas e foram construídos modelos conceituais, que viriam constituir os diferentes padrões das civilizações ocidentais, contrapondo o a modernidade nos padrões Ingleses e a singular modernidade ibérica, Morse reelabora o panorama da colonização americana desde a raiz até seus frutos atuais.

O livro é dividido em três partes: pré-história, história e sombra do porvir. Para Morse, a pré-história das Américas na Europa vai do século XII ao século XVI, período de muitas transformações na estrutura das sociedades como a urbanização, ascensão da burguesia, diversificação religiosa, desenvolvimento capitalista, expansão ultramarina e cientifização da visão do homem pro universo.

Frente a Revolução Religiosa e Científica, a Ibéria, que trazia desde a Idade Média uma tradição cultural bastante rica e sólida, assume uma postura cautelosa de renovação parcial atrelada ao compromisso religioso do Tomismo. Buscando uma maneira de acomodar diversos povos e culturas numa ordem moral universal. Ao passo que a Inglaterra, sem o amparo de uma tradição sólida, num momento modernizante, assolada pela violência civil e cisma ideológico, teve de reconstruir a ordem nacional. "Comprando o pacote moderno" [1], a Inglaterra em sua posição occamista, busca no liberalismo apoiado nas teorias de Hobbes e Locke uma nova forma organizacional pra um mundo limitado e homogêneo.

No que se refere a nossa história, Morse mostra a difícil adaptação da Ibero-América a democracia e ao liberalismo após os processos de independência, devido à tradição universalista e heterogênea na qual estávamos inseridos.

O resultado dessas opções segundo Morse, é apresentado na terceira parte do livro, onde ele contrapõe as sociedades norte-americanas com a América Ibérica. Mostrando que o utilitarismo e o liberalismo na Anglo-América, associados a uma cultura protestante, produziu uma sociedade massificada que sofre de uma "dominação interna", sem a opressão de um ditador ou do Estado, mas uma dominação que se baseia numa ilusão de liberdade inexistente e tende a compactar o individualismo em padrões e modelos pré-estipulados. Enquanto a Ibero-América, apesar de todos os seus problemas com a democracia e o liberalismo, em sua postura herdeira do tomismo católico, tornou-se mais livre, no sentido de uma população heterogênea e mais receptiva a englobar diferentes culturas. Além disso, segundo a metáfora do próprio Morse, se nosso sistema político é um teatro, os ibero-americanos sabem exatamente qual o seu papel na tragédia, enquanto os anglo-americanos não sabem aonde termina o palco.

Nas palavras de Antônio Candido, em sua apresentação do O Espelho de Próspero "Os dois mundos se defrontam numa perspectiva construída segundo a melhor filosofia da história, animada por um espírito sagaz de estudioso sem preconceito, excepcionalmente bem equipado, provido de uma confortadora naturalidade expositiva"[2].

O Orkut[3] e as "redes sociais" como instrumentos da massificação

Richard Morse não chegou a acompanhar o desenvolvimento das redes sociais, mas chegou a estudá-las em detalhes num movimento "flash-foward" [4] no Espelho de Próspero. Usando a expressão "anúncios de mim mesmo" de Norman Mailer[5], Morse discorre sobre a dominação entrópica engendrada pelo liberalismo e a perda da individualidade alcançada pela cultura de massas.

As redes sociais têm sido parte da rotina de milhões de pessoas pelo mundo com objetivos comuns de manter e criar novos relacionamentos. Temos assistido na América Latina e principalmente no Brasil[6], a popularização dessas redes através do exemplo do Orkut. "Ter um Orkut" já faz parte do senso comum brasileiro, apesar de ser originalmente uma criação norte-americana, e ultrapassa as barreiras das diferenças sócio-econômicas. Católicos, evangélicos, estudantes universitários e secundaristas, donas de casa, moradores do sudeste e da floresta amazônica, onde existe internet ele existe: todos nós temos Orkut e definimos nossas relações na página de administração de amigos. Nós, os usuários, registramos informações básicas de acesso até nossas preferências gastronômicas.

Não é o objetivo dessa argumentação questionar o Orkut enquanto eficiente meio de comunicação, e sim atentar para detalhes mais sutis que possam passar despercebidos pelos usuários. Detalhes que podem restringir nossa individualidade e nos compactar como parte de um sistema de dominação interna, baseado na ilusão de nossa individualidade.

Cada usuário no Orkut tem um perfil próprio que é dividido em três partes: o perfil social, profissional e pessoal. Neles encontramos características como gostos, livros preferidos, músicas, programas de TV, filmes, informações físicas, o tipo de pessoa que o usuário gostaria de se relacionar, o grau de instrução, atividades profissionais e por aí vai. Além disso, o grupo de amigos pode chegar a mil pessoas, podendo ser classificados como desconhecido, conhecido, amigo, bom amigo e melhor amigo na página de administração de amigos ou na hora de adicionar os amigos.

Tratando a nós mesmos como mercadorias que precisam de uma descrição detalhada e afirmação de qualidade, seja ela afirmada atraves da aparência física ou intelectual, e mantendo números inimágináveis de supostas amizades, nos definimos enquanto membros de um grupo, uma cominidade e afirmamamos nossa homogenea singularidade. Nas palavras de Morse:

"Esse moderno habitante das cidades que se relaciona com outros sem entregar nada de si já é virtualmente um nazista, repleto ao mesmo tempo de entusiasmo e violencia [...] A antiga argamassa que unia as pessoas é substituída por meras forças que a comprimem"

Segundo Morse, a massificação é resultado de incontáveis reversões na trajetória do liberalismo:

"O liberalismo eliminou as concepções metasfísicas da personalidade individual, e ao submete-la a definição racional do interesse privado, assegurou-lhe uma harmonia unânime com as autodefinições dos outros [...] o novo indivíduo racional converteu-se num ego encolhido, cativo de umpresente evanescente, que esqueceu o uso das funçoes intelectuais outrora capazes de faze-lo transcender sua posição efetiva na realidade, essas funções ele delegou as grandes forças economicas e sociais de sua época."

Nesse modelo de sociedade, segundo Morse, a indústria cultural trabalha na missão de glorificar o mundo tal qual ele é e insiste na adaptação e desistencia de reclamações. A vida passa a ser uma série de problemas a serem resolvidos com um manual de como resove-los em anexo, sendo assim, o indivíduo perde a capacidade da experiencia individual e tenta a qualquer custo se encaixar e ser visto como membro de um grupo ou de uma comunidade. Seguindo modelos de comportamento e padrões de pensamento que são vendios nos supermercados.

Essa falsa individualidade é rica em estilos de vida e afirmações de personalidade, mas ela reflete acima de tudo a solidão do indivíduo que se anuncia como a um pruduto em troca de aceitação e pseudo-compahias, em troca de ser membro dessa ou daquela comunidade. A solidão frente a um mundo fragmentado pelo liberalismo, que perdeu em algum momento de sua história, a visão da sociedade como um corpo orgânico, ou como um cosmo complexo onde todos se interligassem. Para Morse, a "catarse" do individuo consiste em sua aceitação como membro de um grupo.

O mais interessante dessa argumentação, é que Richard Morse a desenvolveu pensando nos rumos da sociedade norte americana frente ao liberalismo e não da América Ibérica. No entanto é bastante plausível pensar em sua aplicação ao momento atual da sociedade brasileira, lembrando que Morse não chegou a acompanhar o coroamento do neoliberalismo no Brasil.

Brazilian Takeover: O reflexo de Próspero no Brasil

Como já mencionado, apesar de ter sido desenvolvido nos Estados Unidos, o Orkut hoje possui maioria esmagadora de brasileiros. Fazendo inclusive com que muitos estrangeiros abandonem ao sistema alegando que os brasileiros postam em português nas comunidades de língua inglesa, além da multiplicação das comunidades brasileiras, que dificulta a navegação dos estrangeiros na opção "comunidades", pois em qualquer categoria existem páginas e mais páginas de comunidades brasileiras. Esse fato foi notificado pela imprensa estrangeira e gerou também um tópico na Wikipédia inglesa intitulado: Brazilian Takeover.

No Espelho de Próspero, Morse defende que a adaptação ibero-americana ao capitalismo, a democracia e ao liberalismo foram bastante problemáticas, visto que a nossas raízes da cultura política Ibérica não eram compatíveis com a cultura capitalista desenvolvida pela Inglaterra e posteriormente alastrada pelos Estados Unidos.

Para entender o fenômeno da dominação interna e da massificação engendradas pelo liberalismo, é necessário achar o momento onde esse liberalismo se tornou o eixo de nossa cultura política.

É possível encontrar no final dos anos oitenta e início dos anos noventa do século XX, acontecimentos que prepararam o caminho do liberalismo no Brasil. Nesse período, o chamado socialismo real entrou em colapso. Abandonando o prognóstico das correntes socialistas e dividindo a esquerda do mundo inteiro. Após décadas de uma difícil adaptação, o liberalismo voltou à cena política, intitulado de neoliberalismo. Com fortes influencias como Margareth Tatcher[7], na Inglaterra e Ronald Reagan[8] nos Estados unidos, gradativamente o liberalismo, alcançou hegemonia na maioria das nações do planeta.

No Brasil assistimos a uma mudança extremamente rápida nos últimos anos, principalmente durante a década de noventa. Algumas particularidades políticas e econômicas possibilitaram essa mudança. Nosso País enfrentou, ao longo das últimas décadas, um fortíssimo processo inflacionário, que deixou ainda mais absurdo nosso quadro de miséria e concentração de renda. Segundo cálculos da Fundação Getúlio Vargas, a inflação no Brasil nos últimos 30 anos atingiu a 1142332741811850% (1.1 quatrilhão por cento).

Esse é um momento chave para o surgimento do neoliberalismo no Brasil. Frente a uma inflação dramática e crescente, e constante desvalorização da moeda, há a implementação do Plano Real, que reduz a inflação a níveis baixíssimos e reduzindo o imposto inflacionário.

Segundo José Prata Araújo, o apoio popular que os neoliberais conseguiram após a estabilização da economia, serviu como uma ancora para várias reformas (econômica, administrativa, previdenciária, trabalhista e outras) que mudam completamente os rumos da economia no Brasil.

A forte pressão internacional das grandes nações capitalistas, acompanhadas das crises financeiras e inflacionárias que ocorreram em quase todos os países da Ibero-América, fizeram com que o liberalismo ganhasse força ainda que não fosse um traço natural de nossa cultura política. Esse é um traço bastante comum aos países chamados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento: nossa "vocação" não era o liberalismo. Muito menos uma sociedade caracterizada pela perda da individualidade e massificação, mesmo assim, estamos a cada dia mais próximos dessa sociedade.

O Espelho de Calibã

Apesar dos muitos estudos recentes sobre o neoliberalismo nos países "latino-americanos" continuamos carentes de uma compreensão à la Morse que leve em consideração o embate entre nossa cultura ibérica e nossas incessantes investidas no neoliberalismo. Miramos nossos esforços no modelo de Próspero, adaptamos nossa economia e nossa cultura de acordo com esse modelo. Somos Calibãs orgulhosos de estarmos a cada dia mais próximos desse modelo, sem nos darmos conta da nossa diversidade histórica e da complexidade de nossas raízes ibéricas.

A crise do individualismo ibero-americano, ilustrada nesse artigo pela difusão das redes sociais, pode refletir nossa preocupação aguda em nos adaptarmos ao modelo liberal de Próspero, ainda que para isso, seja necessário perder nossa heterogeneidade e fazer parte de uma massa uniforme que sofre de amnésia histórica e permite satisfeita a dominação interna.

A proposta de Morse ao escrever o Espelho de Próspero era a de que o Próspero (Estados Unidos) olhasse para o Calibã (Ibero-América) com uma nova postura, retomando diálogos e se re-conhecendo através de nossos paralelos históricos.

Entretanto, a Ibero-América parece carecer tanto quanto os Estados Unidos dessa visão lúcida sobre nossa história e nosso passado europeu. Os ibero-americanos, ainda vinculados ao determinismo histórico que opõe o sucesso do modelo capitalista do noroeste europeu ao "atraso" da Ibéria, necessitam conhecer sua história e identificá-la com uma escolha política diferente da escolha política inglesa, mas não por isso, atrasada ou pior. Para Morse, a América Latina tem algo a mostrar não só aos Estados Unidos, mas ao mundo. Algo singular em nossa multiplicidade cultural e nossa absorção de diversas culturas ricas e diferentes.

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, José Prata. Manual dos Direitos Sociais da População; as reformas constitucionais e o impacto nas políticas sociais. Belo Horizonte/MG: Editora e Gráfica O Lutador, 1998.

MORSE, Richard. O Espelho de Próspero: Cultura e idéias nas Américas. Companhia das Letras, São Paulo: 1988.

_______________ A volta de McLunhaíma: Cinco estudos Solenes e uma brincadeira séria. Companhia das Letras, São Paulo: 1990.

SANTIAGO, Silviano. As Raízes e o Labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: 2005.



* Graduanda do sétimo período do curso de História pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

[1] MORSE, Richard. O Espelho de Próspero: Cultura e idéias nas Américas. Companhia das Letras, São Paulo: 1988. p.28

[2] Id.1 p.9

[3] O orkut é uma rede social filiada ao Google, criada em 19 de Janeiro de 2004. Seu nome é originado no projetista chefe, Orkut Büyükkokten, engenheiro do Google. Apesar de Orkut ser um nome próprio, na programação visual do site a palavra está em minúscula (orkut).

[4] A expressão foi criada por Silviano Santiago como antônimo da conhecida expressão flash-back, no livro As Raízes e o Labirinto da América Latina.

[5] Norman Mailer foi um escritor norte-americano famoso pelo seu narcisismo.

[6] É a rede social com maior participação de brasileiros, com mais de 23 milhões de usuários, cerca de 52%, segundo a Wikipédia.

[7] Considerada a líder mais enérgica da ala direita do Partido Conservador Ingles, elaborou em 1975, um programa rigoroso para inverter a crise da economia britânica mediante a redução da intervenção estatal e a implementação de um programa de privatização. Os principais postulados foram o liberalismo e o monetarismo estritos.

[8] O quadragésimo presidente dos Estados Unidos da América, membro da ala mais conservadora do Pertido Republicano. Cumpriu dois mandatos, de 1981 a 1989, tendo sempre como vice-presidente George Bush, que lhe viria a suceder no cargo.