A COBRA DA LATA

Este conto foi nos passado oralmente pela Mãe Lô ( in memorian) fundadora do teatro Raio de sol em Itaituba no Pará. As marcas da oralidade foram totalmente preservadas.

“Ataia daqui, ataia de lá”, ele pulava, pulava em cima da cobra e com ela se atracava... (ele era da Amazônia)

         Certa vez  eu estava fincando com minha família esteios para fazer as barraquinhas, quando vimos uma cobra grande. Uns diziam que era jibóia; outros que era sucuri ou cobra-de-veado.

Toda vida eu fui uma pessoa tinhosa e experiente. Então disse pra mim mesma: __Vou pegar essa cobra. Peguei uma lata de leite Ninho, (daquelas bem grande que tinha antigamente) e resolvi lutar até a cobra entrar dentro dela.

Todos os dias eu via a cobra passar no igarapezinho (um tilinzinho), então notei que ela estava interessada em um menino de uns sete anos, uma das crianças que brincavam na beira d’agua. .Naquele tempo não tina poluição, nem podridão na água. Criança podia brincar a vontade, ao redor era só mata verdinha e dava gosto de apreciar a natureza. É bem por lá que a cobra vinha... Vinha...vinha e eu via da minha janela. Pensei comigo vou :pegar a lata , bem ali, e vou dar um jeito da cobra passar por dentro dela para comer uma isca.Guardei a lata grande pra quando a cobra crescesse e cortei o fundo da menorzinha, quando meu marido disse:

__ Essa cobra que tu manjas, não dá pra ficar dentro dessa lata, não cabe é uma cobra grande.

       Eu botei a lata lá onde ela passava, pois eu sabia que ela andava atrás “é de menino”, pra induzir ou comer... não sei, não sei... só sei que ela vinha todo dia,tinha até horário, podia patucar de doze pra uma hora da tarde. Ela passava  ligeira, chegava a fazer zip, zip, zip, com o rabo. Até diziam que era um muçu, sei lá...

Matei um rato, peguei a lata e botei assim uma jangarela de pau, de um jeito que ela não pudesse arrodear. Só poderia comer o rato passando por ali de um jeito que se entrasse não pudesse sair.

O rato ficou lá. Estava até podre, mas nesse tempo não se via urubu. A água era mesmo limpa. “E lá e veio ela”. Não sei se queria comer menino, sapo ou rato. Só sei que ela veio, entrou na lata, engoliu o rato e “foi se embora” levando a lata. Chamei meu marido.

__ “Vem vê, vem vê”. A cobra está indo embora com lata e tudo. Eu tirei o fundo e ficou ainda apertadinho que pra ela entrar não foi difícil, mas pra sair enganchou.

      A cobra era grande. “Era como daqui acolá”. Aqui em Itaituba todo mundo dizia:

__ Olha a cobra grande!

       Meu marido queria matar, mas eu não deixei, não. Então ela foi com a lata e tudo.

Meu marido foi entupindo o brejo, só ficou, mais lá pra frente, o tilinzinho onde dava pra quebrar o galho, lavava roupa, água limpinha era bonito demais.

            Depois de uns quatro anos, Mauro Torres, um jornalista de Santarém, que nesse tempo estava estudando, botou um papel escrito assim:

            __ “Cuidado com a cobra grande que está engolindo criança na região”. A tal cobra está enrolada com uma lata de leite Ninho da cabeça pra trás, um palmo, já para a calda. Não matem, pois queremos tirar a lata para ela poder se soltar.

            Ele botou este relato e eu nunca esqueci disso. Certo dia meu filho disse:

            __Mãe, eu vou entrar neste brejo para tirar umas varas de imbu “acolá”. Pouco depois ele voltou.

            __ Mãe, a cobra tá lá, Mãe.

            __ Que cobra menino?

            __ A cobra da lata.

            __ Pelo amor de Deus, meu filho não deixe ela sair não.

            Ao observar a cobra, notamos que do lado que estava a lata parecia que tinha engolido um sapo. Uma “barrigona grande”, “deste tamanho”. A lata já estava longe do pescoço dela, pois ela cresceu e engrossou, não sei... Só sei que gritavam:

            __ Vamos pegar a cobra pra tirar a lata. 

            Outros:

            __ Mas como nas vamos fazer?

            Eu disse, filho vai lá em casa buscar uma corda que nós vamos laçar. Nós laçamos a cabeça e depois um rapaz de coragem pula nela. Então veio um bocado de rapaz para laçar a cobra e tirar a lata.

            Parece que ela era da cor de salamandra, não vi direito, pois ela estava toda dentro d’água. Eu não entendo de qualidade de cobra, só sei que não era jibóia. Fui em casa buscar arame para fazer uma armadilha sem escapatória, mas de repente, parece mentira, não teve mais recurso, ela fugiu.

            Passou, passou mais um bom tempo, um dia meu filho disse;

            __ Mãe será que a cobra da lata não está passando por ai? Eu vou caçar a bicha, e é bom a gente ajeitar e tirar a lata dela. Pelo menos a bichinha vai viver contente.

            Era tempo de chuva, subida das águas, quando meu filho chegou, bem ali, a cobra estava lá; com a maldita lata. As pessoas que moravam aqui até hoje ou outras que moram no outro lado da cidade, lembram bem deste dia. Todo mundo veio para ver a cobra da lata. Mas não tinha quem chegasse perto, de jeito nenhum e o povo gritava:

            __Como é que nós vamos tirar esta lata?

            __Não é para matar a cobra,não. (outros gritavam).

            __Deixa a lata aí que ela já se acostumou.

            Já está grossa de um lado e de outro. Diziam ainda outros.

            __ Mata a “bichinha’’ que ela está sofrendo demais com esta lata no corpo. (outro grupo exclamava).

             Foi então que chegou um caboclo da Amazônia, bebedor de cachaça “que nem diabo” dizendo:

             __ Se vocês me derem o dinheiro pra eu comprar um litro de pinga, eu pego esta cobra com a mão e tiro a lata dela .

             O caboclo, não sei se tinha oração... Saiu todo se requebrando e dali a pouco gritou:

            __Tá aqui a cobra Mauro.                                                 

            “Ataia daqui, ataia de lá”. Ele pulava, pulava em cima da cobra e com  ela se atracava {ele era da Amazônia}. E puxa daqui e puxa acolá. De repente ele boiou com um pedaço da lata na boca. Já estava toda enferrujada, só mesmo com a argola, aquele aro da lata. Esta argola era o que restava em torno da cobra, na barriga, um anel de um lado e de outro.

            O tumulto geral continuava e as pessoas gritavam :

            _Mata.

            __Outros: Não mata a cobra não.

             Só sei que ela,muito da ligeira,sumiu .

             Nunca mais tirei da minha cabeça a cobra da lata.Eu que era doida pra tirar a lata da cobra da lata ,acabei enfiando a cobra com a lata e tudo na minha cabeça.e mais aquele caboclo doido,que tirou a lata da cobra da lata.

             Um tempo veio um pessoal pegando cobra para estudo, mas muitos morreram. Eu mal dormia preocupada com a cobra da lata .No fundo me sentia culpada  porque ela nunca namorou , nem possuiu família, tudo por causa da lata que a tornou diferente das outras cobras, tadinha. Então fiz uma prece a Deus e pedi um sinal da cobra da lata. Pois não é que em agosto na subida das águas de novo a cobra da lata apareceu. Mas sem a lata, né. Só com o sinal, uma cintura. Apareceu com o seu companheiro, ela encontrou o amor. Era tardinha, o sol avermelhado, no passo pra anoitecer e o casal descia o Tapajós à abaixo, conforme tinha que ser, e eu encontrei  alívio e paz.

Atiana Gomes e Mara Nascimento