MEMÓRIAS

 

Mais um ano está chegando ao fim.

 

 

Como todos os anos, este é tempo de reflexão, tempo no qual somamos os pontos ganhos e deduzimos os erros cometidos; mas principalmente, deve ser o tempo no qual tomamos as grandes decisões e traçamos os caminhos do futuro.

 

Quando era criança, nestes dias de fim de ano, mais do que nunca, o espírito de Natal, da renovação, do recomeço, marcava nossas vidas.

 

A história do nascimento de Jesus, com o edito de Herodes, os soldados romanos, a estrela de Belém, a manjedoura, os pastores, tudo era repetido e enfeitado, ano após ano, e cada vez tinha gosto de novo.

 

Saíamos no frio, para recolher o musgo, que enfeitaria o presépio; recortávamos estrelas e mais estrelas em folhas de papel azul, para formar o Céu; aprendíamos uma poesia, para recitar no almoço de Natal.

 

Mas uma coisa era muito importante e levava grande parte de nosso tempo.

 

Naquele tempo não conhecíamos o Papai Noel.

Diziam que Papai Noel só falava inglês, e não entenderia uma palavra do que escrevêssemos.  Nosso entregador de presente chamava-se "Befana" - era uma velha corcunda, desdentada e verruguenta, que vivia nas montanhas e nunca aparecia - salvo no dia da Epifania, em 6 de janeiro, quando trazia presentes - para as crianças boas e sacos de carvão - para quem tinha sido mau.

 

Tínhamos que escrever à Befana lindas cartas, passaporte indispensável para receber os presentes.

 

Os adolescentes, os adultos e quase todos os pobres de qualquer idade, estavam dispensados, porque não ganhavam presentes. Nossos brinquedos antigos eram recolhidos pela Igreja, que os consertava e sorteava entre as  crianças pobres. Gostávamos disso e sentíamo-nos importantes.

 

A coisa mais difícil, nesta época, era escrever a bendita carta.

 

Segundo a tradição, devíamos primeiro contar todas as maldades cometidas durante o ano inteiro. E isso incluía os pecados, e até palavras e pensamentos errados. Era um exercício e tanto.

 

Criança não lembra nem o que fez uma semana antes, imagine lembrar o que se fez no ano inteiro.

 

Além disso, você se lembra muito bem das coisas boas que fez - quando ajudou a carregar os pacotes da senhora do apartamento em frente, quando tirou o gelo da soleira de sua casa, quando foi buscar os charutos para o seu pai na tabacaria.

Mas parece que a memória pára de funcionar, quando se trata de lembrar, por exemplo, que você esticou uma perna enquanto seu primo passava, para deixá-lo estatelado no chão; ou então, que  aquele bonito apontador da sua amiguinha que sumiu de repente, caiu por engano no seu bolso.

 

Os seus pecados que os outros descobriram, não têm mais importância, já estão descontados; você passou vergonha, apanhou, ficou de castigo, enfim, pagou o mico.

 

Mas contar aqueles que ninguém conhecia ou imaginaria, era um páreo duro.

 

Mas era a lei: a carta perderia seu valor, se não fosse contado tudo, tim-tim por tim-tim.

 

A contabilidade da Befana conferia todas as nossas declarações com o misterioso e implacável diário dela e qualquer diferença acabaria com os presentes.

 

Esquecimentos não adiantavam. Precisava escrever tudo.

 

Por isso fazíamos questão de escrever as nossas cartas juntos, a quatro, a seis, a oito mãos, ajudando-nos uns aos outros a lembrar dos nossos pecados.

 

E aí, de repente, as palavras brotavam, começávamos a escrever com boa vontade, e nos tornávamos sinceros e humildes; tanto que, no fim, o gosto de esperar pelos presentes valia menos   que a satisfação de termos liberado os nossos pequenos segredos.

 

Claro, que não entendíamos, na época, o que estas cartas significavam. Só viemos a perceber seu valor muito tempo depois.

 

Como seria bom se fôssemos todos obrigados – nós, os adultos - a escrever as nossas cartas, ao menos uma vez por ano !.

 

A segunda parte da carta era ainda mais complicada.

Imagine tornar-se um Aladim, esfregando a lamparina mágica, vendo aparecer o Gênio e podendo escolher e pedir apenas dois brinquedos, entre uma centena.

Uma bicicleta nova? Um trenzinho elétrico? Um jogo de montagem mecânica?  Um conjunto de ferramentas de carpinteiro ? Um carrinho de mola? Um pequeno planador de madeira, que voa de verdade? Um par de patins? Um conjunto de lápis de cor?

 

Nas nossas escolhas, nunca dávamos chance ao espírito prático.

 

Pedíamos a bicicleta ou o planador ou os patins, sem lembrar que até abril haveria neve e lama no chão, e um frio de arrepiar.

 

Ou aquelas lindas ferramentas, que eram apenas um arremedo das verdadeiras, e que só serviam para você se machucar e frustrar sua propensão para qualquer atividade manual.

 

Mas sempre pedíamos, com fé, com a certeza de sermos atendidos, porque esta "montagem" da expectativa, entre a criação do seu pedido e a chegada do presente, é, na verdade,  o que mais vale, o que mais interessa.

 

Está tudo na nossa mente - e no nosso coração.