MIGRAÇÃO E LITERATURA NAS OBRAS DA COLEÇÃO “AMORES EXPRESSOS”

Giordana Maria Bonifácio Medeiros¹

 

 

 

 

 

 

Resumo

O presente trabalho consiste em uma análise dos livros Estive em Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe da coleção “Amores Expressos” da Companhia das Letras. A partir da reflexão acerca do confronto com o espaço não-nacional, efetua-se uma análise dos autores, narradores e/ou personagens que se encontram em situação de deslocamento.

Ante os resultados dos questionários elaborados na pesquisa, pretende-se nas linhas que se seguem discutir a permanência ou a quebra da estereotipia tanto em relação à figura do estrangeiro, quanto em relação ao tema proposto pela editora e pelo coordenador da pesquisa.

Abstract

The presente work it’s a analysis of the novels Estive em Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe from the collection “Amores Expressos” of the Publisher Companhia das Letras. On the basis of the reflexion about the confront with the no-national, this work pretends makes an analisys of the authors and/or characters who are in displacement's situation.

On the basis of questionary’s results criated for the research, this work wants make a discussion about the broke or not for stereotypes in relation both the foreigner and the theme proposed by the Publisher and the research coordinator.

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  1. Graduanda em Letras pela Universidade de Brasília - UNB

Introdução

O presente trabalho consiste numa análise dos livros Estive em Lisboa e lembrei de você de Luiz Ruffato, Nunca vai embora de Chico Mattoso e O filho da mãe de Bernado Carvalho da Coleção “Amores Expressos” da Companhia das letras. De início, focar-se-á o contexto de surgimento da coleção pautado por inúmeras controvérsias e polêmicas.

Num segundo momento, será apresentado um conciso resumo das obras de modo a situar o leitor no contexto dos romances. A questão crucial do presente artigo será apresentada nos itens de cinco a sete, onde, mediante os questionários utilizados para a análise da obra, serão discutidas as questões da exogenia e suas implicações presentes ou não nas obras em estudo.

 Vislumbra-se, a partir da leitura das obras mencionadas, propor a reflexão acerca do confronto com o espaço não-nacional. No cerne da análise destes livros estão os escritores, narradores e/ou personagens que se encontram em situação de deslocamento. O intuito final é descrever as estratégias narrativas e escolhas estéticas empregadas na problematização literária das experiências vivenciadas quando o indivíduo está fora de sua pátria. Procura-se entender a questão de como ler uma escrita produzida sob a influência de outras realidades históricas e sociais experimentadas pelos personagens e, mesmo, pelo escritor, sob o contexto de situações de inclusão e exclusão, que poderão ser ampliadas ou reduzidas pelo sujeito leitor.

Assim, será alvo de discussão a migração abordada na obra Estive em Lisboa e lembrei de  você, sob os aspectos acima especificados de modo a serem identificadas as questões relacionadas a migração, no tratamento dos personagens nacionais e estrangeiros. Também será fruto de discussão a fuga da polêmica que Chico Mattoso empreendeu em Nunca Vai Embora, de modo a não tratar de questões políticas e sociais, num país em que elas transbordam. Por fim, O filho da mãe, último romance, designado para a pesquisa, será objeto de questionamento quanto as relações entre o nacional e o não-nacional perpetuadas no cerne da obra.

Isto posto, ante os resultados dos questionários convertidos em gráficos para melhor apreensão dos dados, pretende-se nas linhas que se seguem discutir a permanência ou a quebra da estereotipia tanto em relação à figura do estrangeiro, quanto em relação ao tema proposto pela editora e pelo coordenador da pesquisa.

  1. “Amores Expressos”, controvérsias e polêmicas.

A coleção “Amores Expressos” surgiu sob uma grande tempestade de polêmicas. O produtor cultural Rodrigo Teixeira e o curador João Paulo Cuenca tiveram de responder por uma produção cara demais com objetivos, no mínimo, controversos, desde o seu primeiro anúncio em 2007 na imprensa.

O objetivo da coleção era primeiramente tratar de um tema em voga na literatura contemporânea: a mobilidade espacial e o contraponto entre o nacional e o universal.  O projeto previa o envio de 16 escritores brasileiros para várias cidades do mundo com o intuito de criar histórias de amor, ambientadas nessas cidades, sob a atmosfera social, política e cultural do país e habitat em que se encontravam.

Ocorre que as viagens dos escritores seriam financiadas com recursos públicos, advindos da lei Rouanet de incentivo à cultura, para posterior publicação pela editora Companhia das Letras. Não se pode esquecer que os lucros do projeto restariam com a editora e as despesas seriam designadas ao governo. Ante a tormenta de críticas que se abateu sobre o lançamento da coleção, o produtor resolveu não mais a custear com recursos públicos, mas com recursos privados, o que não poderia ser diferente tendo em vista a quantia vultosa que foi despendida com o projeto, inicialmente prevista em R$ 1,2 milhões.

O projeto contou com a promoção de minidocumentários e blogs nos quais os autores relatavam os efeitos da exogenia em sua literatura, bem como as realidades que viveriam os personagens sob tal influência. Na verdade, é necessário falar que, que além da polêmica criada em torno da coleção, os autores, em sua grande maioria, escreveram histórias trágicas em que os amores são tão expressos quanto alardeia o nome da coleção e, ainda, deveras trágicos.

  1. 2.      Estive em Lisboa e Lembrei de Você

O romance de Luiz Ruffato, na verdade, uma novela, narra a trajetória de um imigrante brasileiro em Portugal. Serginho sai do interior de Minas, da cidade de Cataguases, numa aventura. Lança-se numa aposta cega, para Lisboa. Tinha em mente tão somente que retornaria, já de posse de uma boa soma a fim de “investindo em imóveis em Cataguases, garantir uma velhice tranquila de ‘papo-pro-ar’”(RUFFATO, 2009, p.29).

Ocorre que logo se deu conta de que o dinheiro que ganhava como garçom não seria jamais suficiente para manter-se e ao mesmo tempo realizar uma boa poupança. Assim, Lisboa acaba por prender o brasileiro, o sonho então se torna um pesadelo. Sozinho, perdido numa terra que não é sua, sem qualquer perspectiva de retorno, o narrador tem somente uma alternativa: voltar a fumar.

 É nesse contexto que novela foi dividida pelo autor em dois capítulos. O primeiro é “Como parei de fumar”. Em Cataguases, seguindo o conselho dos amigos, Serginho deixa de fumar. Compreende-se isso como um sinal de esperança, no mesmo momento que decide ir para Europa numa aposta cega de felicidade. É nesse capítulo que o narrador rememora sua vida em Cataguases desde seus amores, Noemi sua ex-esposa e seu filho Pierre, seus pais falecidos e tudo que de algum modo conspira para que ele siga para Portugal “tentar a sorte”.

 Já no capítulo, “Como voltei a fumar”, é apresentado todo um contexto, ou soma de fatores que fizeram o narrador perder as esperanças que alimentava antes de chegar a Portugal, de retornar para Cataguases, para a velhice tranquila com que tanto sonhava. Nada mais lhe resta senão retornar para o vício como um refúgio ante a dura realidade que vivia.

 Envolvido com Sheila, não foi difícil ela o ludibriar de modo a pegar um empréstimo com a garantia do passaporte de Serginho. Ilegal em Lisboa, demitido do emprego que lhe garantia a subsistência em Portugal, sem apoio de amigos e família, desterrado no sentido figurado e próprio da palavra, enfim, resta-lhe o consolo do vício. O derradeiro prazer que lhe subsiste.

  1. 3.      Nunca vai embora

Nunca vai embora narra a viagem de Renato, um homem que vivia submisso aos desmandos do pai, e Camila, a mulher que consegue desvencilhar o personagem principal da relação doentia, e mesmo edipiana, na qual o filho está sempre desejoso de livrar-se do genitor. Camila leva Renato para Cuba, com intuito de gravar um filme (ela era estudante de cinema) enquanto Renato aproveita para fazer turismo pela cidade.

 Ao chegar a Cuba, há um conflito de interesses entre o casal: Renato e Camila desejam facetas diversas da cidade. Um quer a Cuba dos turistas, dos hotéis e restaurantes caros, enquanto o outro quer se entranhar na Cuba suja, fora dos roteiros turísticos, que não se mostra receptiva, mas é o retrato de uma realidade que se esconde fora do alcance dos visitantes endinheirados, que procuram a ilha do Caribe tão somente para diversão.

Repleta de atividades, Camila distancia-se de Renato, que, louco de ciúmes, tenta se inserir no ambiente de Camila, mas a cidade torna-se para ele ainda mais hostil, o reencontro com a cineasta acaba por fazer-lhe sentir ainda mais desprezado a ponto de o casal protagonizar uma briga motivada por seus interesses tão diversos. No fim, após uma noite de sexo violento, Camila desaparece.

Renato, num primeiro momento, acredita que ela tão somente o abandonou. Assim, deixa a pensão barata escolhida por Camila para mudar-se para um hotel de luxo, proposto por ele desde o primeiro instante que chegaram à ilha de Fidel. Ele queria sorver a cidade que lhe apetecia. Porém, não demora muito para o abandono doer-lhe. Perdido, lança-se na primeira birosca que enxerga na cidade e chora suas mágoas para dois amigos, que jogavam no bar.

Pepe, um dos donos da birosca, impinge em Renato a ideia de que Camila foi sequestrada. O dentista, já transtornado, é facilmente envolvido numa perseguição infrutífera em busca de sua amada. Chegam a achar um filme de Camila filmando Renato. Mas nada que comprove que ela não tenha tão somente partido em razão da discussão que tiveram.

Os métodos pouco convencionais de Pepe não resolvem o mistério, ao contrário, a investigação malfadada nada encontra de concreto. Por fim, Renato termina na pensão barata onde revê o último filme feito por Camila infinitamente. Renato não podia voltar, não sem Camila. Depois de embrenhar-se na Cuba suja, a cidade não permitia mais que ele partisse. Então, ele foi aprisionado por aquela realidade e nunca mais iria embora.

  1. 4.      O filho da mãe.

Uma história intricada, com certeza. O filho da mãe, a obra mais complexa, até o momento, desta coleção, é uma narrativa confusa e cheia de idas e vindas. Recortada, força uma nova leitura para se compreender todas as estranhas relações apresentadas pelo autor nesse romance.

A história está ligada ao conflito na Chechênia, mas a maior parte da narrativa ocorre em São Petesburgo. Anna é mãe de Ruslan, checheno, refugiado de guerra que vai para Rússia quando a avó, não vislumbrando escapatória para o neto, prefere mandá-lo em busca da mãe enquanto morria sozinha em um campo de refugiados. O filho da mãe em questão é fruto de um relacionamento que sua mãe preferia manter escondido de sua nova família com Dmítri. Aquele é o símbolo de uma tentativa de vida malfadada em razão das difíceis condições econômicas suportadas na Chechênia

Maksim e Roman, filhos de Anna no segundo casamento desconheciam a existência do irmão. Assim, quando a mãe é abordada com uma carta do filho bastardo, pensam tratar-se de um caso extraconjugal de Anna. Dmítri, o segundo marido de Anna, um funcionário da inteligência russa aproveita do relacionamento de seu filho Maksim com skinheads para expurgar a “mancha” chamada Ruslan do passado da família.

Andrei, recruta russo, filho de brasileiro, cuja mãe é subjugada pelo marido russo, foi obrigado pelo padrasto a alistar-se no exército onde é prostituído por seus superiores. Quando retornava para o quartel, onde deveria entregar o montante auferido com os “serviços sexuais”, é assaltado por Ruslan. Para não voltar ao quartel, Andrei busca o auxílio duma organização de mães de soldados que tenta salvar os jovens do serviço militar.

A partir de então, Andrei coloca-se numa busca frenética por Ruslan, para reaver o que Petesburgo retirou-lhe: a esperança. Encontra-o quando ele preparava-se para cometer um novo assalto. Andrei o persegue por toda a cidade, indo até ao submundo de São Petesburgo.

O recruta e Ruslan terminam por se envolver. Fugindo da polícia, beijam-se e vão refugiar-se na ilha de Nova Holanda, uma cercania de São Petesburgo, ignorada pelas autoridades. Ruslan confessa-se preso, pois lhe tomaram o passaporte de modo que ele não pudesse sair da cidade. São muito parecidos, até mesmo nos dramas que vivem. Não é por menos que muitas vezes o autor repete que são como gêmeos e que Andrei enxerga-se nos olhos de Ruslan. “São o encontro de dois mundos, de dois corpos, numa espécie de fantasia última, uma quimera que será considerada um monstro e finalmente destruída”. (VIDAL, 2012, p.189).

Andrei sempre foi ao encontro de Ruslan, não poderia mais deixar de fazê-lo. Ruslan era seu espelho, era o que ele procurava e não conseguia jamais encontrar. O amor era tudo o que tinha e não queria mais perder. Porém, o romance perdurou pouco. Dmítri deixou cair o endereço de Ruslan, propositalmente, para que Maksin e Roman agissem contra o irmão que ambos consideravam amante da mãe.

Roman, a mando de Maksim, marcou um falso encontro entre Ruslan e a mãe. A separação de Ruslan e Andrei era certa. Aquele, acreditando que sua mãe iria vê-lo presenteou Andrei com uma concha: “ lá de onde eu venho, diziam que as conchas guardam a ressonância das coisas”. (CARVALHO, 2009, p. 157) Andrei, já de posse do passaporte, estava prestes a ir ao encontro do pai no Brasil.

Ruslan deixou ao amado uma carta onde falava da quimera, “o animal que era dois sem ser nenhum” (CARVALHO, 2009, p. 158), monstruosidade que trazia mau-agouro. E do kunak o “amigo estrangeiro que todo homem tem que o salvará da morte e que ele também tem obrigação de salvar”. Concluiu a carta dizendo que “as quimeras morrem para que sobreviva o pacto dos que não podem contar nem com Deus nem com os anjos”. (CARVALHO, 2009, p. 158).

Anna revelou a Maksim a identidade do irmão, o que lhe deixou desnorteado. Um irmão do Cáucaso para ele seria pior que “morrer, do que nascer cego ou preto”. (CARVALHO, 2009, p. 171).

Maksim seguiu ao encontro de Ruslan, sob a vigia de Dmítri. Nesse encontro, o skinhead espancou o irmão com auxílio dos comparsas. Andrei, assistindo a cena e para salvar Ruslan, segurou-o nos braços em meio a uma poça de sangue, enquanto Dmítri tirava o filho das imediações. Andrei apertou o passaporte nas mãos de Ruslan desacordado, numa última esperança, pedia que o tirassem dali e que o levassem para onde pudessem salvá-lo. Ruslan morreu, entretanto.

Ao final Maksim e Anna vão para Nova York, a mando de Dmítri que queria proteger o filho do indiciamento pelo assassinato do irmão, enquanto Andrei foi forçado a voltar ao exército. Enviado à Chechênia, morreria numa missão malfadada, em que houve uma sequência de mortes provocadas por desentendimentos fomentados pela questão de uma quimera, que nascera trazendo mau-agouro.

  1. Estive em Lisboa e lembrei de você, o lugar comum da migração.

O livro de Ruffato, breve e conciso, como os demais da coleção, não consegue escapar do lugar comum da migração. Ou seja, o protagonista, Serginho, encontra o que é relegado à maioria dos brasileiros ao sair do Brasil, na procura de uma vida melhor no exterior: o preconceito, a exploração e a pobreza. Nesse sentido, afirma Maria Aparecida Carvalho:

 O livro de Ruffato transforma o amor que estava na origem da proposta em um elemento lateral em um panorama conciso das agruras enfrentadas pelos imigrantes nacionais: pobreza, depressão, preconceito, exploração e uma possibilidade cada vez mais remota de voltar à terra natal. Seu personagem central, Sérgio Sampaio, até encontra amor físico, mas o que está no foco da narrativa é a luta diária pela sobrevivência e como essa peleja um tanto desigual esmigalha minuciosamente as ilusões deslumbradas que ele, em sua aventura de imigrante, forjara ao tentar a sorte em Portugal.  (CARVALHO, 2011)

Dentro da proposta inicial da obra encomendada pela Companhia das Letras, Serginho vive uma paixão desafortunada por uma prostituta, mas é por este novo amor enganado e abandonado. A sequência da história leva o leitor para um fim esperado, qual seja, a derrota do imigrante, que não conquista o desejado no início da obra e se vê sem qualquer esperança de um dia voltar para casa.

Assim, sem saída, resta-lhe tão somente voltar a fumar. Essa ação coroa sua derrota, pois nada mais possui, nem emprego, passaporte ou tão somente a possibilidade de retornar ao Brasil. Mas, quem é o imigrante? Segundo Ferreira, o imigrante vive uma situação peculiar, nem é cidadão nem é estrangeiro.  

“Nem cidadão”, pois não tem todos os direitos consagrados da “democracia liberal”, por assim dizer. E “nem estrangeiro”, pois por mais que ele esteja “de passagem” no país em que está/reside, é uma passagem duradoura, às vezes até perene – para iniciarmos com os paradoxos – ou pelo menos uma estadia mais prolongada que a do o estrangeiro-padrão(o turista). (FERREIRA, 2012).

Já a situação do imigrante pobre é sobremaneira pior, pois, além do fato acima relatado, sua situação agrava-se pelo fato de ter de aceitar condições de vida degradantes no país estrangeiro. Conforme destaca Silvano Santiago:

Está criada uma nova e até então desconhecida forma de desigualdade social, que não pode ser compreendida no âmbito legal de um único estado-nação, nem pelas relações oficiais entre governos nacionais, já que a razão econômica que convoca os novos pobres para a metrópole pós-moderna é transnacional e, na maioria dos casos, também é clandestina. O fluxo de seus novos habitantes é determinado em grande parte pela necessidade de recrutar desprivilegiados do mundo que estejam dispostos a fazer serviços do lar e de limpeza e aceitem transgredir a leis nacionais estabelecidas pelo serviço de migração. (SANTIAGO, 2004, p. 51)

Este imigrante não é cidadão, não é estrangeiro, não é homem, é brasileiro. Sua única alternativa é aceitar uma subvida no exterior, sob o peso do preconceito ora velado, ora patente.

O retrato da migração não é mais a do pobre nordestino que foge da seca sobre um caminhão pau-de-arara, está longe o tempo dos retirantes da monocultura do latifúndio e da seca nordestina retratado em Vidas Secas. Nesse sentido destaca Silvano Santiago: “hoje os retirantes brasileiros, muitos deles oriundos de estados relativamente ricos da nação, seguem o fluxo do capital transnacional” (SANTIAGO, 2004, p. 52).

Contudo, pode-se afirmar que Ruffato não escapa do lugar comum da migração, apesar de enfocar a clandestinidade, um tema não muito usual na literatura brasileira. A descrição dos personagens lusitanos e brasileiros é muito assemelhada aos tipos comuns tão pontuados na cultura em geral. O brasileiro falante e o europeu mal-humorado e antipático são assim descritos logo quando Serginho desembarca em Portugal:

Passei dormindo meu primeiro dia em Portugal, debaixo das cobertas no Hotel do Vizeu, na Madragoa, um bairro antigo pra caramba, de ruinhas estreitas e casario maquiado, uma antiguidade tão grande que até as pessoas são passadas, velhas agasalhadas em xailes pretos, velhos de boinas de lã subindo-descendo devagar o ladeirame, sem ar, escorados nas paredes, gente extravagante que parece uma noite deitou jovem e acordou, no dia seguinte, idosa, cheia de macacoa, vista fraca, junta dolorida, dente molengo, perna inchada, e, assustados, passaram a desconfiar de tudo, sempre enfezados, respondendo para dentro, incompreensíveis, respondendo as perguntas com irritação [...] (RUFFATO, 2009a, p. 39).

Nessa linha de pensamento destaca-se Homi Bhabha:

Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade política prévia é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível ao se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de poder e resistência, dominação e dependência que constrói o sujeito da identificação colonial (tanto o colonizador como colonizado). (BHABHA, 2005, p.106).

Segundo Bhabha, a única maneira de compreender o discurso que produz o estereótipo é entender o que o torna um regime de verdade e não submetê-lo a um julgamento normatizante, entender quais as ferramentas que esse discurso utiliza para afirmar identidades fixas, pois o estereótipo nada mais é

do que uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido, como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano, que não precisam de prova, não pudessem na verdade ser provadas jamais no discurso. (BHABHA, 2005, p.105).

Apesar de valer-se do padrão comum da migração, Estive em Lisboa e lembrei de você apresenta um novo retrato do cosmopolitismo do pobre. A imagem de Serginho na sua chegada a Lisboa, cheio de esperança numa terra nova, assemelha-se muito às esperanças nutridas por Fabiano de Vidas Secas ao chegar à fazenda onde pretendia iniciar uma nova vida com a família. Assim, na obra de Graciliano Ramos:

Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.

Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que não viam sombra.

Sinha Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.

Estavam no pátio de uma fazenda sem vida O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.

Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forçar a porta. Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral. Trepou-se no mourão do canto, examinou a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família. Mas chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e não quis acordá-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das cabras uma braçada de madeira meio roída pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira.

Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto, localizou- os no morro próximo e saiu correndo.

Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o céu, ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente.

Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre. A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidões do poente.

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinha Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava. (RAMOS, 1994, p. 12-13)

As obras se aproximam justamente pela esperança que ambos os personagens possuíam ao se estabelecer numa nova terra hostil e cujas promessas pareciam estar muito distantes de serem cumpridas. Ambas apresentam a imagem do migrante que apesar de sua busca, nunca deixaria o papel que ocupa na escala social: o do pobre.  Inaugura Serginho a nova pobreza, posterior à Revolução Tecnológica que, mesmo na clandestinidade, parte em direção de uma vida melhor, numa nova terra. Ainda que os caminhos sejam tão ou mais tortuosos que aqueles enfrentados por Fabiano quando se retirava do sertão.

  1. Nunca vai embora, um retrato de Cuba sem as questões polêmicas.

Para um leitor comum, que esperava ver temas relacionados à política cubana retratados na obra, Nunca vai embora foi decepcionante. Ocorre que, tendo em mãos um oceano de polêmicas, o autor preferiu fugir de todas elas. A questão política foi ignorada, sendo citado o nome de Fidel uma única vez e sem quaisquer intenções de conivência ou repúdio ao regime ditatorial cubano. Mattoso apresentou duas Cubas, a dos turistas e a do submundo, mas muito pouco do sentimento do povo cubano.

Não é difícil entender por que Mattoso preferiu escapar dos temas políticos: pois isto seria o esperado, o que o prenderia ao estribo da convenção. Não é por menos que se valeu de um enredo cinematográfico, de modo a contar uma história que poderia ser facilmente convertida em filme. Nisso, buscou apresentar as duas cidades, uma que é escondida de todos e àquela que permitem o mundo conhecer.

Mattoso tentou construir a imagem de uma Cuba dividida. Dois mundos numa ilha, dois mundos que não se misturam. Óleo e água numa questão sem solução. O narrador, Renato, por provir de uma família abastada, preferia viver a Cuba turística, já sua namorada queria viver uma Cuba fora de tais roteiros. Opostos que não se deveriam misturar, que, quando se encontram, deixam alucinado o narrador que finda seus dias preso a uma ilusão.

Mas o que se discute aqui é questão da migração posta em cheque nesta Coleção. O personagem Renato, narrador, vê-se preso a Havana pela ilusão que sustentava quanto à mulher que amava. Membro de uma família abastada, faz o movimento inverso da corrente migratória que busca os grandes centros à procura de uma nova oportunidade de vida. Renato é um turista cuja loucura não o permite partir de Cuba. Ele é o personagem que “Nunca vai embora” enquanto todos os demais seguem suas vidas.

Outra coisa que se faz notar na obra é a fuga da polêmica, das questões políticas que brotam em cada esquina de Cuba, mas foi superficialmente abordada por Mattoso. No livro há o encontro de duas cidades: a Havana turística e a do submundo. Renato circula pela cidade cartão postal até o desencontro amoroso quando passa a deslocar-se para a Havana suja, a conhecida pelas obras Pedro Juan Gutiérrez. Tanto Renato quanto Camila realizam uma viagem que se esgota nos discursos que se repetem sobre Havana, aquela que não precisamos visitar fisicamente para conhecermos.

O livro divide-se também em dois momentos: o primeiro no qual o casal vai aos poucos se desfazendo e o segundo em que Renato parte numa busca “detivetivesca” de pistas sobre Camila. O narrador vê-se desamparado, abandonado em Cuba sem razões para partir ou ficar. Assim, decide por ficar para sempre preso a uma fita de videotape. Em uma repetição sem fim de um romance arruinado, de duas vidas que não podem mais seguir em conjunto.

Não promove Mattoso, propositalmente, uma discussão sobre a migração, pois Renato escolheu ficar. Sua origem elitista permitiria que se estabelecesse onde bem desejasse. Mas ele não desejava nada mais que Camila. Porém, ela não mais estava consigo e isto ele não conseguia aceitar. Assim, permaneceu em Cuba por sua própria escolha. Escolheu ilhar-se na Cuba suja, em que todas as suas lembranças dirigem-se à Camila, ilusão que não lhe permite retornar ao Brasil.

  1. O filho da mãe, uma obra instigante.

O filho da mãe prima por ser uma das únicas obras da coleção a apresentar um romance homossexual como foco da narrativa. Foi um dos romances melhor elaborados dentro da proposta “Amores Expressos”, que exige uma segunda leitura para poder ser compreendido em todos os seus meandros pelo leitor.

 Ocorre que foi uma das únicas obras a escapar dos lugares comuns presentes em todos os livros do projeto “Amores Expressos”. Ou seja, enquanto o projeto em questão apontava para temas universais, histórias que poderiam ser contadas em qualquer lugar do mundo, afastadas das problemáticas sociais; livros que poderiam circular livremente num ambiente transnacional; O filho da mãe não escapa da polêmica, assim até mesmo a questão mais sensível na política externa do governo russo foi discutida pelo autor, talvez em repúdio ao comportamento apolítico de tantos autores desta coleção.

Os refugiados, apresentados na obra, mostram um novo tipo de desigualdade que se apresenta em níveis transnacionais. Imigrantes que, clandestinamente, seja na Rússia, como apresenta Carvalho, ou em Portugal, como o Serginho, de Ruffato, se inserem em outros países, em busca de melhores condições de vida. Vidas em ruínas que tentam se reestruturar no exterior, mas ao contrário do que procuram, restam ainda mais fragmentadas. Foi por sua nacionalidade que Ruslan foi obrigado a roubar estrangeiros em São Pesterburgo e Serginho foi demitido de seu emprego de garçom em Portugal. Mas foi também nas ruínas onde se encontraram Ruslan e Andrei, que surgiu a vida: o amor tema central da coleção, o trágico amor que constrói o que se desconstrói.

Carvalho, conforme cita Paloma Vidal, procura reproduzir em suas obras, realidades em que as pessoas não se reconheçam (VIDAL, 2012, p.189), fugindo assim do tema homogeinizante da Coleção, erigindo uma obra que se esquiva da cimentada fórmula colonizadora, algo que não pode ser reproduzido em qualquer realidade senão a proposta no romance.

O estrangeiro, contudo, também se apresenta marginalizado nessa obra, em que a discriminação impede a inclusão do imigrante. A existência de um membro Checheno é simplesmente insuportável para uma família russa. Um mal que deveria ser expurgado a todo custo.  

Outro aspecto significativo em O filho da mãe é, sobretudo, o movimento, os corpos que transitam todo o tempo. Há uma desterritorialização, o que representa o signo da nova miséria, em que os homens são despojados também de sua nacionalidade, de seu lugar de asilo. Nesse sentido, Andrei e Ruslan buscam nos corpos um do outro a segurança que não possuem, o kunak que lhes permitirá “seguir seu caminho em paz, sabendo que existe no mundo alguém, como eles, com quem eles poderão contar na vida e na morte.” (CARVALHO, 2009, p. 158).

 É notório que Ruffato e Carvalho conseguiram apresentar a carga traumática fruto da expatriação. O mal-estar do indivíduo que se vê longe das fronteiras nacionais a que estava acostumado. O desenraizamento que faz de Ruslan e Serginho párias em terras estrangeiras, forçados a comparações constantes entre o vivido no presente e o vivido outrora. Vidas divididas entre realidades que não se misturam. Vidas que não serão jamais reconstruídas.

 A migração, nesse sentido, também é uma violência. A simples necessidade de cruzar as fronteiras do seu país em razão da guerra ou da falta de oportunidades econômicas são relações traumáticas. O homem que sai de seu país de origem perde sua condição de existência, é visto tão somente em função do trabalho, explica Sayad:

A estadia autorizada do imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhecida (...) Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir, e é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra para o não-ser. (SAYAD, 1998, p. 55).

O imigrante é submetido ao trabalho degradante que o nacional não se permite fazer. É visto tão só como mão de obra. Perde as feições, como no quadro “Operários” de Tarsila do Amaral, pessoas em que as feições apresentadas se confundem, e não se fixam. São operários sem nomes e sem rostos, estatísticas que os números insensíveis encobrem.

O filho da mãe é, sem dúvida, o melhor trabalho surgido na coleção “Amores Expressos”. Tendo em vista a fuga dos padrões impostos, de modo a não se imiscuir de apresentar questões polêmicas ou fugir das questões sociais, ao contrário, traz para o bojo da obra toda uma problemática que torna o livro uma obra impossível de se repetir em outra realidade.

  1. Conclusão

A coleção ”Amores Expressos”, desde o início, fonte de acentuada polêmica, foi alvo de muitas críticas: escritores e blogueiros inundaram a internet com acusações acerca de três pontos do projeto: supostamente reunir apenas amigos dos organizadores; a temática do amor e o fato de o projeto usar dinheiro público para financiar viagens internacionais.

Mas escapando à veracidade das querelas, o cerne da pesquisa que se empreendeu nesse último semestre foi discutir a migração na literatura. Desta feita, na divisão dos trabalhos, foi sugerido a cada aluno-pesquisador a escolha de três livros de pesquisa. Coube-me a tarefa de lidar com Estive em Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe.

Lidas as obras, com o auxílio dos questionários, foi possível analisar a migração e seus efeitos sobre os indivíduos fora de sua pátria. Assim, as questões que mais chamaram atenção foram, sem dúvida, o trabalho e migração econômica. O que não foge do que se convencionou como causa máster da expatriação, tal como apresenta o gráfico a seguir obtido com a submissão das obras aos questionários:

Gráfico 2 – Razões da expatriação

A maioria dos personagens/imigrantes desta coleção foi submetida ao mesmo destino dos brasileiros que saem do Brasil à procura de melhores condições de vida no exterior: preconceito, pobreza, subvalorização, clandestinidade e possibilidades cada vez mais remotas de voltar a sua terra natal.

Desde a época das Grandes Navegações os pobres buscam em novos continentes em uma promessa longínqua de trabalho e riquezas. Não é diferente do que ocorre hoje. O pobre, mais uma vez, seguindo o “fluxo do capital” é obrigado a deixar sua terra, para fugir da pobreza, e partir para outros países em busca de melhores condições de vida.

Ocorre que hoje, não mais são expulsos pela seca, como ocorrera com Fabiano de Vidas Secas, o pobre, agora, sai das regiões mais abastadas do país, onde não conseguiram inserir-se no mercado capitalista, para tentar fazê-lo em outros países.

 No artigo intitulado “O cosmopolitismo do pobre”, Silviano Santiago analisa duas formas de multiculturalismo que são encontradas ao longo da história cultural mundial. A primeira tem origem mais antiga, baseada na ideia de estado-nação que, resumidamente, foi uma construção “de homens brancos para que todos, indistintamente, sejam disciplinarmente europeizados como eles” (SANTIAGO, 2004, p.54), o que ocorreu com as Grandes Navegações e com a descoberta de novos continentes. A segunda, de acordo com Santiago, é uma forma recente e que ainda vem se estabelecendo através da resolução de dois pontos basicamente: dar conta do intenso fluxo de migrantes pobres nas megalópoles pós-modernas e resgatar grupos étnicos e sociais, economicamente prejudicados durante a vigência do primeiro multiculturalismo. Sobre o processo de passagem de uma forma para outra, ele comenta:

Ao perder a condição utópica de nação – imaginada apenas pela sua elite intelectual, política e empresarial, repitamos – o estado nacional passa a exigir uma reconfiguração cosmopolita, que contemple tanto os seus novos moradores quanto os seus velhos habitantes marginalizados pelo processo histórico. Ao ser reconfigurado pragmaticamente pelos atuais economistas e políticos, para que se adéque as determinações do fluxo do capital transnacional, que operacionaliza as diversas economias de mercado em confronto no palco do mundo, a cultura nacional estaria (ou deve estar) ganhando uma nova reconfiguração que, por sua vez, levaria (ou está levando) os atores culturais pobres a se manifestarem por uma atitude cosmopolita, até então inédita em termos de grupos carentes e marginalizados em países periféricos (SANTIAGO, 2004, p.59-60).

  Podemos considerar este novo multiculturalismo como um desdobramento das mudanças trazidas pela globalização com o enfraquecimento dos estados-nações e com o aumento de trocas culturais que ocorre tanto através da vida cotidiana com as migrações, viagens etc., como pela ampliação das redes de comunicação representadas pelas mídias, pela academia, pelos museus e por várias outras instituições. Em outras palavras, o multiculturalismo atual é um fenômeno que vem ocorrendo atrelado ao caráter transcultural do mundo contemporâneo. É ele que instaura, conforme a expressão de Santiago, o “cosmopolitismo do pobre”.

Nesse sentido, apresenta-se a questão do desterramento dos personagens, indivíduos que sofreram a violência da migração. Pessoas que se deslocam de seu país de origem à procura de melhores condições de vida, em busca de uma promessa de prosperidade que jamais deixará de ser tão somente uma simples promessa.

Pode-se dizer que a coleção “Amores Expressos” apresentou personagens cosmopolitas. Mas o que é cosmopolita? Cosmopolita, o dito ideal universal-cosmopolita, para Carlos Enrique Ruiz Ferreira parte:

“em última instância, e consequência lógica, da defesa dos Direitos Humanos. Representa o fim das muralhas, o fim das fronteiras territoriais soberanas, o fim da distinção entre nacional e estrangeiro. Desse modo, propugna o fim do conceito/classificação de um ser humano como “imigrante”, ou como o “de fora”. É a afirmação do ser humano como ser humano, parte da coletividade Humanidade, e a negação ou sublimação da afirmação do ser humano enquanto nacional, parte da coletividade Estado-soberano-nacional.” (FERREIRA, 2012)

Podemos dizer que os cosmopolitas de hoje são homens sem pouso, que transitam sem destino. Assim, tal qual Serginho, narrador da obra Estive em Lisboa e lembrei de você, os imigrantes, sentem-se discriminados e fora de contexto quando em um país estrangeiro. A simples possibilidade de ouvir a sua própria língua é razão de muita alegria. As cidades representadas nas obras parecem avessas aos personagens retratados na coleção. São homens que, vítimas preconceito, são subjugados a uma vida de clandestinidade e sofrimento.

A elite representada por Renato de Nunca vai embora, não tem necessidade de buscar uma melhora em seu padrão econômico, assim, quando em viagem, segue os roteiros turísticos e distantes da realidade do país em que se encontra. Mattoso apresentou o choque entre o mundo burguês a que Renato estava acostumado com a Cuba real, que foge às imagens de cartão postal, a Cuba suja de Pedro Juan Gutiérrez.

Bernado Carvalho apresentou o checheno marginalizado na Rússia, o migrante que foge das ruínas de seu país em busca de sobrevivência no estrangeiro. Em território Russo, Ruslan é obrigado a efetuar pequenos roubos para manter-se, com a esperança de conseguir, também, um passaporte para evadir da relação de exploração a que estava submetido na Rússia.

Assim, o fato mais marcante nessa coleção é a figura do indivíduo quando em espaço transnacional. As obras primaram por mostrar a situação do migrante, nos contextos específicos da clandestinidade, da busca desenfreada por uma esperança que esvai a cada dia, sem, inclusive, a possibilidade de retornar para sua casa e sua gente.

 Uma das consequências deste novo multiculturalismo ou “cosmopolitismo do pobre” é que ele nos leva além das discussões acerca da identidade nacional, bem como da tensão das forças culturais externas, ele transpõe a discussão centro-periferia para fora do país, relativizando o que se conhecia por centralidade nacional. Hoje as questões de centro-periferia extrapolam fronteiras, seguindo o dito “fluxo do capital”.

Referências

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