MISTÉRIO DO QUILOMETRO MEIA QUATRO 

ATIANA GOMES E MARA NASCIMENTO 

“... não entrava nem acunhado na bala, ele deixava quase no coco. Aí, quando foi uma noite ele mesmo falou que seu pichai ficou de pé, a ponto de...”

Meu marido e eu labutamos com caminhão carregando de tudo um pouco: rancho, capa de bomba, rotor, óleo diesel, gasolina, gás, o diabo a quatro.  As estradas, mano? Nem te conto. Asfalto era e continua sendo um sonho da Trans-garimpeira.  Muito barro, buraco da lavra, enfim, quantas vezes eu, como se diz por aqui “de bode”, tive que me lavar em poça  d’água que junta na buracada da estrada. Olha mano, a gente via veado correndo, cobra de todo jeito, paca, tatu, anta, caititu e  onça urrando e farejando em roda do caminhão. Passamos muita fome, frio, cede e pra terminar de lascar ajuntava uma musquitaiada...  pium que fazia nuvem, carapanã  que ardia no couro, perigando pegar uma malária.  

            Não era fácil ganhar o pão, meu marido dirigia de dia e eu de noite, para aproveitar o restinho de verão e a estrada seca. Ele era um homem grande, negro, forte, dos dentes branquinhos. O cabelo?  Como ele mesmo falava, era carapinha, bem pichai e como o pente não entrava nem acunhado na bala, ele raspava e deixava quase no coco. Aí, quando foi uma noite, ele mesmo falou que seu pichai ficou de pé, a ponto de levantar a boneta que usava, além de arrepiar todos os pelos do seu corpo, isso por causa duma visão que apareceu pra gente.

            Nós estávamos na serra, numa curva fechada perto do km64, anoite estava um breu,  tinha acabado de cair um toró, e aí todo cuidado  era pouco, pois era uma carga muito grande de rancho.  Aí, lá se está uma mulher agachada e abraçada num  meninozinho duns cinco, seis anos. Na feita que o meninozinho viu o caminhão chegando pra perto, ele virou para nós e seus olhos tinham um brilho horripilante, que parecia um fundo de lata de leite Ninho no sol quente. Numa fração de segundo, a mãe abriu os braços e soltou o bichinho que se jogou na frente do caminhão e... Eu taquei o pé no freio. A carga emborcou pra cima da boléia. Eu senti o pneu esmigalhando os ossos da criança. Desesperados com a barruada, pulamos daquele caminhão na ligeireza da besta, e haja procurar. Procura aqui, procura ali, procura acolá e procura de novo e nada de menino e nada de mulher.

            Assombrados com o acontecido, tratamos logo de picar a mula dali. Meu marido, nesta altura já tinha ficado branquinho, branquinho, e eu então nem se fala; tava era mal, com um tremelique nas pernas que não dirigia mas nem meu corpo. O medo foi tão grande que nesta hora nós vimos até asfalto na estrada, então ele arrochou o pé no acelerador, e o caminhão ficou pronto pra disputar corrida com um avião.

            Alguns quilômetros pra frente, lá se estava uma luz de lamparina, demos graças a Deus, era um restaurantinho, que tinha lá no km 64.  Tinha uma ruma de caminhão parado para passar a noite, pois a estrada era mais perigosa à noite do que de dia. Paramos, apeamos, entramos e pedimos um café e uma Cibalena, pra  dor de cabeça que me atacou depois do aperreio. Acanhados, contamos a presepada que tinha acontecido com a gente pra dona do restaurante.  Os caminhoneiros foram chegando pra perto e assuntando, mas nem se assustaram, estavam tranqüilos, isso porque muitos caminhoneiros chegavam ali contando o mesmo causo. Disseram que o que a gente tinha visto era duma coisa que já tinha acontecido há tempo.

            Se “assucedeu”  um acidente grave naquele lugar. Uma criança foi barruada por um caminhão. Morreu na hora e sua mãe se jogou de baixo do primeiro caminhão que passou tamanho foi seu desespero. Desde então passou a aterrorizar os caminhoneiros bem na dita curva onde mãe e filho se acabaram.

Atiana e Mara   

Rancho - mantimentos

De bode - menstruada

Trans-garimpeira - estrada que vai de  Morais de Almeida a Crepurizão, interligando garimpos.

Caititu - porco do mato

Barruada  - atropelamento.

Pium - espécie de mosquito

Picar a mula - ir embora