Moradores de rua: quem são?1

Luiz Antonio da Silveira2 

Resumo

Este artigo propõe uma abordagem socioantropologica sobre a população que vive na rua, procurando apresentaras principais definições e caracterizações sobre o tema, relativo aos grupos que habitam/circulam na rua, sendo que, mais especificamente, trataremos do tema a partir de um estudo de caso junto aos acolhidos pelo Abrigo e pelo Albergue Bom Pastor, situado na cidade de Novo Hamburgo- RS, com especial interesse investigativo sobre suas condições de vida. Seus deslocamentos e seus locais de moradia mais frequentes, bem como a questão sobre o que leva uma pessoa a se encontrar sem uma moradia fixa e tendo que fazer da rua seu lar, são as questões principais deste trabalho. Iremos tratar também do funcionamento das instituições de acolhimento de forma geral em especial os albergues, bastante procurados por essa população e para muitos o único lar.
Palavras chaves: Moradores de rua, territorialidade, vulnerabilidade social.

Morador de rua em idade avançada.

This article proposes a socio-anthropological approach to the population living on the street , trying to present the main definitions and characterizations of the issue concerning groups living / circulating in the street , and, more specifically , theme will deal from a study case with the welcomed by Shelter and the Good Shepherd Hostel , located in New Hamburgo- RS , with special investigative interest on their living conditions . Their movements and their most frequent places of residence , as well as the question of what causes a person to find without a fixed housing and having to make the street their home, are the main issues of this work . We will also deal with the operation of the general host institutions in special hostels , much sought after by this population and for many the only home .
Key words : Street people , territoriality , social vulnerability.

Introdução

Nesse artigo foi pesquisado alguns elementos sobreo modo de vida dos moradores de rua, explicitando tipos de posicionamento que a eles adotam com a falta de uma moradia fixa. As estratégias que acabam adotando para seu sustento e manutenção do seu modo de vida sem uma renda fixa. Suas dificuldades, o preconceito que sofrem por não terem condições de saírem da rua. Esse estudo foi realizado pelo meu grande interesse por esse modo de vida tão desregrado e sem um planejamento especifico, contando, na maioria das vezes com a bondade e a vontade de auxiliar ao próximo de algumas pessoas.

A intenção do presente relato é mostrar uma interpretação de alguns aspectos da realidade dos moradores de rua, pois no decorrer deste estudo, tornou-se evidente a necessidade do trabalho de campo junto aos moradores de rua para os estudos nessa área. Alguns julgamentos, como a de que a permanência na rua causaria uma propensão a aquisição de transtorno mental demonstra, como um olhar distanciado, sem a aproximação com esses grupos pode reforçar alguns preconceitos. Neste caso, observa-se atroca da causa pelo efeito, pois um grande número das pessoas na situação de abandono na rua é de pessoas que tiveram em algum momento de sua trajetória um problema mental que não foi tratado adequadamente, e nem dado um suporte pela família. A maioria por não entender o ocorrido, em muitos casos achar que era uma desculpa para não trabalhar, muitos esquizofrênicos são encarados como possuídos por espirito, boa parte pela condição que a doença causa, o qual tem um quadro de alucinações constantes, o dito “ouvir vozes na cabeça”.

As suas condições de vida são as mais precárias, vivem do que sobra, reviram lixo atrás de algo para se alimentar ou para vender, vivem da bondade e boa vontade dos habitantes da cidade e na sua habilidade de pedintes. Se alimentam normalmente no café da manha no centro pop, o almoço nos restaurantes e o resto do dia é o que consegue de alimentos doados.

Seu deslocamento é com o intuito de melhores condições de sobrevivência, sendo que na cidade costumam ficar nas praças pela proximidade do banheiro, no centro pop onde pegam roupas e fazem os atendimentos necessários para sua necessidade, como cartão do SUS3, auxilio em passagens4 e necessidades do cotidiano como banho e lavagem de roupas. Esse deslocamento não é somente dentro da cidade e sim normalmente em um âmbito mais amplo, sendo que muito se deslocam para o litoral na época especifica, e a maioria vai de cidade em cidade em busca de atendimento nas que tem o serviço de albergagem, fazendo uma “rota” de acordo com os dias que lhe são permitidos, pois todos adotam uma espécie de rodizio, atendendo uma quantidade de dias por mês, não sendo esse atendimento pelo número de vagas e sim pelo intuito do serviço, pois a intenção não é dar moradia e sim colocá-lo em alguns dias no estabelecimento para que tenha a possibilidade de mudança de vida. Normalmente a intenção é a procura de trabalho pelo atendido.

O Abrigo / Albergue Bom Pastor

O interesse pelo assunto tratado nesse artigo resulta do tempo que trabalho no Abrigo/Albergue Bom Pastor, como educador social, na cidade de Novo Hamburgo, onde senti a necessidade de estudar esse modo de vida complexo dos moradores de rua Esse estabelecimento é conveniado com a prefeitura de Novo Hamburgo, de onde é repassado mensalmente um valor especifico para cada atendimento. O abrigo são 25 vagas, e o espaço do albergue atende 10 vagas. O abrigo/albergue atende durante o dia pessoas em situação de vulnerabilidade social, com necessidade de cuidadosespecíficos, na ajuda e acompanhamento com a higiene pessoal e com a utilização de medicamentos uma vez que parte dessas pessoas apresenta dificuldades físicas e/ou psíquicas, inclusive para se locomoverem, por doença ou, por exemplo, perda de um membro. Esses cuidados vão de um banho até o auxílio para suas necessidades fisiológicas.

A noite funciona no mesmo espaço um albergue, que consiste em um local para pessoas em situação de rua terem a possibilidade de jantarem, tomarem um banho e dormirem. Funciona das 19 horas até as 7 horas do dia seguinte. Esse local tem 10 vagas, sendo que são permitidos 3 dias consecutivos para pessoas de fora da cidade e 5 dias para pessoas residentes na cidade a cada mês. O rodizio de limitação do número de dias, foi feito para dar oportunidade para todos de usufruírem do serviço. . O prazo 5 dias é dado com a intenção que o sujeito estando em um ambiente que lhe proporcione uma boa higiene e uma noite de sono tranquila consiga se organizar e já sendo falado que na possibilidade do albergado conseguir trabalho esse prazo pode ser estendido até que o mesmo tenha condições de alugar um local para sua residência. No caso de uma permanência de mais tempo que seria um abrigamento, a intenção é a mesma que a pessoa se restabeleça da sua condição e volte para o convívio social. Nunca a intenção dos albergues será atender todos os moradores de rua, pois a intuito não é o atendimento e sim a recuperação do sujeito. A ideia e sempre dar prioridade para pessoas com intenção de sair da vida de rua tornando o espaço um apoio para tal... Vejo dia a dia essas pessoas irem de cidade em cidade, de instituições em instituições, como cras5, creas6, centros pop7, albergue e abrigosprocurando uma solução para seu problema. Normalmente a sua busca tem pouco êxito, pois sua situação é de descaso quase total das autoridades. Pela sua vida errante, dificilmente se fixam em um local para ter o direito ao voto, sendo que perdem ai sua possibilidade de ter esse artificio como moeda de troca para melhores condições. Normalmente, para entrada no albergue onde trabalho é exigido identidade, documento com foto ou no caso da perda dos mesmos, boletim de ocorrência do ocorrido. Às vezes é apenas descaso e no uso de seu vício acaba realmente perdendo essa documentação, mas a maioria que é viciada em entorpecentes, por deixar empenhado na “boca”, o local onde compram drogas, usada como moeda de troca. As substancias mais usadas são crack e maconha que tem valor mais acessível. Vivem em busca de um auxilio para mudar de vida, mas se confrontam com problemas, às muitas vezes de saúde pela vida desregrada, ou por um vício que não consegue largar e em muitos casos por transtorno mental. O abrigo albergue funciona com a ideia de casa de passagem apenas com a intenção de reinserção na sociedade. A rotina do espaço inicia com uma triagem para verificar a validade dos seus pernoites, após isso são conduzidos até o refeitório onde recebem janta. Após a refeição os mesmos fazem a higienização do prato e talher e é preenchida uma tabela fornecida pela prefeitura do município com dados básicos sobre o usuário, como nome, data de nascimento, se frequenta ou não o centro pop8, motivo da albergagem e a frequência no estabelecimento. No final desse formulário vai a assinatura do albergado. Após isso são fornecidos toalha e sabonete para seu banho e conduzidos a um outro recinto que seria a sala de convivência onde poderão assistir tv e fumar em um local apropriado. Essa sala dá passagem para os quartos onde podem descansar até as 6 da manhã, quando são acordados, orientados a arrumar suas camas, e posteriormente a se locomoverem novamente ao refeitório onde será fornecido o café da manhã. Ao termino do café novamente eles mesmo fazem a higienização do copo e podem ir embora. Alguns são um pouco resistentes ao convívio, mas com o tempo criam um vínculo bem estável com o funcionário que está ali para atendê-lo. Percebem que a intenção do colaborador é somente ao auxílio a sua condição de vida. Pois todos têm uma coisa em comum: a falta de uma moradia fixa.

Moradores de rua, quem são: a situação de rua e as trajetórias de alguns moradores.


Na cidade, durante o dia, a maioria se encontra nas praças, no centro pop que fornece café da manhã. Praça dos imigrantes conhecida como “praça das pombas” e um ponto dos mais preferidos, por se situar no centro da cidade e por tem junto dela as “bancas” que são um conjunto de pequenos estabelecimentos, na maioria lanchonetes, ondem muitos conseguem alimentação pelo conhecido “desdobre” que seria uma forma de ludibriar um pedestre, com uma história as vezes verdadeira ou na maioria das vezes fictícia para conseguir desse um proveito. Outra praça frequentada por muitos é a praça vinte por ter banheiros e pela proximidade com o centro pop e os serviços que normalmente eles fazem uso como o como capsAD9.

Seus locais de permanência são normalmente orientados pela alimentação e a possibilidade da obtenção de algum retorno. Vão aos cras da cidade para a obtenção de roupas, e normalmente, quase na sua totalidade, os moradores de rua não costumam lavar roupas, somente conseguem doações e a que está suja colocam fora. Alguns e pela dificuldade de lava-las outros e por simplesmente ser mais fácil. O banho é disponibilizado no centro pop, onde podem lavar roupas, os que tem esse habito. Mas as reclamações são muitas, já que muitos dizem que é grande o número de furto das mesmas que são colocadas no varal.

Para o almoço, normalmente vão aos restaurantes, os que ainda doam alimentos as 14 horas, No final de semana apelam ou para o albergue ou para pedido nas casas já que o centro pop não funciona nem a maioria dos restaurantes. Alguns estabelecimentos que forneciam almoço pararam com essa pratica pelo tumulto e pelos assaltos e furtos praticados. As más escolhas, onde uns pagam pelos outros.

Alessandro, vulgo Jaqueline é um exemplo de escolhas erradas. Sempre com identidade feminina, desde muito cedo já se vestia de mulher e começou a tomar hormônios femininos, mas em decorrência de uma vida orientada por vícios e a prostituição, se encontrou vivendo eu um prostibulo, onde vivia em situação de escravidão, tendo que fazer até 10 programas por dia. Quando iniciei seu atendimento no abrigo, as palavras do meu superior eram somente 3:” Vai à óbito”. Mas com o início do tratamento para o HIV sua situação já começou a melhorar. Mas o caso ainda era sério, pois de acordo com os exames médicos além de HIV ela tinha sífilis e gonorreia. Aderiu ao tratamento por um tempo, mais seu vício em crack fez com que abandonasse o mesmo. Hoje, depois de 1 anos tenta retornar ao tratamento que abandonou por recaídas no uso de drogas.

Temos caso de Joelci, que conta que vivia da coleta de materiais recicláveis com seu pai. Faziam isso em uma carroça desde sua mais tenra idade. Joelci desde muito cedo já apresentou epilepsia, a qual seu pai tinha o cuidado de ministrar seus remédios. Ele conta que estavam em baixo de um viaduto, quando foram atacados por meliantes interessados em roubar sua carroça, sendo que esse assalto acabou em tragédia: seu pai foi morto e Joelci teve sua perna amputada com um golpe de facão. Após sair do hospital ele conta que, como não tinha condições de ministrar seu remédio, tinha crises convulsivas frequentes “quando sentia que ia ter o ataque me escorava na parede que dai caia devagar”. Quando chegou no abrigo não veio com um diagnóstico certo, sendo que após um ataque, levei ele no hospital geral, onde seu atendimento demorou e presenciei o mesmo tendo um ataque após o outro sem intervalo. Hoje mora no abrigo e tem seus medicamentos ministrados pelos funcionários da casa, sendo que seus ataques quase não acontecem, sendo que ainda pode acontecer quando ele ingere excessivamente alguma substancia que seja estimulante, como café, refrigerantes de cola e chimarrão.

Quando ouvimos falar em morador de rua já pensando naquela pessoa malcheirosa que pede dinheiro na rua, ou de alguém morando em uma marquise de uma loja, mas não temos ideia do que fez uma pessoa acabar naquela situação. Para os transeuntes pode parecer o retrato de miséria de uma cidade, mas normalmente a questão é bem mais complexa.

“Na rua vi tudo que é tipo de gente”, diz Ana, Artesã, que vive em situação de rua,que decidiu sair para mostrar seu trabalho pelo Brasil em companhia do namorado. Jovem, com seus 22 anos, de classe média, saíram de São Paulo para conhecer o país. Percebeu que não era tão fácil viver de sua arte e após uma briga com o namorado em Porto Alegre separaram-se, e como viu que sua permanência sozinha na rua seria muito arriscada, na cidade de Novo Hamburgo pediu no Centro Pop, local para atendimento de pessoas de rua do município, uma passagem para retorna a sua casa.

Costa (2005) se refere a essa população como “sobrantes” de um sistema que não prima pela manutenção do trabalho, e sim pela diminuição dos postos de deste. Ela ainda definiu os moradores de rua como:

Grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à sociedade formal. São homens, mulheres, jovens, famílias inteiras, grupos, que têm em sua trajetória a referência de ter realizado alguma atividade laboral, que foi importante na constituição de suas identidades sociais. Com o tempo, algum infortúnio atingiu suas vidas, seja a perda do emprego, seja o rompimento de algum laço afetivo, fazendo com que aos poucos fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, passando a utilizar o espaço da rua como sobrevivência e moradia. (COSTA, 2005)

Muitos autores se referem a eles como mendigos ou pedintes, Neves(2010) define os dois tipos de pessoas:

Como mendigos, definem-se de modo geral as pessoas que supostamente perderam certos atributos sociais (não têm família nem casa), e por isso sobrevivem na rua, apresentando-se sujas e maltrapilhas, além de não trabalharem. Como pedintes são classificados aqueles que, embora disponham de atributos sociais reconhecidos, enfrentam dificuldades para sobreviver, e, portanto, recorrem à ajuda de terceiros. Assim, a mendicância é atribuí da apenas ao mendigo, que dela sobrevive, enquanto o pedinte apenas minimiza sua penúria de bens materiais pela ajuda que consegue obter. (NEVES,2010)

Na linguagem do pessoal da rua é “manguear” que seria o mesmo que pedir esmola, é onde uma pessoa é abordada e o morador de rua conta sua “história triste” para a obtenção de dinheiro. Para eles o que conseguirem é lucro, como conta Tatiana, jovem viciada que confirma que fica gravida para facilitar esse processo. Conta “...uma vez mangueando consegui 150 contos, o cara veio e me deu 50, foi em casa pegou roupa e boia e voltou com uma vizinha que me deu mais 50 e ele de novo mais 50”. Conta que já teve mais de 5 filhos assim, que após ele nascer deixa com algum parente ou vai pro abrigo. Vive com seu companheiro Rafael que em seus lapsos de abstinência fala em trabalhar e voltar na sua vida organizada. Quando chegou ao albergue da ultima vez me disse, “vim pra cá por que não aguentava mais, em Porto conheço todo mundo e tô há um mês locão. Só aqui consigo parar. Lá aonde chego me oferecem…” Fala da sua facilidade de conseguir crack nas ruas da capital do estado. Sua estadia foi pequena, pois conseguiu trabalho e foi para praia tentar continuar com sua abstinência. Última notícia que tive desse casal seria que Tatiana foi vista se prostituindo na cidade vizinha, São Leopoldo. Estava sem o companheiro.

Vemos claramente essa perda de perspectiva neles, apenas preocupados com o hoje e o agora, no prazer imediato, o reflete no seu modo de vida, na sua falta de vínculos com locais ou pessoas, na violência empregada por alguns, que se sentem como pessoas que não tem nada a perder.

Um dos motivos mais frequentes para a utilização da rua como moradia é o uso de entorpecentes como afirma Silva (2011) se referindo a moradores de rua:

...“Estes, em sua maioria, são jovens que se declaram usuários de crack, situação que, em parte, explica o afrouxamento do laço familiar e o consequente abandono do lar. De qualquer forma, o acirramento destes laços surge em consonância ao afastamento, mesmo que temporário, do uso de entorpecentes.” Silva (2011)

Sendo o caso de Jorge, vulgo “Dogue”, encontrado normalmente em frente à praça do triangulo entre a rua 25 de julho e a Rua Joaquim Nabuco, vive desde a adolescência nessa situação. Certa feita chegou no albergue, e na hora da refeição disse “não como a 3 dias tava só na pedra, depois que para dá uma fome” se referindo a pedra de crack. Tanto ele como seu irmão, Adriano tem o mesmo vicio, mas esse ainda consegui ter momentos de lucidez e fazer trabalhos eventuais para manter o vício.

Isso pode exemplificar com a história do Gago. Morador de rua a mais de 20 anos, viciado em crack, vinha eventualmente no albergue, mas pela sua conduta rebelde, não se adequava ao ambiente. Era conhecido pelos pequenos furtos no centro da cidade, nos arrombamentos feitos em vizinhos, conseguiu a muito custo ser abrigado. Por mais de um mês não fez uso de nenhuma substância, mas em uma recaída, com colegas, ao praticar um assalto à uma residência foi preso. Foi colocado no Presidio central e por pelo menos dois anos não o vimos. Após dois anos conseguiu sua liberdade condicional e retornou a Novo Hamburgo, e mesmo tentando, não parou com as drogas e em uma invasão a uma residência, foi surpreendido pela dona da casa que com os seus 70 anos começou a gritar. No seu desespero, o qual estava sobe efeito de drogas arremessou a senhora do segundo andar de sua casa. O caso chocou a população, mas fez me lembrar em certa ocasião em que o ele me disse: “não tenho família, não tenho amigos, só tenho a pedra”, se referindo com certeza a pedra de crack.

Sinto que o indivíduos que possuem antecedentes criminais são mais propensos a acabarem em situação de rua como relata Mario, que conta da sua vida no tráfico: “colocava dinheiro em uma máquina de lavar, de tanto que entrava” . Era dono de uma “Boca”, onde vendia maconha e crack. “Os caras me ofereciam de tudo, uma vez veio um magrão, que comprava direto, primeiro veio em comprou umas pedras, mas depois quando não tinha mais dinheiro, me ofereceu a namorada. Tá loco oferecer a mulher...” conta indignado, de uma situação onde o viciado não tinha mais dinheiro. Ainda se referindo a sua vida: “Mas depois que cai fiquei muito tempo preso, não quero mais essa vida. Hoje só consigo emprego em cooperativa que não assina carteira, nas firmas se verem que tenho passagem nem olham currículo.” Fala da sua dificuldade mesmo sendo formado em Técnico Logístico.

Já o caso de João que conta da sua infância difícil quando, com 8 anos sua mãe morreu e para fugir do mal tratos que sofria do pai, veio caminhando até Novo Hamburgo sendo uma distancia de mais de 80 km. Viveu na rua desde então, onde como ele mesmo diz: “Até os 14 vivi de boa, mas depois comecei com coisas ruins drogas, assaltos um monte de coisa ruim”. Hoje vive tentando lutar contra a dependência química, trabalha com reciclagem de cadeiras de praia, as quando vende por 15 reais, um valor bem inferior no mercado. Pensa em trabalhar para trazer suas filhas que vivem com a mãe, porque sente que seriam melhores criadas por ele, pois vai ser avô de sua filha de apenas 15 anos. “Se ela não consegui segura essa, duvido que minhas outras filhas tenhas futuro diferente”. Algo que realmente impressiona em João é sua preocupação com os colegas de rua, sendo que no final do café da manhã no albergue, sempre perguntava se havia sobrado para colocar em uma garrafinha, para levar para os colegas na praça, “hoje tô por cima, outro dia pode se eles que me tragam coisas”. Esse fenômeno é explicado por Lanna(2000), explicando o ensaio das dadivas de Marcel Mauss onde a mesma fala:

Voltando à tese principal do Ensaio: nele se postula um entendimento da constituição da vida social por um constante dar-e-receber. Mostra ainda como, universalmente, dar e retribuir são obrigações, mas organizadas de modo particular em cada caso. Daí a importância de entendermos como as trocas são concebidas e praticadas nos diferentes tempos e lugares, de fato que elas podem tomar formas variadas, da retribuição pessoal à redistribuição de tributos. Lanna(2000).

 

Mesmo tendo em comum a rua, os moradores dessa, se diferenciam por modos de se orientar nesse segmento. Segundo (BASTOS, 2003):

“Se por um lado, esses elementos constituem traços comuns que marcam a identidade dessa população, por outro lado, é preciso reconhecê-la também como participante de uma realidade complexa, e heterogênea. Isso se explica pela existência de uma variedade de grupos, cujo nome e pratica identificam-se de maneira diversa e transformam-se em forma de vida diferente, como veremos a seguir: Trecheiros, moradores de rua, moradores de viadutos e de espaços ociosos, catadores de materiais recicláveis e portadores de sofrimento mental.” (BASTOS, 2003)

Levando essa subdivisão apontada por Bastos, estudaremos cada uma delas, colocando definições, características e relatos.

Treicheiros, moradores de rua, moradores de viadutos, recicladores e pessoas com transtornos mentais: algumas definições, caracterizações e atividades afins em torno do tema.

Trecheiros consiste em um modo de vida errante, nômade, que pode se caracterizar por ir de albergue em albergue, de cidade em cidade, sendo que tem em comum não criar vínculos. Muitos criam uma rota especifica, vendo o dia que está liberado para sua permanência em cada albergue. Normalmente são alguns dias e tem que ter um intervalo de um mês para retorno (Novo Hamburgo e 3 dias e fica fora 27). Percebesse neles uma busca por uma oportunidade que nem mesmo eles sabem o que é. Alguns buscam trabalhos temporários, os “bicos” como a ele se referem. Tudo para eles é motivo para viagem, melhor estadia em albergue de outra cidade, uns trabalhos na feira da uva em Caxias do Sul, depois para feira da maçã em Vacaria, são movidos por melhores condições em que consigam manter seu modo de vida ser prestação de contas a ninguém e sem responsabilidades. Normalmente tem um itinerário entre Porto Alegre Novo Hamburgo, preferindo essas por serem cidades atendidas pelo trensurb, que tem preço baixo e pela possibilidade da gratuidade da passagem se falarem que perderam os documentos. Porto Alegre existe mais de 250 vagas de albergue, divididas em 3 estabelecimentos, Canoas tem o albergue com 30 vagas, o mesmo número na cidade de São Leopoldo. Tem também como opção o albergue de Cachoeirinha e o de Gravataí. Vão de acordo com a disponibilidade de vagas. Segundo Brognoli(1996):

“...TRECHEIROS, termo que indicava aqueles que andavam pelo país, que percorriam o"trecho" ou estradas, tendo se desligado dos elos que normalmente levam os sujeitos à fixação: família, emprego, comunidade, moradia.”(Brognoli, 1996)

Mas nessa vida nômade, podemos falar de outro termo usado, que seria pardal, que seria um individuo sem local fixo para viver, viaja mais não fica muito longe do “ninho”, ou seja sua cidade de origem.

Esse é o caso de Marcio, natural de Criciuma. “Já fui até no mato grosso” fala orgulhoso. Se diz à 12 anos nessa vida e se mantém de pequenos artesanatos que fabrica. “Faço pulseirinhas, brincos pra tirar um troco pra boia e pro fumo...” diz ele, vindo de Santa Catarina de bicicleta. “Venho devagar, uns 70 km por dia, e olha que não furou nem uma vez o pneu”. Quando tive contato com ele no albergue me disse ter como destino agora a serra. “Vou pra Caxias...”. Para Brognoli(1996), pardais seriam “andarilhos de pequenos e limitados percursos, como entre cidades vizinhas ou dentro de uma mesma cidade” ... Se adequando ao exemplo de Marcio nunca deixa de voltar a Criciúma, sendo que a quantidade de cidade que visita é bastante grande, pois fui ver nos meus registros de permanência do abrigo que o mesmo vem a Novo Hamburgo normalmente de um espaço de 2 meses a três sempre.

Como exemplo de trecheiro podemos falar de Guido, que conta que tinha sua vida corrida na prefeitura do Rio de Janeiro onde tinha seu emprego de Técnico Administrativo, que com mais de 30 anos de trabalho não aguentou as cobranças do cotidiano e da vida conturbada de conflitos familiares, e mesmo fazendo tratamento para depressão, acabou evadindo para o Rio Grande do Sul. “Aqui é tudo mais tranquilo, cato minhas latinhas e vendo para tirar dinheiro enquanto não sai minha aposentadoria”. Vive de albergue em albergue. Se destaca por ser um morador de rua com seu diferencial, preferindo uma leitura, já que o albergue tem uma pequena coleção de livros e revistas em uma estante, as quais recebemos de doação. Na verdade tudo é de doação, pois se analisarmos hoje a casa que estamos veremos que somente os beliches e um ventilador não foram doados.

Esses realmente usam a rua como moradia e local de permanência, dificilmente procuram albergues e abrigos, por questões mais de disciplinas impostas por esses espaços, que seriam regras básicas, como não estar alcoolizado e nem sobre o efeito de alguma droga, e rotina de horários pré-estabelecidos. Bastos(2003) caracteriza o morador de rua como:

“Perambula noite e dia na cidade; sobrevive quase sempre sozinho sem companheiro; agrupa-se esporadicamente para satisfazer alguma necessidade imediata; por exemplo em falta de um trocado “filar a pinga de outro” ou ainda buscar proteção. Esse processo de agrupamento leva algum tempo até que se adquira confiança dos demais. Sua sobrevivência é garantida através de biscates e “bicos”. Dormem nas beiras de calçadas, debaixo de marquises, na porta de estabelecimentos comerciais ou em outros espaços públicos até serem expulsos desses locais, seja por intervenção policial, ou outra forma de maus-tratos da população.” (BASTOS, 2003)

E o caso de Omir, conhecido como papai-noel pela sua grande barba, viveu 20 anos no centro de cidade de Novo Hamburgo, e por ocasião de uma pneumonia foi levado ao hospital municipal de Novo Hamburgo. Após sua medicação foi feito o contato com o abrigo Bom Pastor para que o mesmo fosse acolhido, já que sua situação física necessitava cuidados. Após sua melhora acabou sendo mantida sua permanência no espaço pela sua idade e difícil inserção no mercado de trabalho. Conta que quando vivia na rua estava normalmente bêbado, coisa que hoje não quer mais para si. “ No começo tinha ate medo de sair para rua e acabar bebendo. Hoje já me sinto bem mais seguro e as vezes até visito antigos amigos da rua” conta orgulhoso. Sua permanência, provavelmente se dará até a obtenção de uma beneficio assistencial, pela sua impossibilidade de se manter.

As pessoas que acabam morando em viadutos e espaços ociosos, já procuram uma segurança e algo mais parecido com um lar. Normalmente são famílias que por algum motivo se encontram sem moradia e tentam de uma forma improvisada criar um local para sua residência. Bastos comenta:

“São aqueles que constroem alguma relação ou vinculo familiar e reproduzem as moradias convencionais debaixo das pontes; buscam o mínimo de privacidade e estabilidade. Esse grupo em geral cria referencias tais como: postos de saúde, moradores vizinhos, lojistas, etc.Embora marginalizados do mundo subterrâneo, desenvolve um certo grau de sociabilidade com outros segmentos sociais”.(BASTOS,2003)

Esse é o caso de Claudio, que conta que viveu mais de 2 anos em uma construção abandonada. “vivia eu o Carlinhos e um outro. A gente ficava lá pra não tacarem fogo em nós”. Esse Carlinhos a que se refere é um antigo abrigado que pelo alcoolismo adquiriu uma cirrose, que teve um fim trágico, pois morreu no albergue após acontecer a ruptura do seu umbigo. Foi encaminhado ao hospital geral de Novo Hamburgo, mas sobreviveu apenas 3 dias. Claudio hoje esta residindo no abrigo bom Pastor, pois tem uma ernia bastante grande na barriga com mais de 30 cm de circunferência e aguarda cirurgia (no decorrer da escrita do artigo Claudio veio a óbito por ter adquirido uma pneumonia que lhe foi fatal em decorrência de seu quadro de saúde estar bem debilitado).

Já Paulo não teve a ideia de se esconder da possibilidade de ser queimado, ex-militar conta quando notamos a falta de um dedo, “perdi em um curso pra sargento” diz ele. Antes da sua vida na rua conta que “tinha uma lavagem em São Francisco, primeiro trabalhei na lavagem depois comprei uma minha” conta orgulhoso, mas “ a marvada pinga me tirou tudo “ fala se referindo ao alcoolismo. Foi internado com serias queimaduras após ser atacado. Conta:” Senti algo molhado e depois só vi o fogo”. Teve sorte de ser socorrido logo e após sua internação foi encaminhado ao abrigo.

Uma das alternativas para essas pessoas que estão em situação de rua, é encontrar meios de sustento alternativo, como a coleta de materiais recicláveis. Metais, papel, vidro, plástico, todos os materiais têm seu mercado. Neves os define:

“São xepeiros (catadores de restos de alimentos), são mariscueiros (catadores de mariscos nas praias), são papeleiros (catadores de papel para reciclagem), são garrafeiros (catadores de garrafas para reaproveitamento), são lateiros e madeireiros (catadores de latas e madeiras nos entulhos das construções de imóveis). São cantores deporta de restaurantes e bares. São guardadores e limpadores de carros (pessoas que se dedicam à vigilância e à limpeza de carros nos estacionamentos). São ajudantes e vigias vinculados ao também estonteante crescimento do comércio ambulante. Enfim, são homens e mulheres que, descobrindo e utilidade no aparentemente inútil e inegociável, também encontravam modos de sobreviver e superar o desemprego ou de compensar os limites impostos pelos baixos salários.”(NEVES,2010)

Os casos de problemas mentais nas pessoas em situação de rua são bastante altos, e normalmente é o motivo deles estarem nessa situação. Na maioria das vezes a família não vê um “futuro” para aquele ente, pois o mesmo não consegue estudar, trabalhar e ter um convívio social aceitável. Algumas vezes até a família cuida, mas em decorrência dos seus problemas psicológicos a pessoa acaba fugindo e se perdendo. O caso destes até é difícil de apurar, pois muitos relatos não se têm certeza da veracidade. Uma das maiores incidências nessas pessoas de rua é a esquizofrenia. Não é incomum ver esses chamados “loucos de rua” falando sozinhos. Um dos sintomas mais marcantes dessa doença que são as alucinações. Segundo Pull(2005)As alucinações visuais ocorrem em 15%, as auditivas em 50% e as táteis em 5% de todos os sujeitos, e os delírios em mais de 90% deles.

De acordo com estudos, a esquizofrenia é hereditária sendo o grau de parentesco com o doente o fator de risco na maioria dos casos. Silva define a doença como:

“A definição atual de esquizofrenia indica uma psicose crônica idiopática, aparentando ser um conjunto de diferentes doenças com sintomas que se assemelham e se sobrepõem. A esquizofrenia é de origem multifatorial onde os fatores genéticos e ambientais parecem estar associados a um aumento no risco de desenvolver a doença” (Silva, 2006).

Casos de esquizofrenia são tão inúmeros, mas inicio relatando o caso de Cristina. Jovem de seus 38 anos, teve seus primeiros indícios da doença por volta dos 20 anos. Trabalhava em uma rede de supermercados com cargo de confiança, era casada quando a doença teve seus primeiros sintomas. Detalhes nesses casos é bastante difícil obter porque dependemos dos relatos dos pacientes os quais é difícil acreditar. Conta que seus pais faleceram quando era muito jovem e foi criada por uma tia, a qual em 3 anos que a conheço nunca recebeu visita. Após os primeiros sintomas da doença perdeu o emprego, o casamento acabou e foi morar em paradas de ônibus. É um caso bastante conhecido, pois ela era bastante agressiva a quem se aproximasse. Por esse motivo foi acionado o Caps10, e a mesma foi feita uma avaliação psiquiátrica. A doença foi detectada e após uma internação de 6 meses, e com os medicamentos necessários foi encaminhada ao abrigo Bom Pastor.

Considerações finais

Muitas vezes são pessoas de boa família, de situação financeira estável, pessoas normais e acabam em uma situação onde todos lhe abandonam e é obrigada a morar na rua. Um dos motivos mais comum é o do uso das drogas, licitas ou não, pois na maioria dos casos, o indivíduo acaba perdendo tudo por esse problema. Vida sem regras básicas sociais como higiene, rotina, trabalho e doenças são motivos básicos que geram a maioria das situações em que o indivíduo se encontra em situação de rua. Neves explica em poucas palavras esses motivos:

“Como mendigos classificam aqueles que, por infortúnio, estão desprovidos de família e trabalho, ou impossibilitados de trabalhar por deficiência física ou mental, ou, ainda, por serem alcoólatras”,(NEVES,2010)

Após esse estudo percebemos que a rua se torna moradia, por consequência de atos, vícios, doenças que são alheias à vontade das pessoas, e não só por “serem pobres” como acreditam muitas pessoas. Sentimos que em alguns casos poderia ser evitado sem houvesse um melhor acompanhamento da sociedade, como o caso dos portadores de doenças mentais, sendo que uma responsabilização da família seria importante, como já é aplicada em muitos casos.

Referências

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BROGNOLI, Felipe Faria.Trecheiros e pardais: estudo etnográfico de nômades urbanos. Mestrado, Curso de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996.

COSTA, Ana Paula Motta. População em situação de rua: contextualização e caracterização. Revista Virtual Textos & Contextos, n. 4, dez. 2005.

LANNA, MARCOS. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 14: p. 173-194, jun. 2000.

NEVES, Delma Pestana. Habitantes de rua e vicissitudes do trabalho livre. Rev antropolitica n 29, 2010.

PULL, C. (2005). Diagnóstico da esquizofrenia: uma revisão. In M. Maj & N. Sartorius (Orgs.), Esquizofrenia (pp. 13-70). Porto Alegre: Artmed.

SILVA, REGINA CLÁUDIA BARBOSA DA.Esquizofrenia: uma revisão, Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.Psicologia USP, 2006.

SILVA,Tiago Lemões da. A rua como espaço de interação social: um estudo antropológico das relações entre população em situação de rua e grupos caritativos. Rev antropolitica n 29.indb 131, Niteroi.2011.

1 Como referência foram usadas experiências relacionadas com a população de rua acolhida no Abrigo/Albergue Bom Pastor, RS.

2 Formado em Pedagogia, à 5 anos atua como educador social no Abrigo/Albergue Bom pastor.

3 Fornecem aos moradores de rua todo suporte necessário para que sejam atendidos no Sistema Único de Saúde.

4 A maioria das cidades fornece passagem para que o morador de rua retorne para sua cidade natal, onde segundo o serviço público municipal, deve ser o atendimento dessa pessoa.

5 Centro de Referência de Assistência Social. É um local público, localizado prioritariamente em áreas de maior vulnerabilidade social, onde são oferecidos os serviços de Assistência Social, com o objetivo de fortalecer a convivência com a família e com a comunidade.

6 Centro de referência especializado de assistência social - configura-se como uma unidade pública e estatal, que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto, etc.)

7 Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua

8 Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua.

9 Serviço para atendimento psicossocial de usuários de drogas.

10 Centro de atenção psicossocial. Órgão do município definido como referência para pessoas com transtornos mentais.