PRÓLOGO

Esta obra de cunho literário nasceu durante os estudos acadêmicos, quando, entrando em contato com a disciplina de Sociolingüística, nos foi requisitado um trabalho que envolvesse a pesquisa de campo e a bibliográfica. A escolha do tema ficou a critério das equipes. Em consenso, nossa equipe ( Mara, Atiana, Ana, Nazareno, Claudia, Paula, Ademir e Mª do Carmo Damasceno) escolheu como tema e linguagem ribeirinha, opção influenciada pelo motivo de durante todo o semestre, estarmos envolvidos de forma interdisciplinar às questões inerentes ao ensino da Língua Portuguesa nas escolas, à imposição conservadora e arbitrária de aquisição do conhecimento da norma padrão da língua, às variações lingüísticas, ao incentivo à leitura e formação de leitores, além do preconceito lingüístico que ainda impera, mesmo com toda a abertura e simplicidade da nova lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9394/96).

Ao visitarmos várias comunidades ribeirinhas da região de Itaituba, nos deparamos com um mundo à parte, distante das impregnações dos aspectos urbanos, os quais acabam por bitolar o ser humanao que deixa de viver de verdade, para sobreviver como peça-engrenagem  cotidiana, atropelada pelos relógios e carburadores,  passando simplesmente a subsistir.Entramos em contato com a natureza, as aves, peixes, o verde e a exuberância do Rio Tapajós.

Nosso objetivo, quanto à pesquisa, era coletar as expressões idiomáticas regionais e os vocábulos utilizados pelos ribeirinhos; suas diferentes significações, conforme variam de comunidade para comunidade; influenciadas pelo acesso à linguagem urbana e proveniente da migração de outros estados e regiões brasileiras, em comparação e análise com o conceito e definição existente no léxico. No entanto, além da interação com a riqueza desta linguagem e envolvimento mais direto com a natureza, conhecemos um povo hospitaleiro; desprovido da malícia e desconfiança da cidade, pessoas simples, moradias modestas, vivendo do fruto da terra e da pesca, em paz e harmonia com o meio ambiente.

Tempo depois do termino do trabalho apresentado em seminário, em duas de nós, além do conhecimento adquirido ficou a saudade, a admiração e o encantamento pelo povo e pele linguagem ribeirinha amazônica, seguindo o exemplo do escritor Raul Bopp, que espantou-se e deslumbrou-se  aguçando sua percepção da realidade brasileira, identificando-se em seguida com a necessidade de devorar e impregnar-se destas raízes nacionais presentes nos causos que ouvia dos canoeiros da bacia amazônica, reconhecendo a grande riqueza literária existente nas lendas, mitos, paisagem, minério, fauna, flora e nas expressões contidas neste vocabulário.  Por tal, nós resolvemos desenvolver este trabalho.

Outro fator que nos chamou a atenção e nos inspirou a mesclar ao acima mencionado, foi um dos momentos históricos de Itaituba, a “febre do ouro”, a qual envolve o desenvolvimento de Itaituba no auge da mineração e da colonização; a ilusão do “El Dourado”, a procura de um lugar ao sol; a doce ilusão do ouro; as histórias de violência inerentes à época. A problemática da febre do ouro estabeleceu novas relações sociais, transformou os espaços urbanos de Itaituba e destacou o garimpo e suas aventuras. Então, envolvidas em mais esse fascínio demos início a obra.

Desejamos através deste trabalho, resgatar um pouco da história e promover uma viagem por entre a fauna e a flora amazônica, embarcando na literatura pelas águas do Rio Tapajós, passando por ilhas, matas, cidades, lugarejos e garimpos. Queremos também apresentar um pouco da linguagem garimpeira e ribeirinha, aproveitando para implicitamente salientar que o falante da língua portuguesa do Brasil mescla o padrão culto com o coloquial; a linguagem urbana, com gírias, com expressões idiomáticas e vocábulos pertinentes à localização, colonização e hereditariedade lingüística, ingredientes que a tornam nossa língua fantasticamente encantadora.

            Para alcançarmos nosso objetivo nos valemos de enredo e estratégias literárias que desde os primórdios fazem parte da vida humana na terra: as lendas, os mitos e o sobrenatural. A curiosidade tem levado os homens de todos os tempos a indagar sobre as origens do universo, das coisas e sobre os fatos que não tem explicação lógica. Apesar dos estudos científicos e objetivos quanto a essas questões, as lendas constituem uma outra forma de responder a essas perguntas.

Fruto da imaginação, elas não explicam cientificamente os seres e as coisas, mas contam a história de como teriam surgido. Por sua vez, o mito narra de forma a usar a palavra para transmitir e comunicar coletivamente a tradição oral, preservando a sua memória e garantindo a continuidade da cultura. Os mitos exprimem através das palavras a existência humana no mundo tornando-a completa. O sobrenatural vem galgando lado a lado com o homem, e apesar da evolução científica e tecnológica, exerce ainda extraordinário poder, mesmo para os céticos que o admiram e deles se utilizam para entretenimento, e que certamente concordam com a fina estética que possibilita à literatura.

Percebe-se um desgaste nas antigas formas poéticas e na linguagem rebuscada as quais se distanciam do leitor, da realidade do seu cotidiano, o que provoca desinteresse pela leitura e privilegia somente a elite intelectualizada. Partindo-se deste pressuposto se faz necessário a substituição de termos bitolados no direcionamento de poda e castra, por maneiras de dizer mais simples, como em novos moldes literários, que inclusive vem a calhar com a nova era que tem se estabelecido no cenário brasileiro, era de ascensão da massa.  Novos moldes, capazes de recrutar abrangentemente vários níveis de leitores segundo classe social e nível de escolaridade, na luta pela formação de leitores.       

            Para comprovar e sentir o mesmo que sentimos ao mergulharmos neste fascinante mundo natural e sobrenatural, real e fictício, se faz necessário que o leitor devore página  por página desta obra, num mergulho sem volta.

          Então,  mergulhe no terror paraense, “aqui e agora .

Mara Nascimento

A MULHER DO DENTÃO

Autoria: ATIANA GOMES E MARA NASCIMENTO 

“... Cala-te e beije-me! “Se tentar...” 

                Vou lhes contar um episódio da vida de um sujeito que não media a dose de suas brincadeiras, principalmente quando o assunto era mulher. Sempre dizia que não dispensava nem sua mãe. Ele se chamava Evangelista, famoso por sua fama de mulherengo.

             Certa vez seu Evangelista foi à caça, e chegando lá no local de espera, armou seu mutá, armou sua rede, jantou e depois se deitou à espera dos animais para matar. A noite estava linda, a lua estava cheia, a floresta sombria e os cantos dos bichos, que alegram ou assombram a noite da floresta, completavam o cenário.  Evangelista não sentia medo de nada, era um bravo caçador, temido pela bicharada. Observando o clarão da floresta fez um infeliz comentário, que ele chamava de oração, usando estas palavras que desafiavam o desconhecido:

            _ Ah meu Deus, mande uma mulherzinha pra mim. Não precisa ser bonita, basta só ter o pé da barriga rachado, já tá de bom tamanho. Tenha pena de mim, meu pai. Estou sozinho aqui no meio do mato. Um medo de alma danado! Meu Deus, você é muito cruel! Mande pelo menos uma feiosinha, só com um dentinho, mas mande que eu estou precisando muito de um rabinho de saia. Espero que o senhor ouça as preces deste pobre tarado.

            Evangelista depois de fazer sua audaciosa oração, deu um cínico sorriso, acendeu um cigarro e se pôs a fumar despreocupadamente, apreciando sua fogueira que já estava quase se apagando, mas que mesmo assim, clareava muito bem a floresta. Quando ele olhou em direção a trilha que fizera para chegar até ali, arrepiou-se inteirinho ao dar com os olhos numa criatura do sexo feminino, com formas tão perfeitas que ele não ousou sequer tentar descrever. Ela trajava um vestido vermelho curtíssimo, todo rasgado deixando à mostra a pele mais bela que ele já havia visto. Cabelos negros, longos e encaracolados, jogados sobre seus seios desnudos, cobriam totalmente seu rosto criando um arrepiante clima. No entanto, nem com todo este terror, o bicho homem deixou de observar detalhes que se referiam ao corpo da mulher.  Então ela se aproximou dele dizendo:

            _ Vim de tão longe para lhe fazer companhia, deixe-me deitar aí contigo, farei coisas incríveis com você.

             Evangelista quase sem fala consegue soltar estas trêmulas palavras:

            _ A senhora esta perdida? Como sabia que eu estava aqui?  A minha rede é tão velha, não vai agüentar a gente, não. Eu já me ia embora mesmo. A senhora pode ficar com a minha rede, eu tenho que ir, e é agora. Tenho um compromisso urgente, minha senhora.

            Tentou levantar-se, porém, em vão. A estranha mulher pulou na rede em cima do infeliz homem, dizendo:

             _ Não vai não! Não vai mesmo! Vim do outro mundo pra satisfazer seus desejos e você me recebe assim?

            Ele mal conseguia falar, sua voz fugiu-lhe ao observar que a mulher de corpo tão lindo, tinha um rosto assombroso. Só tinha um dente enorme, que não cabia em sua boca, ficando uns cinco centímetros de fora, aterrorizando até os bichos da floresta, pois se notava um silêncio total, nem as folhas se mexiam... Somente o silêncio e o pavor habitavam aquela região. A mulher beijava-lhe a boca com tremendo mal-hálito. Seu dente enorme machucava-lhe o rosto inteiro, sem falar no mau cheiro que exalava do seu corpo, era realmente insuportável. Seu corpo tinha uma temperatura que parecia ter saído naquele instante do congelador. Ela não se cansava de beijar... Beijar... Beijar, e se esfregar no corpo dele. Ela se dobrava ao meio, parecia que não tinha ossos em seu gelado e fétido corpo. Evangelista fez um esforço sob humano e falou:

            _ Minha senhora, vá se embora que eu sou um homem casado, não posso ficar neste esfrega, esfrega aqui não. Sou um homem de respeito, vá embora que minha rede está tão fedorenta, pois eu acabei de fazer xixi nela. Vá por amor de qualquer coisa!

            _ Não vou! Você pediu uma mulher para passar a noite. Vou passar a noite inteirinha com você. Dormirei do seu ladinho, de onde vim não posso voltar sem antes atendê-lo. Você pediu e seu pedido foi enviado para o lugar certo. Não adianta se arrepender.

            Os olhos de Evangelista faltavam pular na mulher medonha de feia, então se levantou e disse:

            _ Até logo dona! A senhora é muito bondosa de querer fazer companhia para esse pobre homem adoentado, mas eu não posso ficar...  Até logo!

            Foi saindo de fininho, mas a mulher pulou nas suas costas, grudando em sua pele, e caíram num bolo no chão.

            _ Eu vou contigo, tenho que passar a noite com você, e vou passar. Ninguém me tira daqui. Vamos voltar para nossa redinha.

            _ Sai bicho, sai bicho! Creio em Deus pai, todo poderoso, criador do céu e da tear...

            A mulher do dentão zangou-se com Evangelista e deu-lhe um sopapo, que ele caiu direto na sua  rede e ela caiu por cima dizendo:

            _ Cala-te e beije-me! Se tentar fugir mais uma vez... eu te arranco os dentes de um por um, depois os olhos, depois a língua, os dedos e o resto, adoro arrancar coisas... Agora me beije, estou ordenando.

            Evangelista sem saída pôs-se a beijar e acariciar a monstruosa mulher, enquanto ela soltava gemidos horripilantes, tão altos que estremeciam floresta adentro. Quando Evangelista tentava parar a mulher lhe enfiava as unhas que pareciam facas afiadas, deixando no corpo do homem muitos ferimentos. Assim seu Evangelista passou a noite mais longa de sua vida.

            Quando os primeiros raios de sol penetravam a mata fria e escura, a mulher dava seus últimos gemidos e  Evangelista dava seus últimos e dolorosos beijos na  gosmenta, fétida e gelada mulher, que fora sua companhia durante a noite inteirinha. Quando um raio de sol varou bem no rosto dela, ela pulou da rede no chão, urrando de dor, “desapregou” na carreira gritando:

            _ Aiiiii! Me chame amanhã de novo Evangelistaaaaa...

            O grito estrondou na floresta. O homem deu um pulo da rede, quase junto com a mulher e correu para o lado oposto, gritando e deixando tudo para trás.

             _ Socorro! Alguém me ajude? Socorroooo! Socorrooooooo!

            Perdeu-se no mato e depois de três dias correndo e gritando, foi sair no garimpo do Marupá, no Pará.                                                                                                               Atiana e Mara