Edilson da Silva Abad TRIGO*

De todos os males do Mundo

O culpado são as mãos,

São elas que produzem as armas1.

Considerarei para início desta reflexão o filme "Intolerância" de David H Griffith de 1916, um verdadeiro marco do cinema. Baseado num poema de Walt Whitman é por muitos especialistas considerado como o primeiro filme intencionalmente ideológico a divulgar o liberalismo político. Por isso creio ser pertinente usar tal filme e a sua linguagem visual e literária para a exposição das idéias de um dos primeiros expoentes desta ideologia: John Stuart Mill.

O ponto central desta verdadeira reflexão a respeito da história humana filmada (representada no filme pelo berço sendo embalado por sua mãe – a Providência Divina) e sua luta constante entre: - a tolerância, - a liberdade individual, – o direito de consciência, - a justiça; e o seu oposto: - a opressão, e conseqüentemente, a impossibilidade de expressão de idéias e do pleno desenvolvimento individual e coletivo – a injustiça.

São apresentados três fatos históricos marcantes, no filme, em corroboração a esta idéia central de luta entre a liberdade e a sua supressão por um poder intolerante, autoritário. A primeira destas cenas – a crucifixão de Cristo – alguém que apenas prega e faz o Bem é morto por mera discordância de algumas crenças religiosas; a destruição da cidade e do império da Babilônia por Ciro – um reino, (supostamente) com liberdade de culto e expressão, é destruído pela ganância deste rei medopersa. A terceira história se refere à noite de São Bartolomeu – intolerância religiosa se expande em intolerância política. O que vemos em todos estes exemplos é que o ponto comum entre eles é a intolerância, principalmente no que tange às crenças, à liberdade de livre pensamento, e é claro aos interesses que subjazem a eles.

O que surpreende é que tais quadros parecem tão atuais quanto quando os fatos históricos ocorreram. É claro que não com as mesmas justificativas, interesses, ou crenças, mas a tendência à opressão e à intolerância se realiza sob a forma de guerras e violências que parecem ser a tônica da Humanidade como diz Mill:

A intolerância é tão natural ao homem em tudo quanto de fato lhe interessa, que na prática possivelmente a liberdade religiosa não se tenha concretizado em lugar algum, exceto onde a indiferença religiosa, que detesta ver sua paz perturbada por conflitos teológicos, fez pender a balança a seu favor2.

Justamente quando se diria que a Humanidade atingiu o mais alto grau de desenvolvimento e sofisticação. Prova disto não faltam no século XX e início do século XXI: nos países pobres, no trabalho, na favela, na família, no trânsito, entre outros lugares. O que caracteriza o nosso mundo e o nosso tempo como injusto e intolerante em todos os mais diversos lugares e sentidos.

Entretanto, o que surpreende mesmo é que como nos exemplos expostos no filme de Griffith a intolerância com respeito a crenças e a etnias se tornarem novamente relevantes. Não se trata de interpretar os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, ou a invasão do Afeganistão, ou do Iraque, ou as guerras dos Bálcãs, e o conflito entre palestinos e israelenses, como uma guerra entre civilizações (muçulmanos contra cristãos), mas sem dúvida de identificar nestes casos batalhas de intolerância de parte destas civilizações que não conseguem um diálogo e um acordo racional. Batalhas estas que pareciam estarem enterradas num passado distante.

Poder-se-ia dizer que se trata da crise do Estado laico? Ou melhor, de um Estado que por querer em sua tecnicidade superar a Intolerância não consegue o diálogo com setores e crenças que aparentemente quer assimilar sem diálogo, e, por isso, em última instância sem tolerância?

Ironicamente Mill, um dos teóricos criadores do Estado laico liberal, já apontava tal perigo:

"A tolerância foi a grande pedra fundamental das liberdades religiosas deste país (a Inglaterra), mas que ninguém abuse da preciosa palavra 'tolerância'. Conforme a compreendo, significa a completa liberdade a tudo, liberdade de culto entre cristãos que cultuarem com base no mesmo princípio. Significa tolerância a todas as seitas e denominações de cristãos que acreditam numa única mediação" (citação de um discurso de um Subsecretário de Estado em 12 de Novembro de 1857). Quero chamar a atenção para o fato de um homem, a quem se reputa capaz de ocupar um alto cargo no governo deste país sob um ministério liberal, defender a doutrina segundo a qual todos os que não acreditam na divindade de Cristo ficam fora do âmbito da tolerância. Quem, após essa manifestação imbecil, pode abandonar-se à ilusão de que a perseguição religiosa acabou para nunca mais voltar?3.

O problema estaria aqui, no dizer de Mill, na má definição do termo 'tolerância', pois, qualquer sinal de limitação da liberdade do indivíduo já traria problemas para a sua definição. No caso acima citado, o fato de o termo 'tolerância' ser aplicado apenas aos cristãos já é um desequilíbrio na delicada relação de simbiose entre tolerância e liberdade. A preocupação daquele subsecretário britânico é ironicamente um prenúncio dos discursos e atitudes do expresidente dos EUA George Bush com sua política preventiva contra o terror, aonde a tolerância vai apenas aonde se encontram as "ovelhas wasp4". Aos outros, a vigilância nos Aeroportos, os canhões e as bombas inteligentes (pena que só as bombas sejam inteligentes).

Por isso mesmo é a esta delicada relação de simbiose entre tolerância e liberdade para a definição do termo 'tolerância' que dedicarei a minha atenção, já que como foi visto tal termo é indevidamente usado ao bel prazer dos que querem se categorizar como "tolerantes", quando, na verdade, tal termo é usado de modo puramente ideológico ou retórico.

A Liberdade no Utilitarismo de J.S. Mill.

Para exame do sentido do termo 'Tolerância' conforme J.S. Mill é preciso ter uma visão clara da doutrina central do Utilitarismo, cujo principal fundamento é o princípio de utilidadeque é descrito por Bentham assim:

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos5.

E este é também o ponto principal, pois, tal é o elemento empiricamente mais palpável no gênero humano na medida em que todos os homens em condições normais de saúde psicológica querem o prazer e a felicidade e fogem da dor e da infelicidade. Mill expressa assim tal princípio de utilidade:

O credo que aceito a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o c ontrário da felicidade. Por felicidade se entende prazer e a ausência de dor; por infelicidade, dor e a privação do prazer6.

Tal princípio não é apenas uma constatação de um atributo principal da alma humana, mas, também algo a ser estimulado; é o critério para os utilitaristas: a base de toda ação moralmente boa. Não porque seja fruto de deduções metafísicas, mas sim por ser fruto de fatos concretos – a experiência empírica da dor e do prazer, cuja realidade de existência são por isso mesmo incontestáveis; constituindo-se em fatos psíquicos elementares anteriores à própria racionalidade, sendo o desejo de fugir da dor e alcançar a maior quantidade de prazer –a felicidade, um desejo universal. Como ele mesmo diz:

Não se pode fornecer nenhuma razão por que a felicidade geral é desejável, exceto a de que cada pessoa deseja sua própria felicidade, na medida em que crê poder alcança-la. No entanto, como este é um fato, não apenas dispomos de toda a prova que o caso comporta, mas ainda de toda prova que é possível exigir em apoio à afirmação de que a felicidade é um bem: a felicidade de cada pessoa é um bem para essa pessoa, e a felicidade geral é um bem para o conjunto de todas as pessoas. É assim que a felicidade faz valer seu direito a ser um dos fins da conduta e, conseqüentemente, um dos critérios de moralidade7.

Por isso tal é o fim supremo a que todo ser humano deseja e deve ter o direito de procurá-lo e de tê-lo. A busca do bem-estar assim torna-se não apenas um padrão moral universal, mas também um direito que é expresso sob a forma da liberdade individual.

A 'Tolerância' Utilitarista de J.S.Mill.

Entretanto, no que tange ao conceito de 'Tolerância' mais uma vez reportamos aos "fatos históricos" levantados pelo filme de Griffith como aplicação do método indutivo para se chegar a algumas conclusões. Tanto a história da crucifixão de Cristo, a destruição de Babilônia ou à noite de São Bartolomeu fazem parte já do domínio das relações humanas – de uma reflexão sociológica. Como Mill diz na introdução do seu ensaio A Liberdade:

O assunto deste Ensaio não consiste na assim chamada Liberdade do Arbítrio, oposta de modo tão infeliz à doutrina inadequadamente designada de Necessidade Filosófica, mas na Liberdade Social ou Civil, ou seja, a natureza e os limites do poder que a sociedade pode legitimamente exercer sobre o indivíduo. Trata-se de uma questão raras vezes formulada e quase nunca discutida em termos gerais, mas que, por sua presença latente, influencia profundamente as controvérsias práticas desta época, e que provavelmente em breve será reconhecida como a questão vital do futuro8.

Este "limite do poder que a sociedade pode legitimamente exercer sobre o indivíduo" é, na verdade, o conceito de 'Tolerância' apresentado por Mill. A (talvez eterna) "luta entre a Liberdade e a Autoridade9" quando se entra no convívio social. Ou seja, para Mill a verdadeira Tolerância sempre nascerá dum questionamento da legitimidade do poder, daí sua radicalidade neste tema, que é a questão de como se deve fazer justiça. Isso porque este pensamento questiona o fundamento do próprio poder civil e sua coerção. Diz ele:

A questão prática sobre onde colocar o limite –como proceder ao adequado ajustamento entre a independência individual e o controle social –é todavia um assunto a respeito do qual quase tudo permanece por se fazer. Tudo o torna a existência valiosa para qualquer um depende da aplicação de restrições às ações de outros. Devem-se impor, conseqüentemente, certas regras de conduta, primeiro mediante lei, e mediante a opinião sobre várias coisas que não resultam em matéria própria à atuação da lei. O que tais regras deveriam ser constitui a principal questão nos problemas humanos; porém, se excetuarmos alguns dos casos mais evidentes, cuida-se de uma questão para cuja resolução os menores progressos se têm realizado. Não há duas épocas, e dificilmente há dois países que a tenham solucionado da mesma maneira; e a maneira como uma época ou um certo país a resolveram é motivo de admiração recíproca. Contudo, o povo de uma dada época ou de um dado país não mais suspeita de que tal questão envolva alguma dificuldade, como se tratasse de um assunto sobre o qual a humanidade sempre esteve em acordo. As regras que cada povo alcança parecem-lhe evidentes e justificáveis por si mesmas. Esta ilusão universal é um dos exemplos da influência mágica do costume, que não constitui apenas, conforme reza o provérbio, uma segunda natureza, mas é continuamente tomado pela primeira10.

Portanto aqui entra o problema das instituições sociais que pelos costumes, ou seja, tradições de uma sociedade são formadas, e tais tradições se tornam inquestionáveis, dogmáticas ou tabus.

Então aqui uma questão parece ser relevante, lembrando-nos mais uma vez dos exemplos do filme Intolerância. Porque os homens considerados bons e justos (e a tradição judaico-cristã condena veementemente o desamor e a violência), de repente, crucificam, torturam, (como os executores de milhares de pessoas na noite de São Bartolomeu – homens em nome de Cristo matam outros cristãos) ou um presidente de um país que se arroja imbuídos das virtudes cristãs lançam bombas em residências em Bagdá indiscriminadamente, ou homens em nome de 'Alá' lançam aviões em torres matando milhares de pessoas? Ou melhor, porque de muitas pessoas que se dizem tolerantes, nasce opressão tão bárbara?

Creio que J.S.Mill responde bem tal questão ao apresentar o único meio para se evitar a intolerância contra um indivíduo ou grupo social ao dizer:

O hábito constante de corrigir e completar a própria opinião cotejando-a com a dos outros, longe de gerar dúvidas e hesitações ao pô-la em prática, constitui o único fundamento estável para que nela se tenha justa confiança11.

Ou melhor, o melhor meio de se evitar exatamente uma atitude dogmática está na constante discussão popular sobre as atitudes de sua própria sociedade. Ou seja, há uma defesa enorme da liberdade democrática desde que seguida de responsabilidade que tal atitude deve ter. Diz:

A única parte da conduta de cada um pela qual é responsável perante a sociedade, é a que diz respeito a outros. Na parte que diz respeito apenas a si mesmo, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano12.

E onde tais resoluções e atos dogmáticos são mais sentidos? É exatamente no domínio público lá onde os homens tem que ser mais responsáveis. E a principal causa da intolerância está justamente numa definição do que seja justo de modo dogmático e sem responsabilidade com todos os cidadãos envolvidos em tal definição.

Por isso mesmo, para Mill, um conceito de justiça único e universal, a não ser que ande de acordo com o princípio de utilidade, pode ser quebrado. Isso porque a má definição de tal conceito por uma elite intelectual ou social é considerada por ele como a maior causa da intolerância, e, conseqüentemente de leis inaceitáveis e atos bárbaros de governos que se intitulam "Tolerantes".

Assim, Mill reconhece a importância de um bom conceito de justiça, mas que pode ser violado legitimamente para atender o princípio maior que é o de utilidade. Deste modo, o seu conceito de justiça não se limita ao conceito de inviolabilidade da justiça tendo por isso que admitir que há "injustiças louváveis". Para tanto acredita ser perfeitamente legítimo ou até mesmo um dever roubar alimentos para quem tem fome –o que contraria o direito de propriedade; ou mesmo seqüestrar um médico para que cure alguém –o que viola o direito de ir e vir. Diz ele:

A palavra justiça designa certas exigências morais que, consideradas em seu conjunto, ocupam na escala da utilidade social um lugar bastante elevado, e são por conseguinte mais rigorosamente obrigatórias do que quaisquer outra; embora possam verificar-se casos particulares em que algum outro dever social seja suficientemente importante para nos obrigar a negligenciar as máximas gerais da justiça. Assim, salvar uma vida pode ser não só legítimo, mas um dever, como roubar ou obter pela força os alimentos ou medicamentos necessários, ou raptar o médico, quando é o único homem qualificado, e constrangê-lo a cumprir uma função13.

Termino com uma frase de Mill que creio resume bem tudo o que foi tratado acima:

A única liberdade merecedora desse nome é a de buscar nosso próprio bem da maneira que nos seja conveniente, conquanto que não tentemos privar outros do que lhes convêm, ou impedir seus esforços de obtê-lo. Cada um é o guardião adequando de sua própria saúde, seja física, mental ou espiritual. A humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante14.

Portanto, para Mill o conceito de 'Tolerância' que tem simbiose com os conceitos de 'Liberdade' e 'Justiça' quando são dogmaticamente determinados assumem um papel de leis e sanções injustificáveis e ilegítimas, causando na realidade Intolerância, que por terem agregados os conceitos de 'Liberdade' e 'Justiça' mal definidos, tal carência não são percebidos imediatamente pela própria população da comunidade cujas leis e sanções são aplicadas, o que em outras circunstâncias (a da reflexão pública, ou do debate democrático) as recusariam. Por isso, se teria a necessidade deste constate trabalho hermenêutico envolvendo toda a comunidade.

Referências Bibliográficas

MILL, John Stuart. A Liberdade/Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BENTHAM, Jeremy; Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação/MILL, John Stuart; Sistema da Lógica Dedutiva e Indutiva. –São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Coleção: Os Pensadores).

*Mestre em Filosofia Social – Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor das faculdades: EDUVALE Avaré – SP e UNICESPI Pirajú – SP

1 EdilsonS.A.Trigo, 2004.

2 Mill, 2000 p.15

3 Mill, 2000, nota de rodapé da página 49-50.

4 White Anglo Saxonic Protestant –Etnia mais rica e poderosa nos EUA composta por brancos de origem anglos saxônica e de religião predominantemente protestante.

5 Bentham, 1989, p.3.

6 Mill, 2000 p.187.

7Mill, 2000 p232.

8Mill, 2000 p.5.

9 idem, p.5

10Mill, 2000 p.11-12

11 Idem p.34

12 idem p.18

13 Idem, p.276.

14 Idem p.22.