Passamento singular: Minha Mãe

Ainda me lembro, como se fosse hoje, com riqueza de detalhes, do dia em que minha mãe me relatou os últimos dias de vida de sua mãe. Ela contou essa história com os pequenos olhos cobertos por um brilho que não era habitual, assim como a história também não era comum. Ela começou falando do dia 17 de abril de 1942, o dia da morte de sua mãe, Josefina Carioto, aos oitenta e cinco anos ? depois de uma enfermidade de cinco meses, na casa onde viveu por sessenta e seis anos. E foi narrando...
Durante a enfermidade, minha mãe foi exemplo de fé e de resignação a todos que com ela conviveram, especialmente aos seus cinco filhos, nos quais deixou uma marca indelével.
Tudo começou num certo dia de setembro de 1941, quando minha mãe apareceu na porta de minha casa. Ela não agiu como de costume. Dessa vez, ela entrou e logo sentou-se, mesmo antes de tirar os tamancos. Surpreendeu-me vê-la tão séria. Parecia abatida, cansada e afobada. Ofereci-lhe um café, um chá, mas ela rejeitou-os. Conversamos um pouco sobre "il nostri afari" como se dizia no dialeto italiano; depois ela falou com voz e olhar trêmulos que aquela talvez fosse a última vez que iria em minha casa. Perdi a voz por alguns minutos. Estaria brincando comigo; minha mãe estaria ficando "caduca"? Não, minha mãe, não. Perguntei se ela estava sentindo alguma coisa. Ela disse que sentia sim, mas não era dor; o que ela sentia é que viveria pouco tempo... "Ontem, durante todo o dia, ouvi o sino bater. Parei para escutar. Depois ouvi de novo. Dava uns intervalos, depois voltava a dar umas badaladas e continuou assim todo o dia. Meditei sobre isso e percebi que está acontecendo exatamente como o missionário preconizara: Que chegaria o dia em que eu ouviria badaladas muito agudas. Soariam num momento em que eu estivesse prestes a sair deste mundo. Assim, eu poderia ficar sabendo quando seria o aviso certo. Vou aguardar, ficarei atenta. O meu dia não está longe. O meu tempo já passou e não tenho com o que me preocupar... Sinto que meu dia está próximo... Deus está me alertando... E só me resta agradecer pela vida que tive e pela idade que tenho. A boa saúde me permitiu chegar até aqui; agora só me resta esperar e aceitar meu destino..." Levantou-se e foi saindo, com sua bengala na mão. Quis acompanhá-la, mas ela preferiu ir sozinha.
Pouco tempo depois, manifestou-se uma enfermidade no abdômen, que para os recursos médicos da época não havia cura, apenas calmantes para aliviar a dor. A tudo ela aceitou com calma e resignação.
Muitas vezes, a ouvi dizer que não queria que nos preocupássemos, nem que partilhássemos as suas dores, porque cabia a ela sofrer.
Católica praticante que sempre foi, aceitou o alerta da morte com calma e serenidade, como sendo a sua sina. Sentia-se segura na proteção Divina. Acalmava-se na companhia dos filhos, noras, genros e netos; para todos parecia ter um lugar em seu coração, porém eu percebia que havia uma pessoa da família com quem ela confidenciava: Inês, sua única nora, e com quem sempre morou.
Nas enfermidades, ela preferia ser assistida por essa nora, cuja paciência era sua característica principal. As duas foram cúmplices em muitas situações e compartilharam bons momentos da vida, sempre com grande harmonia.
Na última semana de vida, debilitada, deixou transparecer coisas que acontecem no íntimo das pessoas que estão nessas circunstâncias. Eu estava assistindo minha mãe, em seu quarto, quando a ouvi falar:
- Que porta bonita, é linda, mas está sempre fechada!
E assim continuou a repetir, até que alguns dias depois ela exclamou que agora, sim, via a porta aberta. No dia seguinte, comentava que a porta era linda, mas não tinha ninguém para recebê-la, até que, de repente, ouvi-a dizer bem alto:
- Vejo, lá longe, vindo uma pessoa, vindo muito lentamente. Quem será?- Ah! É minha mãe- observou alto- chamando pela mãe que falecera há trinta anos: - Vem mãe, vem...
No dia seguinte, mais calma, dizia ver um senhor chamando-a na porta. Dizia ver uma mulher acenando ao fundo. "Tudo era muito belo!"
Dois dias antes, mamãe havia recomendado que "depois de amanhã" queria todos os filhos no quarto, com ela, na hora em que o sol se pusesse. Nessa hora queria despedir-se de todos, pois estava a caminho da eternidade.
Seu pedido foi atendido e, no dia 17 de abril, às seis horas da tarde, na hora do sol se pôr, estávamos todos lá ao seu lado, no seu quarto. A cama grande, o colchão de palha de milho cortava o silêncio da morte; as cortinas iam e vinham embaladas pelo vento. As paredes brancas pintadas por cal já desbotado, a capelinha numa mesinha ao lado e mais alguns objetos sacros trazidos pela Inês compunham o cenário da morte. E, no momento por ela indicado, exclamou que agora, sim, havia chegado a sua hora! Olhou para todos os que estavam no quarto: filhos, netos e outros amigos, apertou a mão de cada um, despedindo-se serenamente com um adeus! E, olhando para a nora Inês, pediu que lembrasse do que haviam combinado...
Inês, que tinha tudo preparado, pegou a vela, acendeu-a, pegou o crucifixo, o terço, alcançou-os a minha mãe, colocando a vela e o terço na mão esquerda e o crucifixo na mão direita.
Josefina, segurando-os, deu um suspiro, mais um, e, largou tudo... Restando apenas um profundo silêncio no quarto.
Minha mãe partiu... Deixou esse espaço e tempo. O tempo em que se ouvia o badalar dos sinos...
Por muito tempo eu fiquei com essa história na lembrança; sem saber ao certo se era verdade ou se era uma história inventada por minha mãe para impressionar aos filhos. Quando cresci, soube que era verdade. Hoje, quando me lembro desse relato e da emoção com que minha mãe contava essa história, me sinto insensível por ter duvidado de sua veracidade, pois a morte de sua mãe foi uma lição de como viver e como morrer. Até nessa hora, ela cumpriu com seu papel de mãe.

Texto escrito com base na história de Thereza Silvestrim Lovatto.