Mídia, memória e história em tempos de globalização

João Heitor Silva Macedo


É objetivo deste ensaio analisar a relação entre a mídia, a história e a memória em tempos de globalização estudando para isso alguns conceitos fundamentais para que possamos perceber as transformações ocasionadas no campo historiográfico e jornalístico através da inserção de novas técnicas e novas realidades impostas por essa nova dinâmica da globalização.
Para isso usaremos por base as obras: "Sobre a Televisão" de Pierre Bourdieu e "Para que estudar mídia?" De Roger Silverstone, dano um enfoque especial na questão da televisão e reforçando estas análises com a obra final de Milton Santos, "Por uma outra globalização", refletindo desta maneira no campo teórico sobre tais mudanças através de uma revisão bibliográfica.

2. Onde a História e a memória encontram a mídia.
A globalização enquanto realidade complexa do final do século XX traz como uma de suas bases o casamento entre ciência e a técnica, no entanto esse casamento inicialmente foi desconectado com um desenvolvimento da humanidade enquanto agentes dessa mudança. Essa evolução compreende na verdade uma necessidade do mercado e serve para esse novo fluxo do capitalismo e afasta o ser humano de seu desenvolvimento criando mecanismos mais isolacionistas que condicionam o mesmo a uma materialidade (SANTOS, 2009).
De outro ponto as novas tecnologias produzem uma nova forma de relações sociais. Onde duas balizas alicerçam esse novo mundo, o dinheiro e a informação. È onde entra a mídia.
Analisar mídia em tempos de globalização e sua relação com a história faz-nos refletir sobre a questão da memória e sua nova relação com a história em tempos de novas tecnologias que apreendem e transmitem o passado de formas diferentes do campo historiográfico.
Para isso cabe aqui retornarmos o conceito de memória e os vários enfoques que são dados ao conceito pelas várias ciências sociais, para que possamos entender e relacioná-lo a questão da mídia.
A memória é o que lembramos e o que nos identifica, é o lugar onde as referencias de um passado comum nos liga a uma comunidade, uma nação e onde buscamos afirmação. Durante muito tempo esta memória era restrita a cultura oral, mas com o declínio desta ao longo dos séculos, um novo tipo de memória tem surgido (SILVERSTONE, 2005).
Na análise de Seixas (2001):
"Toda a memória é fundamentalmente "criação do passado": uma reconstrução engajada do passado (muitas vezes subversiva, resgatando a periferia e os marginalizados) e que desempenha um papel fundamental na maneira como os grupos sociais mais heterogêneos apreendem o mundo presente e reconstroem sua identidade, inserindo-se nas estratégias de reivindicação por um complexo direito ao reconhecimento.O que é aqui colocado em primeiríssimo plano é, portanto, a relação entre memória e (contra)poder, memória e política. A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos,aos arquivos, símbolos, rituais,datas e comemorações). Noção de que a memória torna poderoso (s) aquele (s)que a gerem e controla (m)"(p.89).

Analisando sob o foco da mídia acrescenta-se ainda o entendimento de Bergson, filosofo francês, que estuda a memória como ponto de partida para a interpretação de mundo o mesmo se utiliza de imagens para a apreensão desse mundo, neste ínterim o autor enfatiza as lembranças, as imagens e a percepção:
"sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural". (BERGSON, 1999, p. 62)

Ainda neste ponto encontra-se Maurice Halbwachs, sociólogo, que objetiva sua investigação nos quadros sociais e não na memória como tal.
A memória individual depende da memória coletiva, pois, o homem é um ser social e que todas as lembranças estão relacionadas a algum momento, a alguma pessoa e compreende que os espaços destas lembranças são sociais e determinadas. Portanto, toda memória é a construção e reconstrução do passado que se aproveita dos quadros sociais, desse modo as memórias individuais são dependentes das memórias coletivas. O autor intensifica a reflexão alegando que as lembranças são identificadas e alimentadas a partir das relações desenvolvidas nos diferentes grupos sociais. Então, a memória é articulada e modificada conforme a posição que os indivíduos ocupam e suas relações nos grupos sociais que pertencem (HALBWACHS, 2004)
Ainda sobre o mesmo tema Ecléa Bosi, em seu livro Memória e Sociedade (1994), a autora questiona e argumenta que o fator socializador da memória é a linguagem, pois esta "reduz, unifica e aproxima no mesmo espaço histórico e cultural vivências tão diversas como os sonhos as lembranças e as experiências recentes". Outro aspecto relevante é o caráter político em que o conceito de memória se insere. A construção da memória reflete-se uma manipulação política consagrada nos lugares de memória e nas efemérides.
Segundo Le Goff (2003), a memória a partir de 1950 passa por um desenvolvimento que constitui uma verdadeira revolução, com o surgimento da memória eletrônica, o que traz consigo uma série de transformações de ordem teórico-metodológica. Diante disso a memória coletiva passou por sérias mudanças onde novos campos do conhecimento passam a desempenhar importante papel nesta nova construção, e a memória passa a ser um bem de consumo, e que vende bem.
Essas novas formulações das memórias coletivas que são elementos da nova sociedade contemporânea conduzem a uma história imediata onde a mídia aparece como novo condutor dessa nova ordem.
Neste contexto segundo Silverstone (2005) a mídia é onipresente e é elemento essencial da vida contemporânea, onde o ser humano não dimensiona mais o modus vivendi recente sem a presença da mesma, ela se torna essencial como meio de informação, entretenimento e principalmente como registro do passado.
A mídia contemporânea ocupa um espaço que antes, até meados do século XX, era ocupado pela prensa de Gutemberg. A televisão e a internet passaram a ser determinantes na vida social do ser humano, determinando comportamentos e padrões culturas a serem seguidos. A mídia assume um papel na dimensão social e cultural do homem, mas ela também é política e, sobretudo econômica.
E sendo econômica, o seu produto, a informação, tem um valor de mercado, que faz com que essa informação passe por filtros do campo jornalístico que determinam as prioridades e os recortes que interessam os detentores do poder econômico.
Dentro desta ótica, somos sujeitos e objetos da mídia. O que torna necessário que nós analisemos a questão da mídia como um processo dentro de um meio social, influenciada pelas outras ciências sociais, tais como a antropologia a sociologia e a história. A informação, como produto deste contexto globalizado, está em constante mutação em uma dinâmica que oferece aos historiadores novas fontes e percepções do passado que são transmitidas por essa nova mídia contemporânea.
O fator econômico é determinante na questão da produção midiática, o que faz com que haja um monopólio de instituições que controlam esse mercado midiático e tem o poder controlar a produção das informações alterando assim também os cenários sociais causando uma tensão entre o industrial, o social e o cultural. Com isso a mídia tem o poder de filtrar e moldar realidades cotidianas, tamanha a sua influência.
Um poder que mesmo temido dever ser estudado e situado dentro de um contexto de mudanças e de uma nova dinâmica do tempo que a globalização tem nos colocado.
A mídia tem um importante papel de mediadora, através da ressignificação de informações em grande e pequena escala. A mídia é articuladora da memória, construindo assim referenciais públicos de um passado que também é público, fazendo assim que processos que mesmo individuais assumam proporções maiores através do recurso de divulgação da mídia.
Se antes a mídia era colocada como objeto e dominada, hoje ela é dominadora, de intenções, vontades e percepções. A modernidade, entendida aqui como todo o processo histórico pós idade média (GIDDENS, 2002), impõe novos valores que colocam a mídia em um papel determinante dentro da construção de uma nova sociedade. Como alguns costumam afirmar um quarto poder, superando a realidade e os campos de ações do Legislativo, Executivo e Judiciário, intervindo nas decisões tal como o poder Moderador da Constituição de 1824.
Enfocando mais a questão da televisão Palha (2006), entende a mídia como um movimento global e produtor de cultura e é mercadoria. A autora salienta ainda que os historiadores ainda caminhem a passos lentos na perspectiva de entender a mídia como objeto de estudo.
Sendo mercadoria de manipulação do campo econômico Bourdieu (1997) destaca que a televisão em específico sofre uma censura invisível, pautando os discursos e servindo assim a televisão como instrumento de manutenção da ordem simbólica, que violenta a percepção dos receptores da informação e dos próprios jornalistas que se vêem obrigados a reproduzir uma corrupção estrutural.
A televisão cria uma seleção de informações que diferem o que é fato jornalístico do que é fato histórico, pois os recortes, do campo jornalístico definem o que é relevante e o que não é relevante, dando especial atenção ao espetáculo, ao sensacional, descartando a seqüência da informação ou a continuidade.
Outro aspecto importante na análise, diferenciação entre o campo historiográfico e o campo jornalístico é a questão da dramatização dos fatos, como já mencionado anteriormente, esta dramatização serve a um interesse econômico que chame a atenção do público e crie um senso comum que é atraído pelo recorte exatamente.
Como reflexo da sociedade a mídia também é porta-voz da mesma, traz a tona a pluralidade, da voz aos marginalizados e tem um poder enorme de mobilização atuando assim como agente de transformação. Parafraseando Santos (2009), a mídia faz parte de uma transformação em marcha, onde o novo coexiste com o velho, em que as condições técnicas mudam radicalmente e trazem novas realidades frente a dinâmica de um novo capitalismo.
"É claro, com efeito, que os diferentes poderes, e em particular as instâncias governamentais, agem não apenas pelas pressões econômicas que estão em condição de exercer, mas também por todas as pressões autorizadas pelo monopólio da informação legítima ? especialmente das fontes oficiais..." (Bourdieu, 1997. P. 103)
Nesta percepção vemos uma profunda ligação entre os campos político, econômico e jornalístico e como a mediação feita pela mídia reflete discursos oficiais e é censurada também pelos governantes. Tal situação coloca os jornalistas nas mãos dos governantes que por força da política ou da economia determinam o que pode e que não pode ser publicado.
Analisando esta censura interna do próprio campo jornalístico Bonaldo ao analisar a escrita jornalística, coloca que os jornalistas recebem um filtro de seus editores, que procuram nas notícias o gancho, baseado em manuais de estilo, próprios do campo jornalístico, que determinam esta prioridade que diferenciam o foco jornalístico do foco historiográfico.
Estudando a obra de Eduardo Bueno, Bonaldo faz uma reflexão sobre os limites e contradições entre a escrita jornalística e a historiográfica, diferenciando assim os métodos e os objetivos dos mesmos. Pois, segundo ele, os historiadores se detêm a um cientificismo próprio da metodologia historiográfica, que tornam os textos um tanto quanto pesados e de difícil leitura. Os jornalistas através do recurso da narrativa, do gancho entre outros, simplificam a interpretação do leitor, visto como um consumidor e assim passam a ocupar o espaço dos historiadores como difusores da memória.

3. Considerações finais
A força da mídia é uma realidade que não pode ser desprezada. Os últimos anos do século XX revelaram uma importante revolução no campo da informação, a internet e a dinâmica do mercado globalizado criaram novas realidades, que mudaram os códigos de interpretação do passado e a própria forma de recepção das informações, afetando diretamente o campo historiográfico.
Essa realidade transformou o campo historiográfico, dando espaço a informação imediata, e a criação e novos espaços de interação e criação da memória, onde a oralidade perde cada vez mais espaço em relação a informação imediatista produzida pela mídia globalizada.
A história assim se distancia da grande massa e passa a ser controlada pelos jornalistas que atingem a grande massa, justamente por sua diferença de métodos em relação aos historiadores. Enquanto os historiadores continuam defendendo seu campo científico, produzem textos que cada vez mais limitam o acesso a memória do passado. Já o jornalista pelo contrário chega a grande população, informando e preenchendo uma lacuna deixada pelos historiadores.
No entanto, é inegável a importância sócio-cultural que a mídia tem desempenhado na sociedade contemporânea, fazendo desta um importante instrumento para a interpretação da sociedade onde a mesma é mediadora da informação. E como mediadora deve ser estudada e analisada como produtora e reprodutora de informações, o que torna necessário um melhor compreendimento das estruturas internas do campo jornalístico para que esse seja utilizado de maneira coerente pelo historiador como mais uma fonte histórica.
A necessidade de um encontro mais efusivo entre o campo jornalístico e campo historiográfico faz-se necessário para que se de vós aos marginalizados que ficam a mercê de uma comunicação do mercado midiático que controla o tipo e a forma da informação.
Há uma necessidade inequívoca de popularização do conhecimento, mas não da banalização do mesmo, e sim uma intersecção mais efetiva entre os campos do conhecimento para que se eleve o nível de conhecimento do receptor desta informação.

4. Referências Bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 1ª ed. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed, 2001.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BONALDO, Rodrigo Bragio. Presentismo e presentificação do passado: a narrativa jornalística da História na Coleção Terra Brasilis de Eduardo Bueno. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS. 2010.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. 5. Ed. São Paulo: Companhia das letras, 1994.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro,2004.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5 ed. Campinas: Editora Unicamp. 2003.
PALHA, Cássia R. Louro. Mídia televisiva e história: apontamentos metodológicos. In: III Simpósio Nacional de História Cultural. Florianópolis: 2006.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.18 Ed. Rio de Janeiro: Editora Record. 2009.
SEIXAS, Jacy Alves de. Percursos de memória em terras de história: problemáticas atuais. IN: Brescini, Stella & Naxara, Márcia (org.) Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Unicamp,2004.
SILVERSTONE, Roger. Por que estudar mídia? São Paulo: Edições Loyola. 2002.