Gostaria que alguém a mim viesse. Ofertasse-me o anti-aristotélico prazer do gosto. Provar dos extremos sem que a gula desvirtue-me; algum dano me logo cause e me faça o bronze da voz[1] que o ensinara a homem ser. Talvez o motivo que tão bem justifique o silêncio como fim desta lamúria... já tão distinto da boca quando apenas muda. Que me convidasse para o café. Que me chamasse o nome e, quando à porta, insinuasse a entrega do presente. Que me trouxesse o bolo; e, já não sei se contente, chorasse comigo o sopro lúgubre das velas.

Gostaria que alguém me tivesse mais próximo... e não jurasse meu tempo às quatro paredes do meu abandono. E quando mais à noite, por um costume de morte, no cárcere do meu espírito até o pensamento aprendeu a ter limites. E só a vontade, insensata, não vê-se  humana a te propor devido termo. Insisto ainda em desejar... como se a aspiração para si tão prontamente admitisse as frívolas formas do poeta – tolice. Meu nome diz-se πράγμα[2]. Onde a imunidade de que falavas tu?

Gostar-me-ia da pele quente. Beber do vinho dos apaixonados. Molhar a boca, beijar os lábios. Inebriar-me do outro e vestir a madrugada em um romance[3] cuja alma recorde por saudade. Mais gostaria dos braços cujo abraço prometeu-me reduto. E amaria este momento como causa que me justifica naquilo que sou: hipoteticamente livre. Incômodo algum seria a consumada falta à voz de quem não mais me chama, não fosse a saudade que dói, quando a angústia me destrói – desejo tácito de te ouvir dizer: talvez te amo. A hipótese é esperança à vontade que te quer seguir. Talvez por isto o aço frio da navalha tocou-me a pele ainda ontem... no mais absoluto insucesso[4]. E esta carta faria mais sentido se a vontade fosse, enfim, sincera. Gratuito fosse o meu desejo.

Apraz-me a idéia do jantar em família. O tormento de ter o velho vinho, tomar no cálice da discórdia cósmica todo o conforto da indiferença humana: Citar do pai teu devido nome; da mãe, teus ensinos[5]... e dos irmãos o amor para além da vida; e talvez até quem sabe o diga na morte possa enfim a vida encontrar algum caminho eterno para seguir[6]. Talvez por isto aprendi a querer. E passei a negar o que as horas diziam: Ninguém virá; Quem veio, se foi... para todo ir como dever de não voltar[7]. Acreditar no homem é o que me trouxe a este fim. Alguém há de passar por aquela porta a levar-me daqui. Que ainda não é sádica a alma dos homens – nisto creio; e aprendi a amar o que me conforta.

Eu gostaria da chuva ao rosto. Quero o corpo doente... mas vivo. Os demônios da alma são a matéria que definha – pensar que são trêmulas as mãos tão minhas –. E na suposta arbitrariedade de uma reflexão sem nexos, pensaria a carne ser mais lírica que objeto das causas do mundo. Assim apraz-me a idéia de que mesmo debilitada a matéria da vida não traiu-me quando na gênese do espírito chamou teus feitos "metáforas da liberdade"[8]. Quero o corpo liberto... alguém que me possa com o ato livre abençoar. Quero ter da carne o postulado direito de minha deliberação.

Porquanto também eu dei flores a quem não tinha. Também eu jurei amor a quem declarou a si o desalento por quase afeto. Sentei-me à mesa e sorri a união dos corpos. Lembrei teu rosto... a te cumprir memória. Despi teus medos, pensei teus traumas.  E como quando a perda ensina à alma a tortura do nada, tomei-te nos braços – um desespero – e te pedi perpétua presença. Ironia é viver o contrário da vida. Tomar do pulso teu princípio de morte. E mais calma seria a carne se não vivesse à memória de si. Gostaria que alguém viesse. Que não me fosse idêntico quando, a termo, vesti o lúrido descanso do teu mármore. Também eu confessei-me ao túmulo... e deplorei o hábito da minha pretensa demora – Alguém também esperou por mim.

Gosto dos versos de amores perversos[9], de tudo o que passa; esta vida que foi, por todo o sempre, efêmera. – Contra-sensos? Pois que guarde em teu ínclito espírito teu descabido costume de lógica. O pensamento há de ser livre –. E para o termo deste hermético delírio[10] – não ousarei chamar isto pensamento –: sobretudo apraz-me a mística de toda aquela liberdade que desde o berço fez saudade; levou-me crer... e simulou estar comigo...

 

Autor: David Guarniery

Idade: 23 anos

Início: 21:11

Término: 21:34

Tempo Gasto: 23 minutos

Dia: Sexta-Feira

Data: 17 de julho de 2009

Obra: 001

Classificação: Crônica Lírico-Filosófica

In Memoriam:

*Wallison Paulineli Galvão (irmão)

*Jeniffer Grasiley Galvão (irmã)

*David Guarniery (eu)

*Marlene Salgado Galvão (mãe)

*Ailton Galvão (pai)

Brasil/ Paraná/ Cambé

 

[1] Arístocles (Platão).

[2] Do grego: pràgmà / No português: coisa.

[3] Obra literária.

[4] Sou grato por ainda existir. (Reconheço minha arbitrariedade no último conceito).

[5] Minha mãe ajudou-me muito em meus estudos de astronomia.

[6] Aludirei aqui meu ateísmo. Creio na não existência de deus.

[7] Muito embora admita a hipótese, com tal enunciado deixo explícita minha mais ponderada crença na não existência de uma vida pós-óbito. A não ocorrência de um regresso ao mundo dos vivos é evidência axiológica (significativa) ambígua, pois legitima, ao mesmo tempo em que proíbe, o pensamento a elucubrar tanto a continuidade quanto o termo da vida humana.

[8] Eis aí aqueles soberbos exemplares dos modos muitos de manifestação da vida a que se convencionou denominar homens. (Res Humana).

[9]Taboo’s da humanidade? Nunca soube. Disto se segue que todo Taboo é social; e em razão disto, por pertencer ao âmbito de singularidade cultural de um povo, sempre haverá alguma outra organização humana onde o ato daquela quando nesta não constituirá ofensa aos costumes.

[10] Parto aqui do pressuposto de que constitui a natureza do delírio a perda do referencial à ordem do pensamento, de onde sua peculiar ilogicidade.