MEUS ENCONTROS COM FLORESTAN FERNANDES


Meu primeiro, dos dois únicos encontros com o Professor Florestan Fernandes foi ao final dos anos 60. Naquela época, ainda estudante secundarista e participante do movimento estudantil, fui convidado por um amigo para ir a um seminário em um colégio no Morumbi sobre a universidade brasileira que seria conduzido pelo eminente sociólogo Florestan Fernandes. O Professor Florestan era ainda um homem jovial, fazendo uma brilhante exposição sobre a situação da universidade brasileira nos contextos social, político e econômico da época. A discussão central era se a universidade nos padrões em que estava estruturada servia aos interesses das classes dirigentes ou da sociedade brasileira como um todo.
Foi sem dúvida foi um seminário bastante interessante, que durou um domingo todo. Após o almoço, tivemos ainda uma exposição teórica e depois foram formados grupos de debate para responder algumas questões colocadas pelo conferencista. Meu grupo era composto por alguns estudantes universitários - aliás, eu e o Edson Broesdorf éramos os únicos secundaristas do seminário juntamente com a esposa do Florestan Fernandes, uma mulher inteligente e muito bem informada. Lembro-me que defendemos posições semelhantes no grupo e no final nossas conclusões bateram com as do conferencista.
A biografia de Florestan Fernandes é de um lutador. Sua mãe uma portuguesa viúva, trabalhava como empregada doméstica para sustentar a família. Apesar de não ser alfabetizada, não mediu esforços para que o filho pudesse estudar. Florestan a duras penas conseguiu concluir o curso primário, pois precisava engraxar sapatos para ajudar nas despesas da casa. Estudando sozinho, conseguiu terminar o curso básico através de exames de madureza, entrando, posteriormente na então elitista Universidade de São Paulo, onde os professores em sua grande maioria eram estrangeiros. Seus biógrafos dizem que aprendeu línguas estrangeiras utilizando um velho gravador.
Alguns anos depois voltei a vê-lo, mas desta vez numa palestra na faculdade a convite do Diretório Acadêmico. Florestan já estava aposentado compulsoriamente pelo regime em 1968, portanto proibido de dar aulas. O evento foi muito concorrido e era fácil perceber vários agentes policiais infiltrados entre os estudantes. Ao iniciar a palestra o professor Florestan fez uma preleção extremamente audaciosa para a época: "Eu gostaria de alertar aos agentes da ditadura aqui presentes que o meu discurso escrito está à disposição dos senhores, não sendo, portanto, necessário gravá-lo. Minha intenção, portanto, é poupá-los deste trabalho inútil".
Foi sem dúvida alguma foi uma corajosa manifestação pública de um intelectual que jamais se curvou ante os poderosos, que defendeu suas idéias com brilhantismo e honestidade, sem jamais fazer concessões, mesmo quando a sua segurança pessoal corria sérios riscos, na fase mais cruel do regime militar. Naquela época, já era professor visitante da Universidade de Toronto, o que lhe dava algum prestígio internacional, evitando assim, ações mais violentas por parte do regime militar. Os professores da faculdade presentes na mesa estavam visivelmente desconfortáveis e faziam expressões para sinalizar que não compartilhavam com as idéias do conferencista. Encerrada a conferência, junto com outros alunos fomos cumprimentar o corajoso mestre que desafiou o obscurantismo de um regime de caráter fascista. Enquanto isso os professores se afastaram discretamente para não se comprometerem perante os agentes.
Depois da abertura política, Florestan, voltou ao Brasil e foi convidado para lecionar na graduação em Ciências Sociais em uma universidade particular. Segundo um dos colegas professores, Florestan se sentiu incomodado com a postura dos alunos que conversavam e colocavam os pés sobre as carteiras enquanto ele dava sua aula. Habituado aos padrões acadêmicos do seu tempo de USP e em universidades estrangeiras, Florestan preferiu atuar apenas nos cursos de pós-graduação.
Florestan também se engajou na vida política, mantendo coerência com a sua trajetória de intelectual militante. Foi eleito deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, tendo uma atuação bastante ativa em comissões parlamentares, principalmente na área de educação, um dos seus temas preferidos.
Doente, o grande mestre manteve a coerência que norteou toda a sua vida, recusando o oferecimento do então Presidente da República, FHC, que foi seu aluno na USP, para fazer tratamento nos EUA. Mesmo durante as crises da doença que o levaria à morte, procurava hospitais públicos, pois como servidor acreditava que não deveria ser tratado de forma privilegiada.