MERCADO SEXUAL E TRABALHO: UMA APROXIMAÇÃO PARA COMPREENDER RISCOS E EXPLORAÇÃO [1]

Por Estela Márcia Rondina Scandola[2]

Palavras-chaves: Mercado Sexual, Trabalho Sexual, Exploração Sexual.

Vivemos em um mundo de contradições econômicas, políticas e culturais. Pensar sobre elas às vezes é muito dificultoso. Por exemplo, como numa região com tanta riqueza, como o Centro-Oeste brasileiro, temos tanta miséria e políticas públicas tão ruins? Como temos tantos serviços disponíveis das políticas públicas e temos tanta gente sem atenção?  Por que em tempos de tanta “liberdade sexual” temos aumento de mercado sexual? A resposta para essas perguntas é mesmo pensar que elas estão elaboradas a partir do senso comum, ou seja, não expressam o que há de fato na realidade. Somos uma região que a riqueza está nas mãos de poucos; os serviços das políticas públicas ainda têm o viés clientelista e caritativo; na prática não há serviços de qualidade para a população; e a tal liberdade sexual ainda é uma falácia porque está baseada no patriarcado, no poder de homens adultos e muito pouco caminhamos para compreender e libertar mulheres, crianças e jovens. É a partir desse olhar, comprometido com a luta por direitos humanos integrais, indivisíveis e comprometido com a história dos grupos mais oprimidos e discriminados, que expressamos o pensar sobre a relação entre trabalhadoras sexuais e o enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes.

Uma influência que tenho, sem dúvida, é das mulheres trabalhadoras sexuais. Estar com elas em diferentes espaços – nas ruas, nas boates, nos eventos – dirige meu olhar para situações nas quais eu não tinha pensado. Conviver com Rosarina do Ceará e Lourdes de Belém, mulheres que são protagonistas, além de minha decisão permanente de ouvi-las, exercitar a alteridade, compromete totalmente meu pensar e minha fala, quiçá guie sempre meu agir.

Meu primeiro exercício foi mesmo pensar como eu devia me referir às mulheres que estão trabalhando no mercado sexual. Eu fui a Cuba, em 2003, e me encantei com a presidenta da Federação Latino-Americana de Trabalhadoras Sexuais. Naquela mesa composta com aquele povo importante da Organização Mundial de Saúde (OMS), da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), com Fidel Castro – que depois falou três horas e meia e a gente com fome –, com aquele povo todo, do alto da sua representação, ela começou a fala dizendo assim: "Yo no soy una nochera, yo no soy una quenga, yo no soy una esquinera, yo no soy puta, yo no soy una dama de la noche, yo no soy acompañante de hombres... Yo no soy esto o aquello; yo soy una mujer. Yo soy una mujer trabajadora, yo soy una mujer trabajadora del sexo." Estou convencida de que esse tratamento me identifica com as mulheres e alumia uma compreensão do mundo do trabalho a partir das próprias mulheres que estão no mercado sexual.

Uma primeira reflexão para nós pode ser entender que aquilo que é trabalho para uns não é trabalho para outros. Vamos fazer um comparativo, por exemplo, com as mulheres trabalhadoras do cuidado doméstico de sua família. A mulher trabalhadora cuja atividade é atender às necessidades de reprodução da família, que é aquela que cuida dos filhos durante longo tempo, quando vai fazer um crediário, alguém pergunta: "Você trabalha?". Ela fala: "Não, não trabalho!" Por quê? Porque é um trabalho que, embora tenha valor, não é colocado preço. Também não há registro formal do trabalho e, assim, mesmo cuidando do desenvolvimento pessoal de crianças, jovens e mesmo do esposo, isso não é considerado trabalho pelo conjunto da sociedade.

Na história, o trabalho foi sendo consensuado como aquele que tem preço, que faz o mundo financeiro girar. Aquele que não faz o mundo financeiro girar, embora garanta a reprodução deste próprio mundo, não é chamado de trabalho. Há outro jeito de olhar que é importante para a discussão do trabalho sexual: o trabalho que a sociedade quer que seja trabalho, e, portanto, legaliza-o – aquilo é trabalho. Geralmente a legalização desta ou daquela atividade como profissão tem a ver com arrecadação de impostos.

Aquilo que a sociedade não legaliza e não é considerado trabalho legalmente, não tem a ver se traz ou não desgaste ao trabalhador e à trabalhadora que o realiza.  Observamos que há o trabalho que a sociedade define como tal e há o trabalho que a lei define. E existe trabalho que a sociedade, no senso comum e no acordo moral, social e de manutenção da ordem, não o vê e a lei não o reconhece. Estaria aqui o caso do trabalho sexual?

Um dos pressupostos fundamentais para o capitalismo sobreviver é de que há pessoas que vendem a força de trabalho para as que têm os meios de produção. É sobre o preço pago pela força de trabalho e o preço da mercadoria que ocorre o lucro – este enriquece alguns; outros continuam vendendo a força de trabalho e não conseguem repor suas forças. Daí, sempre a manutenção da ordem entre os que vendem e os que lucram. Quem coloca o preço na força de trabalho, não é a trabalhadora, mas o comprador que, no nosso caso, é o mediador (o dono da casa) entre quem compra o serviço sexual (o cliente) e quem vende (a trabalhadora sexual).

A Lourdes falou: "Eu não vendo meu corpo. Se eu estivesse vendendo meu corpo, não tinha mais cabelo não tinha mais nada. Eu vendo fantasia." É essa venda de fantasia que utiliza a força de trabalho e causa desgaste às trabalhadoras, seja do seu corpo, da sua mente, e vai influenciando sua vida como ocorre com outros trabalhadores de outras cadeias produtivas, como a relacionada ao frigorífico. O frigorífico de frango contrata mulheres porque as mulheres foram educadas para terem mais destreza com trabalhos que exigem detalhes. O frango que compramos no supermercado, a sobreasa, leva nove cortes para ficar pronta e assarmos na churrasqueira. São as mulheres que fazem esse trabalho e precisam de alta concentração para atingir as metas colocadas pela velocidade da esteira. As mulheres contratadas para esse trabalho, geralmente a partir de seis meses, vão desenvolver Lesão por Esforço Repetitivo (LER) e vão ficar inválidas. A partir daí não poderão mais atuar naquele trabalho e, em alguns casos, em nenhum outro. Ficam lesionadas no corpo, ficam tristes e às vezes a alma adoece, e aí os problemas do trabalho atingem toda a sua vida e sua família de forma bastante impactante.

A diferença entre essa trabalhadora do frigorífico e a trabalhadora sexual é a forma como a sociedade “valora” moralmente o uso do corpo. Uma mulher trabalhadora no comércio sexual vai usar todo o seu corpo sexuado. Algumas vão beijar, outras vão ter relações sexuais penetrativas vaginais, outras anal, outras vão fazer sexo oral, outras vão abraçar e outras vão ficar do lado do cliente, conversando com ele, acompanhando-o no restaurante, fazendo striptease. A trabalhadora sexual utiliza muitas partes do corpo, planeja o seu trabalho, desenvolve diferentes técnicas e utiliza grande criatividade para cumprir as metas acordadas com o cliente e com o dono das casas. No caso do corpo das mulheres que fazem as sobreasas, todo ele é utilizado para dar sustentação aos braços e mãos que vão se movimentar para os cortes. Toda a possibilidade de criatividade é malvista, pois pode atrapalhar a padronização do trabalho e o corpo integral não é percebido como sendo um ser vivo, mas apenas um fornecedor de força de trabalho que exige habilidades físicas, desconsideradas as mentais.

A valoração da honra do trabalho, apregoada em muitas situações discriminatórias contra as mulheres trabalhadoras do mercado sexual, está ligada à moral dominante de manutenção dos órgãos sexuais das mulheres à reprodução, ou seja, a manutenção da espécie a partir da decisão masculina de quem são as mulheres “honestas”, aquelas que dispõem do corpo sexuado para os homens, enquanto eles dispõem conforme lhes convém sexualmente. Isso resulta na negação do corpo sexuado para todo o restante do viver.

Assim, a questão central dos problemas morais dominantes com a prostituição nada tem a ver com vender uma parte ou vender outra parte: tem a ver com o uso do corpo sexuado. Tanto faz a mulher que corta frango quanto a mulher que está na rua e vai fazer um programa sexual. A discussão sobre o uso do corpo é, na verdade, moralizante, consagrando umas partes e amaldiçoando outras. Há diferença no valor sagrado do braço e da vulva, no desgaste do corpo sexuado integral e por partes, na destinação do uso da criatividade.

A ideia de discutir prostituição a partir do mundo do trabalho é reconhecer, como premissa, que temos feito muito pouco nesse campo. O trabalho sexual como uso do corpo sexuado criativo incomoda a nós todos/as, pois significa repensar o que na nossa vida fomos forjados em sensos comuns e pré-conceitos sobre o mundo da prostituição, a honestidade, a honra, os papéis sexuais em que fomos formados.

Pensar a partir do trabalho é pensar as contradições do mundo do trabalho que podem trazer desgastes diversos, mas também podem ser a centralidade do viver, a identidade do ser social.  Todo trabalho precisa ser estudado no seu contexto específico. Falar da prostituição como se fossem todos os ambientes, locais e modos de organização da mesma forma é um equívoco. Cada território da prostituição é uma especificidade da particularidade do mundo do mercado sexual.

Enfrentarmos as discussões sobre riscos e carga de trabalho é fundamental para estarmos juntas e avançarmos em prevenção e proteção ao trabalho. Não há como não dimensionar de forma diferente a carga de trabalho das mulheres que vão atender em garimpo, levadas por um barco ou avião e que somente poderão sair quando terminar o período contratado, diferentemente de cinco a oito mulheres que alugam uma casa, combinando as regras do local com demanda espontânea de clientes, anúncios em jornal ou internet. São dois locais de trabalho com carga de trabalho e autonomia sobre o processo de trabalho muito diferentes, muito embora possam guardar similaridades como riscos físicos e biológicos. Mesmo esses riscos existindo nos dois casos – sífilis e espancamento –, a forma de enfrentá-los é diferente a depender das relações de trabalho em ambos os casos.

Todas as profissões têm desgaste: as assistentes sociais e as professoras com o desgaste emocional; os trabalhadores da construção civil com o desgaste físico... Mas em todas as profissões, os trabalhadores regulam o sofrimento e o desgaste. Isso é a essência da sua humanidade. É no trabalho, em muitas situações, que há o encontro com o prazer. Conversar sobre prazer, sofrimento, riscos, regulação do sofrimento e dos riscos precisa ser a tônica da discussão quando essa é feita sob a ótica da saúde do trabalhador e este inserido num mundo de contradições e possibilidades.

As doenças causadas em professores podem e devem ser estudadas. Mas também o significado para essas trabalhadoras sexuais é tão importante quanto os riscos do trabalho. Se de um lado há os problemas de visão, varizes, estresse, do outro existem as relações que se estabelecem, os resultados do trabalho... Para o policial, o risco de vida e a satisfação quando se soluciona um problema de violência... Para compreender o impacto que o trabalho traz na vida das pessoas, é preciso conhecer o modo como as pessoas trabalham, o seu meio, a forma como a sociedade vê o seu trabalho. É preciso conhecer o trabalho das pessoas a partir da ótica dos trabalhadores e trabalhadoras daquela profissão. Por isso, ouvir as trabalhadoras sexuais é o fundamento do que precisamos conhecer.

Compreender o mundo da prostituição não é para fazer uma especialização, um mestrado e ter um título. É preciso que seja para apoiar os grupos e organizações de trabalhadoras sexuais para melhorar suas condições de trabalho. É fazer o encontro de quem está fora com quem está dentro. É fazer com que luzes sejam lançadas dos dois lados para iluminar o mercado sexual com o que já temos conhecido e iluminar quem estuda com a realidade, com o pé no barro. Não pode ser uma discussão linear de sim e de não, mas uma construção complexa de conhecimento de várias ordens, com fundamento, sobretudo, a partir da fala das trabalhadoras sexuais. 

Há uma reportagem da revista Superinteressante que é aberta com um depoimento: "Todos os dias de manhã eu levanto e penso – vou sair dessa profissão. Aí saio pra rua, ganho a liberdade, ando o dia inteiro na rua, volto cansado pra casa e penso – amanhã eu saio dessa profissão." Quem assina essa frase é um motoboy. E é muitas vezes um discurso que a gente ouve das mulheres, do digitador, da telefonista. Ou seja, não é somente a prostituta que às vezes quer dar um tempo no trabalho que faz. Outras profissões estão cheias de gente que quer mudar de profissão. Mas também outras profissões nas quais as pessoas se sentem impelidas a continuar são dores, prazeres, incertezas, ideias, sonhos.

É na conversa entre pessoas que estão envolvidas no mercado sexual que vamos conhecendo os riscos e as formas por meio das quais estão regulando-os. Em outras categorias os ricos podem ser físicos, biológicos, químicos, psíquicos... E no trabalho sexual, quais os riscos? Vamos fazer um exercício.

  • Pode ser infectada por diferentes fungos, bactérias, vírus. Que tipos e em quais   ambientes?
  • Que produtos utiliza para a sua higiene? Que substâncias psicoativas utiliza ou é obrigada a utilizar pelo cliente, pelos donos das casas?
  • Que violência física sofre? Leva porrada? Que tipo de fantasias têm os clientes sobre sexo? Que exigências físicas e psíquicas lhe impõem?
  • Quanto precisa trabalhar para ter o mínimo para as necessidades? Quais as condições de negociação dos valores dos programas? Com quem divide?
  • Como prepara o corpo para o trabalho? Como repõe a força de trabalho e a criatividade?
    • Quanto de autonomia tem frente ao mercado sexual, ao dono da casa ou da rua, frente ao cliente?

Perguntas como essas poderiam melhorar nossa capacidade de medidas protetivas no trabalho sexual. Mas o fundamento é mesmo conhecer as relações de poder que estão presentes nesse mercado de trabalho, sobretudo, quem regula o número de programas a ser feito? Maria Benguela[3] com certeza não regulava.

No trabalho realizado na antiga Rodoviária de Campo Grande,[4] onde circulam em baixa temporada de pesca em torno de 120 mulheres, além das abordagens, atendimentos, encaminhamentos e acompanhamentos aos serviços das políticas sociais, realizamos as oficinas que vão de 40 minutos a 2 horas a depender do assunto, do dia e do horário que temos disponíveis (elas e nós educadoras). O trabalho já vem na rua desde 1993, mas na então Rodoviária e seu entorno somente a partir de 2002. São mundos muito diferentes: da avenida Costa e Silva, das ruas centrais, dos bares e boates, no bairro Nova Lima e na antiga Rodoviária. Cada local tem uma dinâmica muito diferente. Vou me deter aos nossos aprendizados na antiga Rodoviária sobre os riscos no trabalho.

As oficinas foram feitas somente com mulheres, muito embora também circulem naquele espaço os meninos e algumas travestis esporadicamente. Nós queríamos, na verdade, numa sapiência acadêmica, saber o que elas conheciam de riscos para o HIV, na medida em que é o Programa de DST/HIV/Aids que apoia financeiramente o projeto. Radicalizamos na metodologia de ouvir as mulheres, muito embora a humildade científica não tivesse sido vivenciada por nós. A política nacional e os discursos midiáticos tinham formado em nós a ideia da Aids como o perigo para as mulheres no trabalho sexual. Fizemos inicialmente uma atividade na qual uma mulher entrevistava a outra sobre os riscos no trabalho e ao final realizamos as oficinas para conhecer os resultados. Oitenta mulheres tinham sido entrevistadas. As anotações estavam em cadernos e lembranças das conversas com as demais do território. Os dados levantados por elas e lançados num quadro foram a partir do maior para o menor medo, apreensão, preocupação. Obtivemos as seguintes informações:

a. esgano – medo de sair com um desconhecido de quem não se conhece as práticas sexuais desejadas; também é difícil se livrar do cliente depois que está sozinha com ele; menor força que o cliente e a impossibilidade de se defender fisicamente; mesmo quando conseguem se livrar da situação não conseguem fazer a denúncia para livrar outras da possibilidade;

b.reconhecimento por parentes e conhecidos – um número significativo informa a familiares e vizinhos que exerce outras profissões (o que também é verdade) e fica o tempo todo do trabalho preocupada em ser “encontrada” por parentes, vizinhos e outros conhecidos, o que poderia trazer sofrimento, especialmente a filhos e pais; nesse caso, especificamente com os filhos, o medo de perder a guarda por causa da profissão;

  1. c.  Gravidez – tanto do companheiro fixo quanto do cliente; a gravidez aparece como uma possibilidade pós-violência sexual, como exigência do cliente de não-uso do preservativo e do cliente por um ‘descuido’; gravidez significa não-trabalho, não-renda, não-aceitação em casas e boates, como também a perda de clientes;

d.HIV – incerteza sobre o futuro, medo da discriminação, da morte e também a dificuldade de continuar no trabalho.

Ouvir as mulheres diverge muito do que vemos na televisão, que é um dos principais veículos de disseminação de notícias e que padroniza o Brasil a partir de São Paulo e Rio de Janeiro, sedes das redes de televisão. Nos meios de comunicação, a prostituição aparece geralmente nas reportagens sobre violência e nas novelas. Nas novelas especificamente há uma predominância do glamour das casas de prostituição e, sendo elas servindo às burguesias de cada época, isso vai formando uma ideia de que as mulheres ou são destituídas de qualquer poder, portanto, completamente a mando das cafetinas ou são glamourosas e sempre contentes com o trabalho. A ideia maniqueísta do sim ou não de estar na profissão precisa ser colocada sob a ótica do trabalho. Também em outras profissões há contradições e o sair ou o ficar depende das condições de trabalho. Colocar essa questão para o mundo da prostituição e não analisar o contexto é revitalizar o preconceito moralizante: se fica é porque quer, se sai é porque é honesta e só estava na prostituição para sustentar a família. Em muitas situações ainda há o reforço do homem bom que tirou uma prostituta do mundo do pecado, mesmo que isso ocorra de forma subalternizada, lhe conferindo o cargo de amante.

É preciso fazer uma radicalidade objetiva, reconhecendo que a neutralidade é impossível para compreender as diferentes formas que o mercado sexual se apresenta e a presença de trabalhadores e trabalhadoras em diferentes funções. Não é uma discussão se deve ou não existir mercado sexual, mas o reconhecimento da sua existência como integrante da sociedade, independentemente do juízo de valor que se queira fazer. E que o mercado de trabalho visa sempre ao lucro e à exploração da força de trabalho.

No caso do mercado sexual, muitas vezes, as trabalhadoras mulheres jovens, crianças, adolescentes são a própria mercadoria, ou seja, alguém lucra com o seu agenciamento, com a sua venda. Mas compreender isso implica mudar a forma como as políticas sociais agem diante do mercado prostitucional. As mesmas condições que temos em outros mercados acontecem também nesse. A mulher que está ilhada em um lugar de difícil acesso ou num barco pesqueiro no Pantanal tem a mesma descrição de escravidão moderna de um grupo de homens aliciados para o trabalho de destoca e passagem de agrotóxico sem condições de moradia, alimentação e transporte.

As políticas sociais reproduzem os valores morais hegemônicos. Aos homens do trabalho legalizado e considerado honesto há a atuação de diferentes órgãos como o Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho (OIT), Ministério da Saúde. Para as mulheres do trabalho, não-reconhecimento social e legal. Só restam a elas as organizações da sociedade civil para lhes acompanhar à Delegacia de Polícia se houver hematomas e quase nunca poderão reclamar direitos trabalhistas. O Ministério da Saúde só vê as trabalhadoras do mercado sexual pela ótica da Aids, o único setor que, embora diminua a atuação, ainda faz algumas ações de reconhecimento.

As mulheres que são trabalhadoras do comércio sexual são mulheres batalhadoras e precisam ser compreendidas em todas as suas dimensões e direitos em saúde pelo SUS. O Ministério do Trabalho e Emprego precisa começar a olhar o comércio sexual como um lugar de trabalho que precisa ser também observado sob a ótica da legalidade e das condições em que essas mulheres estão atuando.

Aprofundar o conhecimento sobre o mercado sexual torna-se uma exigência importante para trabalharmos com esse mundo visando à garantia dos direitos dos seus/as trabalhadores/as. Sabemos que temos, até o momento, três lados: o dono do comércio, os trabalhadores do comércio e os clientes desse comércio. Esses três lados têm diferentes formas de apresentação na sociedade. Junto com as mulheres, já conseguimos identificar nove tipos de apresentação do mercado sexual com prostituição.

1.Casas tradicionais que dividimos em três tipos: as que atendem pessoas muito ricas, as que atendem pessoas de nível médio, funcionários públicos, e as casas de prostituição que fazem o programa “de R$ 5,99". Nós identificamos essas casas muito presentes ainda. É a casa que ainda coloca luz vermelha na frente. É a casa que o caminhoneiro na beira da estrada ainda para. É a casa onde o peão de fazenda frequenta.

2.Comércio da internet individualizado, que pode ocorrer para agendamento de programas com encontros pessoais, sendo o mais comum a utilização de salas de bate-papo.

3.Turismo com trabalho sexual agregado, ou seja, um grupo de turistas vem e as mulheres vão servir àquele grupo, seja em casas e pesqueiros que os turistas alugam, seja em agências que propiciam hotéis, locação de casas e as próprias mulheres. Geralmente não há contratação das mulheresem grupo. Elassão convidadas individualmente.

4.Boates e uisquerias (muitas são casas de prostituição tradicional chamadas de boates, mas outras têm a centralidade do trabalho nos shows e venda de bebidas). Nesses locais, não fica muito explícito quais são as atividades que vão ser executadas dentro da boate. O trabalho das mulheres vai desde fazer o show, cantar, fazer striptease. Nesse caso, pode ocorrer agenciamento para atender sexualmente os clientes ou não. Em alguns lugares são encontrados quartos contíguos ou poderá ir para outro hotel/motel.

5.Casas de massagem – podem ser anunciadas como tal em jornais e informam que precisam de moças e não é necessário ter prática. Trabalhar nessas casas não tem regras muito definidas. É possível ficar nas casas para aprender o “ofício” e não receber pelos programas realizados.

6.Agências – têm formas diferentes de trabalhar e se adaptam para uma festa, um grupo de contratantes, um atendimento individualizado, ou seja, fica a serviço do cliente. Geralmente o contato é totalmente virtual, especialmente por telefone celular ou internet, inclusive o pagamento não ocorre diretamente para a mulher, mas para a agência.

7.Repúblicas que são experiência de trabalhadoras sexuais que se juntam numa casa, pagam o aluguel coletivamente e combinam as regras da casa. Nesse caso, mesmo sendo uma casa, não podemos considerar como local fechado para o trabalho, pois é de fácil abordagem.

8.Prostituição de rua, que é bastante tradicional e fica em locais já conhecidos pela população, podendo ou não ter cafetões/cafetinas agenciando ou sendo “donos/as” de uma região ou trecho.

9.Rituais Religiosos com atividade sexual. São situações de cárcere privado, de rituais religiosos vinculados a atividades sexuais. Ao tirar essa mulher desse tipo de atividade, é possível que ela fique contra a gente, ao invés de ficar a favor de ser libertada, porque ela acredita e foi levada a isso. Ela está completamente envolvida, prestando um serviço sexual ao sobrenatural.

Diante da diversidade de apresentação do mundo do trabalho sexual, há que se considerar ainda que é preciso aprofundamento em cada um deles e, entre eles, os diferentes públicos que podem estar presentes, podendo ser mais ou menos presença de mulheres mais velhas, jovens, adolescentes, homossexuais masculinos e travestis.

Nesses desafios que precisamos desenhar para todos nós, algumas perguntas poderiam guiar nossa prosa: qual sociedade nós queremos?; quais são as hipocrisias que precisamos enfrentar na sociedade?; Vamos continuar discutindo sexualidade a partir da reprodução ou também a partir do prazer?

Também precisamos nos permitir pensar a prostituição como um processo de trabalho que pode ser uma opção da pessoa, mas não pode ser a única opção. Precisa ter opção. Eu quero ser digitador, mas eu depois não quero mais ser digitador. Eu quero ser balconista, mas depois eu não quero mais ser balconista. Eu quero trabalhar no shopping, mas depois eu quero mudar de emprego. Ou seja, eu preciso dizer que eu trabalho no shopping, mas eu quero ser prostituta daqui a pouco. Eu quero ser uma garota de programa. Eu preciso que a prostituição seja uma opção de trabalho e não a única, em que se coloca um carimbo e nunca mais a pessoa passará a ser de outra profissão. Ou, se eu tiver outra profissão, eu quero ser uma profissional do sexo. Eu posso ter essa possibilidade de mudar e ter essa possibilidade de ir e vir na hora que eu quiser.

E, finalmente, penso que precisamos enfrentar a discussão dos riscos de cada trabalho e o encontro, nesse caso, do comércio sexual com o trabalho da criança e do adolescente. Aí, a discussão do adolescente vai ficar mais fácil. Porque, se queremos o/a adolescente como uma pessoa em desenvolvimento e queremos que a nossa juventude e as nossas crianças tenham vida plena – não vida plena na visão moralizadora, cerceadora dos direitos sexuais, mas vida plena em que sentimos que as pessoas querem ser felizes, que os adolescentes querem ser felizes, querem ser protagonistas da sua história –, se concebermos a prostituição como trabalho, vai ficar mais fácil desenhar que trabalho é, que impactos traz ao desenvolvimento saudável da sexualidade de crianças e adolescentes.

Os riscos do trabalho sexual, especialmente aqueles psicológicos, são decisivos para nos posicionarmos contrários à presença de crianças, adolescentes e jovens no mundo do trabalho sexual. Mas é exatamente esse público que mais é requisitado, posto que a decisão de quem entra ou não nesse mercado não é da trabalhadora, seja ela criança ou adulta, mas do cliente. Então, se vamos ter meninos ou meninas, a idade deles e delas não está colocada como autonomia. O que vai ser oferecido, como será o trabalho, o tipo de serviço que será oferecido não é de autonomia da mulher, como já conhecemos anteriormente. No caso da infância e juventude, muito menos ainda isso será acordado. É sempre o mercado que regula a demanda e busca a oferta de trabalho sexual. É no mercado que se processa o convencimento do trabalho como satisfação. No caso do mercado sexual, a ideia do glamour desconectada das condições e relações de trabalho tem prejudicado a compreensão das contradições existentes e mantenedoras das assimetrias entre trabalhadoras e donos do mercado de trabalho.

Não é possível aceitar que crianças, adolescentes e jovens consigam negociar condições de trabalho, regular riscos e façam o enfrentamento das adversidades desse trabalho. Por isso é papel dos adultos a sua proteção. E, sem dúvida, a melhor parceria que podemos ter são os adultos e adultas que são trabalhadores/as desse mercado sexual. São as mulheres organizadas que vão poder trilhar os caminhos e indicar os passos. Qualquer ação sem as mulheres que estão trabalhando no comércio sexual poderá, de novo, ter um conjunto de intenções distantes da real necessidade e com um olhar a partir de quem não vive o problema...

Não haverá mudanças nessa realidade se não for a partir de quem vive nessa realidade e queira mudá-la!

Publicado em 14/09/2012

in www.ibiss-co.org.br



[1] Texto elaborado a partir dos debates ocorridos no colóquio “Os profissionais do sexo: contribuindo para o enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil no Brasil”, ocorrido em Goiânia (GO), nos dias 13 e 14 de abril de 2005, integrante do projeto Invertendo a Rota.

[2] Assistente social, doutorandaem Serviço Social pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e Universidade Federal de Pernambuco -UFPE (Brasil). Especialista em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana.

[3] Maria Benguela é uma personagem da novela Chica da Silva, escrava negra que atende num quarto dos fundos da taberna. Ela é encarregada de “tirar o cabaço” dos rapazes do tijuco. Numa das cenas marcantes, o dono da taberna diz: “Maria Benguela, tem mais um aí e é um cliente especial.” E ela falou: “Mas eu já atendi oito hoje, tô tão cansada...”. E o dono da taberna responde: “Trabalha pra mim e vai atender quantos eu quiser!”

[4] Com a inauguração de um novo terminal, a rodoviária à qual nos referimos neste artigo foi desativada em 2010.