A menina sempre aprontava coisas cabeludas, do arco da velha mesmo. Naquele tempo qualquer problema de saúde que as crianças apresentavam, o diagnóstico era sempre o mesmo: lombrigas, elas estavam com lombrigas e precisavam tomar vermífugo, purgante, um  remédio horrível, por isso elas tinham que comer muito pouco doce, o que realmente era ótimo. Mas a ardilosa menina inventadeira de coisas, era cheia de idéias e bolou um plano para resolver esse problema que a tanto a afligia, pois adorava doces. A mãe sempre precisava se ausentar de casa por algum tempo para ir à feira, ao armazém ou a algum outro lugar, mas voltava logo. Confiava muito na filha mais velha, por isso a incumbia sempre de tomar conta dos irmãos menores, enquanto estivesse ausente.  E esta, logo que via pela janela a mãe se distanciar, não perdia tempo, corria para a cozinha e rapidamente fazia uma panelinha quase cheia de doce de leite só para ela. As crianças queriam saber o que ela estava fazendo no fogão, desconfiavam que era alguma comida boa e também queriam, claro, mas ela falava que estava fazendo cola para encapar os livros escolares. Naquele tempo não existiam essas colas que se compra hoje nas papelarias, fazia-se grude de goma fresca misturada com um pouco d`água numa colher, ou algum tipo de cola caseira,  por isso a justificativa da menina “colava” fácil e os meninos acreditavam. Ela mandava os irmãos saírem da cozinha e depois de fazer o doce, comia todo, sozinha às escondias no banheiro, raspava até o fundo da panela e chegava a  lamber a colher. Fazia pouco doce porque era mais fácil e rápido, pra comer antes que chegasse alguém ou que a mãe retornasse. Também não distribuía com os irmãos porque algum deles poderia falar demais. E comia o doce sozinha.  Até que um dia, enquanto comia o doce ouviu um dos irmãos dizendo: lá vem a mamaaãe!

Então ela comeu ávida e rapidamente todo o doce ainda quente, e mais tarde começou a enjoar e ter dores de barriga e começou a vomitar tudo. Assustada, a mãe já ia levá-la ao posto médico quando o irmão mais velho, que já andava meio desconfiado de que havia alguma coisa errada, deu com a língua nos dentes e falou para ela que a irmã deveria ter comido cola, porque sempre que ela, a mãe, saía de casa, a irmã ia para a cozinha e preparava uma gororoba no fogão  dizendo que era cola, depois se trancava no banheiro,  e só saía de lá com a panelinha vazia na mão, lavava bem e a pendurava no preguinho da parede, junto das outras panelas. Depois bebia muita água, como se tivesse comido alguma coisa estranha Falou também que ele nunca a viu encapar os livros e cadernos. E a mãe entrouem pânico. Oque seria então?

- Meu Deus, será algum vício? Comer cola! Cola é veneno! É por isso que ela vai tanto ao banheiro com dor de barriga, e eu já estava desconfiando de que ela estava com lombrigas. Imediatamente mandou chamar o marido, chamou a vizinha, que era uma mulher muito entendida em tudo, principalmente em remédios e até sabia aplicar injeção, e as duas fizeram a pobre menina beber quase uma quartinha inteira de água fria e mais quase um litro de leite cru, pra “cortar” o veneno. Aí foi que a menina quase morre de tanto vomitar, mas teve que engolir tudo, mesmo sabendo que não havia veneno nenhum, só que não podia falar.  E depois de tudo veio o pior:

- Agora me fale tudo, disse a mãe com autoridade. Mas que história estranha é essa de comer cola? Você sabia que cola é veneno, minha filha? E isso de encapar os livros, você não sabe fazer isso... Cadê os livros encapados? Ande, vá pegar os livros, eu quero ver e tirar tudo a limpo! Vá buscar, eu quero ver agora! Já mandei chamar seu pai.

A coisa engrossou, a menina amarelou, entrou em pânico, não agüentou mais e chorando confessou tudo.

- Nossa Senhora, quanto pecado junto! Exclamou a vizinha, com as mãos postas. E comia tudo sozinha, não dava nem um tiquinho de doce pros irmãos, pôxa... E contava nos dedos: mentira, gula, sovinagem...  Você sabe o que é tudo isso - gula, sovinagem?

- Não, respondia a menina entre lágrima, morrendo de dor de barriga e querendo vomitar de tanto beber aquilo tudo.

- Pecado! Respondeu ela mesma.

E haja sermão. Os irmãos em volta olhando com aqueles olhinhos espantados, a vizinha se achando, falando sem parar feito um papagaio, o pai chegando assustado, a mãe insistindo em levar a filha ao médico pra tomar alguma injeção, aaaai! O mundo rodava a seu redor e a cabeça da menina já estava a ponto de estourar.

Foi demais, e tudo por causa de um pouquinho de doce de leite, do que ela gostava tanto, que mal tem isso, pensava, sentindo o peso de todos aqueles pecados de que estava sendo acusada pela malvada vizinha, que a obrigou a encher a barriguinha d`agua e daquele leite cru horroroso, um copo atrás do outro.

Já anoitecia e ela foi se deitar, cansada daquilo tudo.. Mas o maior castigo veio no dia seguinte, ver todos sentados à mesa lanchando à tarde, comendo bastante doce de leite com queijo de Minas, daquele doce bem grossinho, com raspinha de limão e café pra ficar moreninho, aquele lindo pote grande de vidro no centro da mesa cheínho até em cima, e ela sem ter o direito de poder comer também. E isso por vários dias.

-  Mas isso é pra ela aprender que mentir e enganar os outros não vale a pena, porque tudo se descobre,  falava a mãe da menina, com o coração partido mas consciente de que estava agindo certo.  Disso ela nunca mais vai se esquecer, não é Clotildinha?

Foi um baita castigo, inesquecível mesmo, mas com certeza valeu a pena, repete a velha e honesta senhora, hoje com oitenta anos.

 Júnia – 2011