Migrações e Busca: A Questão da Identidade em A Chave de Casa

Alba Azevedo

Pós-graduanda em Literatura Brasileira e Interculturalidade

Universidade Católica de Pernambuco

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo analisar o livro A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy, através da questão da Identidade, tema que permeia todo o romance. No entanto, a questão identitária não é o único tema desenvolvido pela autora no decorrer da história. O livro é, na verdade, sobre várias coisas: memórias, lugares, amores, dores, medos. É sobre todos esses temas, mas, mais do que todos, é sobre a vida, sobre o que a move ou o que a paralisa.

A Chave de Casa foi publicado em 2007, rendendo à autora o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Livro de Autor Estreante. Foi também uma das finalistas do prêmio Jabuti 2008 e do Prêmio Zaffari & Bourbon de Literatura em 2009. É o primeiro romance de Tatiana Salem Levy, que antes publicara A Experiência do Fora: Blanchot, Foulcault e Deleuze, um livro teórico, resultado de pesquisas de mestrado. Além de escritora, Tatiana é tradutora e doutora em Estudos Literários pela PUC-Rio. O livro A Chave de Casa, inclusive, é fruto de sua tese de doutorado. Já tem publicado um segundo romance que também aborda a questão da memória da narrativa.

A história de vida de Tatiana Salem Levy se confunde um pouco com a história de sua personagem de A Chave de Casa. Ela é carioca, mas nasceu em Lisboa, durante o período de exílio de seus pais. Além da dupla nacionalidade entre Brasil e Portugal, carrega uma herança judaica, sendo descendente de turcos. O livro nos conta a história de uma mulher que recebe do avô turco a chave da casa em que ele morava, na cidade de Esmirna e uma missão: empreender uma viagem à Turquia na tentativa de encontrar a tal casa e resgatar os caminhos de seus antepassados. É, portanto, uma tentativa de busca pela sua própria identidade, já que a protagonista deixa claro ao leitor desde o início que o seu passado, que começar bem antes do seu nascimento, é um dos motivos para a sua paralisação, pois carrega o peso de gerações. Retornando à sua história de seu avô, estaria na verdade recontando a sua própria história.

Trata-se, portanto, de uma auto-ficção, termo que designa uma história que nem é totalmente ficção, nem biografia. É uma construção literária que, ao misturar a escrita do “eu” a um outro “eu”, o ficcional, produz um gênero híbrido, que se situa entre a autobiografia e a ficção, entre a memória e a imaginação (FIGUEIREDO, 2007). Apesar da narrativa ser em primeira pessoa, não é, necessariamente memória da própria autora, nem todas as situações foram, de fato, vividas por ela. Há sim, ao menos um resquício, de memória, porém contado de uma forma criativa e sem qualquer compromisso com a veracidade dos acontecimentos. O leitor sabe que aquela história, ou parte dela, foi vivida pela autora, pois faz parte de sua história de vida, por ela mesma divulgada. Porém, não se sabe até que ponto os fatos são reais, são inventados, associados, ou mesmo melhorados. O leitor, mesmo que se prenda ao jogo do que é real e o que é imaginação, acaba por perceber que a narrativa se sustenta e emociona, não importando se é ficção ou se é baseada em fatos reais.

A história é contada de forma não linear. Há quatro narrativas, quase independentes, que compõem a trajetória da personagem e sua história familiar, em tempos também diferentes. Ela conta a história do avô, desde que decidira sair de Esmirna, suas motivações e anseios; a história da doença de sua mãe, que culmina com a morte; a história de uma amor que se mostra cada vez mais perigoso tanto física quanto psicologicamente e, finalmente, a sua busca, a procura pela história que através de anos e de gerações contribuiu para a formação da sua identidade.

Pretende-se, ainda, com este trabalho, situar a mulher na literatura, não apenas como objeto e elemento da narrativa, mas como voz ativa e contadora de sua própria história. Há de se notar, no livro de Tatiana, a força das personagens femininas e a importância delas em todas as relações existentes no texto.

 

Identidade e busca

Estamos diante de novas possibilidades de entender o homem em seu mundo. A Identidade como um conceito rígido, de noções culturais imutáveis vem perdendo cada vez mais sua força, em detrimento do desenvolvimento e do reconhecimento das sociedades modernas. Novas teorias culturais desempenham o papel de questionar o conceito de Identidade Cultural como sendo um conjunto de valores fixos definidores de um indivíduo pertencente a uma coletividade. Em A Chave de Casa, por vir de uma família que sempre esteve em constantes migrações, a protagonista carrega em si uma identidade fragmentada.

A protagonista de A Chave de Casa possui várias referências, múltiplas e contraditórias, que reforçam a teoria de Stuart Hall sobre a fragmentação do sujeito pós-moderno. As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação (HALL, 2005). A sensação de pertencimento não é algo estático, e uma cultura a qual o sujeito possa pertencer é construída através de uma interação entre o indivíduo e o mundo social.

Não é à toa que, logo no início, a personagem é apresentada ao leitor como uma pessoa paralisada, acometida por um sofrimento que toma não só a sua alma, mas que atinge seu corpo de uma maneira brutal, que a faz parar. Esse sofrimento é consequência de um passado que se iniciou muito antes de seu nascimento, que ela mesma não viveu, mas que chegou até ela através das dores de seus antepassados. A diáspora, as constantes migrações, a ditadura, a falta de acolhimento. Todas essas situações, vividas por seus familiares, alguns que ela nem mesmo chegou a conhecer, contribuíram para a formação de sua identidade. Há uma sensação de não-pertencimento e, ao mesmo tempo, de espalhamento de sua personalidade em variados lugares.

Cheguei hoje a Istambul. Carregava nas mãos o passaporte português, acreditando que me daria menos chateações. Uma longa fila até alcançar a polícia federal: de um lado, os turcos, do outro, os estrangeiros. Na minha vez: you need a visa. Como assim? É a lei, portugueses precisam de visto. Mas não sou portuguesa, sou brasileira. Não, não sou brasileira, sou turca. Meus avós vieram daqui, são todos turcos. Eu também. Veja, não pareço turca? Olhe o meu nariz comprido, a minha boca pequena, os meus olhos de azeitona. Sou turca. O policial torceu o nariz: you need a visa. Não discuti. Meus argumentos nunca o convenceriam. Dei meia volta e fui à imigração. Enfezada, indignada, decepcionada. Preciso de um visto para entrar no país dos meus avós? Que eles tenham nascido aqui, crescido aqui, nada disso conta? Dez euros e um carimbo no passaporte: úç ay süreli müteaddit gitis vizesidir. Çalisma hakki vermez. Posso fazer turismo durante três meses, mas não posso trabalhar. Definitivamente, não sou turca. (LEVY, 2008 p. 37)

No trecho descrito, a personagem demonstra sua insatisfação em não se sentir reconhecida em seu próprio país, que não é seu país de nascença. Na verdade, nunca esteve lá. Mas sente uma identificação que, além de física, pois tem os traços turcos estampados no rosto, é histórica, pois a sua vida veio de lá. Tatiana mostra ao leitor que a possibilidade de uma identidade nacional está além de fronteiras geográficas e físicas.

Sua paralisia, consequência de sucessivos sofrimentos vividos não apenas por ela, mas que, de alguma forma, chegaram até ela, é o ponto de partida para questionamentos internos que levam o ser a ampliar sua visão e entender melhor a si mesmo, seja através de um processo de deslocamento físico, seja um processo apenas interno.

No livro, há um deslocamento da personagem principal para um país distante na tentativa de encontrar a fechadura para a chave que possui. No entanto, sua busca, apesar de ter na figura da chave a aparente motivação principal, tem um caráter muito mais subjetivo. É uma jornada em busca de si mesma. A experiência da migração é um elemento decisivo na constituição da subjetividade, da relação do sujeito com ele mesmo, com seu grupo de origem ou com outro (BAMBHA, in NOGUEIRA, 2009). Os conflitos identitários podem ser facilmente reconhecidos através dos processos de migração. Os deslocamentos de um personagem podem representar uma necessidade de emancipação do próprio indivíduo, ou mesmo uma iminente internacionalização do local. São, ainda, importantes para uma melhor compreensão tanto do local em questão na história, quanto do indivíduo que o habita.

A questão da busca pela identidade é tema freqüente nas histórias de ficção. É comum também no cinema o uso dessa temática, existindo até mesmo um gênero para designar os filmes que se desenrolam durante uma viagem: os road movies. O gênero vem dos Estados Unidos e a partir dos anos 60 foi incorporado a outros cinemas. Atualmente, além de ser uma tendência no cinema contemporâneo mundial, contribui na construção das narrativas delineando quase uma geografia interior de seus personagens. Na medida em que a viagem avança, a paisagem muda e muda também a visão de mundo e alguns traços fundamentais do caráter do personagem. Seja fugindo de suas raízes ou indo ao encontro delas, o road movie representa uma viagem ao desconhecido e um certo refúgio (móvel) das condições sociais de opressão. Percebemos uma constante mudança na personalidade da protagonista a partir do momento em que ela toma a decisão de viajar. Em cada país por onde passa se sente diferente. Ela até pensa diferente e, ao voltar para o Brasil depois de ter passado pela Turquia e por Portugal, consegue entender melhor a si própria, e já não é a mesma pessoa do início da história.

 A mulher na escrita, a mulher nos escritos

 Em Tatiana Salem Levy, é clara a visão de que a literatura feita por mulheres avançou. Não no sentido de que elas estão escrevendo melhor, mas sim que de que elas escrevem sem que nada deixem a dever a qualquer homem da atualidade. As mulheres não precisam mais escrever apenas sobre a sua situação de omissão para se fazerem ouvidas. Hoje elas escrevem, sem medo, sobre qualquer assunto. Não há mais divisões. Não há o que só homens ou só mulheres devam falar, afinal, ambos têm memória, ambos têm família, ambos têm desejos, ambos têm problemas e causas pelas quais lutar.

Como é diferente analisar um livro escrito por uma mulher de agora, contemporânea nossa, e analisar uma Úrsula, ou uma Dona Narcisa de Vilar. Em A Chave de Casa não existe “a causa da mulher”, não existe a questão masculino/feminino, embora exista a possibilidade de se fazer uma discussão em torno do lugar que a mulher ocupa na família e nas relações em geral, uma vez que, os personagens femininos são mais bem trabalhados e mais profundos do que os masculinos. De início, a principal voz é uma mulher. São as angústias dela, e são angústias que poderiam acontecer a qualquer pessoa, seja homem ou mulher.

Apesar de não ser assunto principal, a impotência de uma mulher perante seu próprio futuro também aparece no livro, quando ela conta a história do avô, que veio para o Brasil alegando querer fugir do exército e tentar uma vida melhor em outro lugar, motivo por ela mesma questionado, quando revela: “vida melhor a gente pode conseguir no lugar que a gente já está, mas fugir é diferente, você precisa pegar um navio, ir pra bem longe, principalmente se você está fugindo de um amor, um amor tão grande que é impossível”. Um amor impossibilitado pela regras familiares, onde o pai tinha que encontrar o noivo ideal para a filha, foi o que realmente motivou sua vinda para o Brasil. Por ter seu desejo contrariado e sua felicidade impossibilitada, Rosa, por quem o avô se apaixonara e de quem fugira, se mata, conforme trecho a seguir:

Soube da morte da Rosa por uma carta da irmã. Já estava no Rio de Janeiro fazia alguns meses, trabalhando com um primo e fazendo projetos para abrir a sua própria loja de ferramentas. [...] A irmã lhe contava do trabalho do pai, dos problemas de saúde da mãe e algumas novidades sobre o irmão mais velho, que iria se casar dali a pouco. O mais novo não falava senão do Brasil, que queria seguir os passos do irmão, tentar a vida lá. Ela, por sua vez, aguardava o resultado da busca do pai por seu futuro marido. Mas não quero me casar assim, quero me casar por amor. Será que o papai nunca vai entender isso? Não quero um marido escolhido por ele, quero poder escolhê-lo eu mesma. Você não concorda comigo, querido irmão? Ele sentiu o peito apertado, conhecia bem o que ela estava falando. Tenho medo que aconteça comigo o mesmo que se passou com a menina Rosa. Você se lembra da Rosa, filha do antigo patrão da sapataria? Pois é, parece que andava apaixonada por um rapaz que o pai não aprovava. Inventaram-lhe então um casamento arranjado, às pressas, pois o pai tinha medo de que ela fugisse com o outro. Mandaram vir um rapaz de Istambul, filho de uma família de prestígio, amigos de infância do pai da Rosa. Ela, por sua vez, não aceitava a decisão da família, não queria outro homem senão aquele que amava. Mas você conhece os procedimentos da sua comunidade, Rosa nada podia contra a decisão paterna, sabe qual foi a maneira que encontrou para não ficar em silêncio, meu irmão? [...] Com uma pedra amarrada ao pé, ela se atirou no poço da praça. Matou-se, meu irmão. [...] A família proibiu o luto, e agora a comunidade usa o exemplo dela para convencer as moças a se casarem com os pretendentes escolhidos pelo pai. Mas não deveria ser o contrário? Você não concorda que essa história nos mostraa impossibilidade de um casamento sem amor? (LEVY, 2008 p. 52).

Mais trágica do que a própria situação vivida pelo casal, é a forma como a comunidade recebe a notícia, tomando Rosa como culpada de uma tragédia e como mau exemplo para outra moças, pois seria absurdo querer escolher seu próprio marido. O final de Rosa teria sido um castigo justamente recebido. É importante ressaltar também a diferente forma com a qual os dois enamorados encararam a situação do amor impossível. O home, mesmo triste em abandonar a amada, foge em busca de uma vida nova, longe de qualquer problema que esse namoro poderia vir a causar. Já a mulher, tenta o quanto pode se livrar da situação imposta pela família, encontrando no suicídio a única forma de evitar que a vida se transformasse numa tragédia cotidiana.

Outra relação importante estabelecida no livro é a de mãe e filha e os diferentes olhares das duas em relação à vida. Enquanto a protagonista tende a desenvolver uma olhar pessimista em relação ao futuro e parece olhar relembrar apenas os momentos ruins de sua existência, a voz da mãe está sempre lá para avisar que nem tudo é ruim. A narradora se utiliza da voz da mãe para criticar a si mesma, deixando claras as suas fraquezas e tendências pessimistas. A relação entre mãe e filha é a narrativa mais emocionante do livro. Não apenas pela morte, já anunciada, da mãe, por todo o amor que a protagonista descreve ao longo de toda a trajetória de luta e sofrimento a partir da doença. Ela sofria em saber que breve estaria sem a mãe, por causa da morte que a cada dia chegava mais perto, e sofria ainda mais ao ver o medo que a mãe sentia.

Temos, ainda, a relação entre a mulher e seu amante. Aí a autora discorre sobre a relação de estranhamento e preenchimento que um homem pode representar para uma mulher e ainda fala de uma submissão que pode existir. O relacionamento deles é uma das coisas mais interessantes do livro. O relato é feito cronologicamente: paixão – sexo – dor. No início, ela se mostra apaixonada, e um tanto deslumbrada com o prazer que lhe é proporcionado. Porém, a alegria já vem misturada com a dor de pressentir que tudo isso irá acabar, que a paixão não durará para sempre e que, inevitavelmente, irá sofrer. Ao longo do relacionamento, o leitor percebe que não há mais alegrias, que onde já houve uma possibilidade de amor, hoje só existe dor, pois a personagem se colocou numa posição de submissão em relação ao prazer e à dor que o amante lhe proporciona. Ao perceber que as dores da alma já evoluíram para dores físicas e que já não há prazer, e sim uma total violação de seu corpo e de seus sentimentos, a protagonista tenta dar um fim, e suas sucessivas tentativas culminam com a morte do amante, descrita de uma maneira mais metafórica do que fatídica, como no trecho a seguir:

Olhando seu corpo em cima da cama pensei que sim, de alguma maneira eu o amava. E foi com esse sentimento que, muito delicadamente, virei seu corpo, a barriga para cima. Você grunhiu algo incompreensível, mas logo em seguida retomou o sono profundo. Estava quente, mas não muito. Estiquei seus braços e suas pernas. De leve, toquei no seu rosto e encostei meus lábios nos seus. Sussurrei seu nome novamente, mas você não respondeu. Tive uma certeza que nunca antes tivera, e meu corpo não tremia mais. Segurei as duas pontas do lençol enroscado ao pé da cama e puxei-o para cima de você, cobrindo-o inteiramente, fosse um sudário. Em seguida, peguei a faca que havia buscado na cozinha e, segurando-a com as duas mãos, atravessei seu ventre. Senti o metal rasgando sua pele macia, perfurando a carne, o estômago. Senti o metal roçando os ossos da sua costela, e então larguei a faca. Você deu um grito de dor e levantou a cabeça, descobrindo a parte de cima do lençol. Você tinha os olhos abertos. Nossos olhos se encontraram pela última vez, e então pude ver a raiva, o medo e a derrota estampados em seu rosto. Em seguida, vi sua cabeça pendendo para o lado e seus olhos de fechando para sempre. [...] No centro do seu corpo, o seu corpo era vermelho, o lençol era vermelho. E era esse vermelho que me reforçava a certeza, que me garantia não haver outro final possível para a nossa história. (LEVY, 2008, p. 201-202).

 A experiência mal sucedida com o amante foi um dos motivos que a levaram à paralisação. É nessa parte da história que pode se observar mais claramente os impulsos vividos pela personagem e as dicotomias que carrega em sua essência e que formam a identidade fragmentada e em constante mudança. Tais dicotomias, prazer e dor, impulso e refreamento, passado e presente, além de comporem a personalidade da protagonista, são elementos presentes nas sociedades modernas e recorrentes durante todo o livro.

 Considerações finais

 Tatiana Salem Levy abre o livro com um poema de Emily Dickson, o qual aborda a questão do tempo e questiona sua função de curar as dores da alma. O último verso diz: “Se o tempo fosse remédio, nenhum mal existiria”. Após a leitura do livro, a frase remete ao leitor o peso do tempo para a protagonista, que sofria com as dores não apenas de seu passado, mas de outras gerações que a antecederam.

O livro aborda temáticas, que são, até certo ponto, corriqueiras na literatura. Questões como ditadura militar, expulsão dos judeus, casamentos forçados, viagem de busca pela identidade, entre outros, já dariam, cada um deles, uma história própria, mas todas cabem no livro de Tatiana Salem Levy sem que o torne relatos históricos, ou mesmo pesado demais. Mesmo as cenas em que descreve com mais forças elementos como violência ou sexo, a autora consegue tratar com delicadeza e livre de qualquer asco que possa vir a interromper a leitura de alguém mais sensível.

Há de se lembrar que, no início da história, a personagem se encontra paralisada e todos os acontecimentos por ela relatados vêm a ratificar a imobilidade da alma a qual as pessoas podem ser acometidas. Porém, é ela mesma quem decide ir atrás do seu passado e , através da memória, da imaginação e da realidade, reconstruir a sua própria história. Ao reinventar suas raízes, a narradora abraça e rompe, simultaneamente, com a sua herança e se descobre permanentemente estrangeira. Assim, as portas do passado e da “casa”, aqui uma metáfora da própria identidade da narradora, só podem ser abertos não pela simples mobilidade, mas pela chave do nomadismo intelectual (FUX, RISSARDO, 200xx), como ela anuncia no início do texto:

Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quatro, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. [...] No entanto, as palavras ainda me escapam, a história ainda não existe. Enquanto os músculos pesam e permanecem, o sentido se esvai. Quem sabe aos poucos, quando conseguir dar os primeiros passos, quando conseguir me libertar do fardo, não consiga também dar nome às coisas? E por isso, só por isso escrevo. (LEVY, 2008 p. 10)

 Nas partes do livro em que ela relata a história de sua mãe, com os sofrimentos que culminam na morte, está na verdade falando da sua relação com mãe. Quando descreve a vida do avô, fala da sua relação com o avô. O mesmo acontece ao descrever a paixão arrebatadora, quando na verdade está relatando a sua relação com aquele homem. Já quando descreve a sua viagem à Turquia e, posteriormente, a Portugal, está estabelecendo uma relação com tudo e todos que a fizeram ser hoje a pessoa que ela é. A Chave de Casa é, portanto um livro sobre a vida, sobre as raízes e sobre as decisões que transformam e modificam as relações de qualquer ser com o outro.

 Referências:

FIGUEIREDO, Eurídice. Dany Lafarrière: autobiografia,  ficção ou auto-ficção? Revista Interfaces Brasil/Canadá, n.7, 2007. Disponível em: <www.revistabecan.com.br/arquivos/1173617264.pdf/>. Acesso em: 26 mai. 2012.

FUX, Jacques, RISSARDO, Agnes. Herança e Migração em A Chave de Casa. Revista Ciências & Letras v. 50, 2011. Disponível em: < http://www.sumarios.org/index.php?q=resumos/44884&field_revista_value=136923>. Acesso em 25 mai. 2012.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2006.

LEVY, Tatiana Salem. A Chave de Casa. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.