MEMÓRIA E HISTÓRIAS DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS NO PROCESSO EDUCACIONAL DE PESSOAS SURDAS NO MUNICÍPIO DE JEQUIÉ/BAHIA.

 

Autora: Lucília Santos da França Lopes¹

Universidade Norte do Paraná (UNOPAR)

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

Grupo de Estudo em Formação docente, territorialidade e infância (FORMATE/UESB).

 

Resumo: Este trabalho pretende iniciar um registro da memória e da história do uso da Língua Brasileira de Sinais no processo educacional das pessoas surdas no município de Jequié na Bahia, que durante muitos anos foi utilizada por professores ouvintes, não como língua na mediação simbólica dos surdos com o mundo, mas como método para ensiná-los a ler e escrever. Para tanto a coleta de informações, através de entrevistas filmadas com os próprios surdos, com os professores que iniciaram um trabalho educacional específico direcionado a este público de alunos e com familiares, é o instrumento usado para registrar a memória desta importante construção na comunidade jequieense, em formato de documentário, que de acordo com alguns autores a ação da prática fílmica documental como espaço de reflexão, criação, interpretação, representação e mediação de olhares sobre o mundo, torna possível estabelecer links teóricos e empíricos, possíveis, entre a utilização deste recurso audiovisual e o registro da memória de uma história muitas vezes tornada invisível pelos padrões de corpo, língua e cultura que legitima uns e não outros. A língua de sinais dos surdos brasileiros, só é reconhecida legalmente no ano de dois mil e dois, não obstante existe uma memória desta língua no país, que se perde se deixar de ser registrada. A pesquisa se debruça sobre pressupostos teóricos em torno da memória e história, cultura e língua, além de trazer autores que abordam aspectos sobre educação e formação das pessoas surdas no Brasil.

 

 

Palavras chaves: cultura, história, língua de sinais, memória.

¹Lucília Santos da França Lopes. Graduada em Filosofia pela UESC e graduanda em Letras pela UNOPAR, especialista em Administração Escolar pela UESC, atua como professora auxiliar de Língua Brasileira de Sinais na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB-Campus de Jequié-Ba, membro do Formate.  [email protected]

²Carla Souza Ferreira. Graduada em Letras pela UESB. Professora da Escola Estadual Reunidas Castro Alves, membro do Formate. [email protected]

No mês de abril do ano de dois mil e dois, a comunidade de pessoas surdas brasileiras conquista em termos de legislação um grande avanço nos processos sócio-políticos-educacionais, com a promulgação da Lei 10.436, que reconhece a Língua de Sinais do Brasil como língua oficial das comunidades de pessoas surdas, embora esta língua já fosse utilizada há muitos anos como forma de comunicação, expressão por surdos, seus familiares e professores em território nacional.

Diante desta conquista o país envida esforços para regulamentação da citada lei, através do decreto 5.626/2005, o qual prevê o uso da língua de sinais como língua de instrução educacional, sem, contudo explicitar o percurso metodológico e pedagógico desta ação e sem uma política linguística definida de convívio e ensino da Libras e da Língua Portuguesa no espaço educacional. Assim, as escolas que recebem alunos surdos em suas turmas vivenciam uma inquietante discussão sobre o trabalho pedagógico com a língua portuguesa e a língua de sinais, sendo que a língua portuguesa deverá assumir status de segunda língua, e a língua de sinais primeira língua.

Este convívio das duas línguas no ambiente escolar ocorreu muitas vezes de forma “vigiada”, pois sem uma lei que reconhecesse a língua de sinais dos surdos brasileiros, esta não era encarada como uma língua de estrutura linguística completa que favorecesse o desenvolvimento cognitivo dos usuários surdos, dificultando assim que a educação dos mesmos fosse realizada por meio dela. (CAMPELO, 2007, p.120).  

Este trabalho propõe um registro da história e memória deste processo no município de Jequié na região sudoeste baiana, através dos estudos na disciplina Língua Brasileira de Sinais, em formato de documentário fílmico, tendo neste recurso uma importante ferramenta de registro da história, na própria língua das pessoas surdas, pois sendo esta de modalidade espaço/visual e com um sistema de escrita que legalmente não substitui a língua portuguesa, necessita de um registro que resguarde a memória de sua própria história, para as gerações de crianças e jovens surdos, que em sua maioria nascem em famílias de pessoas ouvintes e não encontram em sua família, referencial para aquisição desta língua, desconhecem sua história e por fim não asseguram uma memória essencial para formação identitária e cultural dos seus filhos.

A pesquisa ocorreu no município de Jequié, através de um trabalho acadêmico dos alunos do curso de Letras do sexto semestre, turma que teve seu ingresso na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB, no primeiro semestre do ano de dois mil e nove.

Jequié fica localizada a trezentos e sessenta e cinco quilômetros de Salvador, possuindo em torno de 151.895 habitantes, com uma população de surdos estimada em aproximadamente 1.500 pessoas. Este município representa as políticas públicas de educação inclusiva do ministério da educação para a região sul e sudoeste, pois o mesmo é polo das ações de formação de professores e das orientações legais sobre a inclusão de pessoas com deficiência na escola regular.

Portanto o país não possui uma grande quantidade de trabalhos acadêmicos que registrem a memória do desenvolvimento do uso da Língua de Sinais nos processos educacionais das pessoas surdas nos diversos municípios dos estados da federação, nem nas escolas de Jequié, nem no Laboratório de Memória da Uesb, nem na Associação de Surdos da cidade, fator que impulsionou a atividade de pesquisa durante as aulas da disciplina Libras, pois os estudos desta língua deverão está intrinsecamente relacionados com o uso que a comunidade de surdos e as escolas fazem da mesma, de como o fazem e em quais condições.

“A língua delimita um território ideológico de enunciação saturado de valores e posicionamentos; a língua como arena de guerras discursivas constitui o sujeito social, sua subjetividade, seu lugar no mundo [...] Língua é ação sobre o outro, é poder e transformação”. (FERNANDES, 2009, p. 31).

Diante da ausência de registros sobre a história e a memória da língua de sinais na educação dos cidadãos surdos de Jequié, nos deparamos com a problemática da fragilidade no processo de transmissão da herança cultural que a comunidade surda poderia legar a outras gerações de surdos, aos professores ouvintes e ao município como um todo, pois, os surdos que fazem uso da Libras representam uma comunidade linguística minoritária, compreendida muitas vezes como pessoas sem narrativa histórica e sendo a língua de sinais de modalidade espaço-visual, não substitutiva da língua portuguesa escrita, a transmissão se dá na relação dos surdos adultos fluentes na língua, nas esquinas, praças e ruas da cidade em seus encontros informais.

Explicitaremos o percurso metodológico, desenvolvido para organização e realização do documentário fílmico, instrumento utilizado para registrar as narrativas da memória da Libras em Jequié.

1.USO, ENSINO E RELAÇÃO COM OS USUÁRIOS DA LÍNGUA DE SINAIS.

Atualmente as escolas contemplam o uso da língua de sinais em cumprimento a uma obrigação legal do direito dos surdos à acessibilidade (BRASIL/2000), sem incorporar, contudo, sua tradição cultura, memória e história, tomando como referência estas e outras questões éticas, pontuamos neste texto que os fundamentos do ensino da Libras nas licenciaturas da UESB/Jequié, se pautam nas discussões que se identificam com surdos que fazem uso da língua de sinais como primeira língua ou língua natural e com a cultura visual e buscam este reconhecimento social, motivando assim as razões deste estudo (FERNANDES, 2009).

No desenvolvimento deste estudo propomos iniciar uma pesquisa para registro da história da Língua de Sinais, no ensino aos surdos em Jequié, utilizando como metodologia o documentário fílmico, que de acordo com Lima (2009) et al, “a ação da prática fílmica documental como espaço de reflexão, criação, interpretação, representação e mediação de olhares sobre o mundo, torna possível estabelecer links teóricos e empíricos”, possíveis, entre a utilização deste recurso audiovisual e o registro da memória de uma história muitas vezes tornada invisível pelos padrões de corpo, língua e cultura que legitima uns e não outros.

Nesse contexto, durante as aulas da disciplina, elaboramos uma sequencia de leituras sobre esta importante ferramenta de registro que é o documentário fílmico, utilizando para este fim a obra da professora e jornalista Renata Farias Smith Lima, da UNIME/Itabuna, em seu livro Documentário e Turismo Cultural: Um olhar sobre Jorge Amado, no qual a mesma desenvolve um estudo detalhado sobre este importante gênero audiovisual, afirmando que o documentário com seus mecanismos de formas e conteúdos plurais veicula olhares sobre o mundo.

Foi realizado o estudo dos textos da obra citada de forma que a fundamentação teórica oferecida sustentasse a organização do roteiro do documentário que pretendia iniciar o registro da história da Libras na educação de surdos em Jequié, desenvolvendo assim o processo de construção do trabalho que se propôs a organização de dez eixos de investigação, incluindo como fontes de informação professores da sala de aula regular, professores especializados, gestores educacionais, intérpretes de Libras, estudantes surdos, seus colegas ouvintes, surdos adultos da comunidade e  pais de surdos.

A escolha pelo método documentário fílmico se justifica, pois sendo a língua de sinais de modalidade visual-espacial, VER o registro de sua história, para os próprios surdos e usuários ouvintes desta língua, se torna culturalmente mais eficaz do que outras formas de registro, pois durante a produção do material audiovisual, o mesmo proporciona condição do uso da Libras pelos surdos e da tradução para a libras da fala dos ouvintes entrevistados, reafirmando a cultural visual que envolve o uso da Libras.

A produção deste trabalho, contudo, exigiu dos seus produtores o uso do recurso fílmico por equipe especializada, para garantir a qualidade das imagens e evitar a perda de qualquer dado ou informação durante as entrevistas, para Colleyn, (1995) apud (2009) Lima, o olho mecânico da câmera amplia as possibilidades de registro técnico de mundo, para construir uma narrativa onde os planos são como letras de um texto.

Para elaboração da trajetória do documentário como recurso/metodologia de registro da memória de uma história, faz-se necessário a elaboração de um roteiro escrito, que sobre a orientação do texto da obra de Lima (2009), sugere que este ordena, estrutura ideias, guia o percurso de construção, enfim é “uma ferramenta técnica que os documentaristas tomam como ponto de partida da jornada de representação da vida e seus temas.”

Após construção do roteiro e da definição da abordagem teórica para a produção do documentário, os autores vão a campo, em busca das informações necessárias ao registro, utilizando como recurso principal as entrevistas narrativas, que destaca a necessidade de um mergulho em dimensões diversas dos entrevistados, proporcionado uma quantidade infindável de informações que podem ser categorizadas em uma pesquisa com narrativa de memórias (SOUZA, E.C. 2011ª).

Para tanto as categorias apresentadas no documentário em questão, intitulado: “Libras: surdez e cidadania” contemplam aspectos relacionados ao vínculo de famílias de pessoas ouvintes com os filhos surdos e o uso ou não da língua de sinais, os surdos e sua aprendizagem na língua, tempo e espaço, os intérpretes como mediadores do mundo ouvinte com o mundo surdo, e os professores ouvintes que durante muito tempo acreditaram, que a língua de sinais era mais um método para ensinar aos surdos, não refletindo o papel linguístico-cultural e o status de língua que a mesma deveria ocupar na escola e na vida dos seus alunos.

A crença de muitos professores que atuaram na educação de surdos que através do uso dos sinais, se conseguiria “alfabetizar” os surdos na língua oral do país, perdurou durante muitas décadas no Brasil, oriundo de um processo histórico de banimento da língua de sinais das escolas de surdos em todo mundo, conforme explicitaremos em outros pontos deste texto.

  1. Narrativa, memória e história da Língua Brasileira de Sinais.

Tendo em vista a escolha dos elementos que intitulam esta seção como construtores da base teórica metodológica deste trabalho, explicitaremos em diálogo com os autores os fundamentos que sustentaram a pesquisa e os elementos conceituais que contribuíram na identificação das narrativas que constituem o corpus do trabalho, visto que foi a partir da coleta de informações dos participantes da pesquisa que se empreende a construção do roteiro e das seções que compõem o documentário, que irão dar vida e forma a história que é contada, que precisa está registrada, a qual é o foco e a constituição da memória de gerações que poderão debruçar-se sobre este registro.

Para Souza (2014), narrar é centrar-se nas trajetórias, experiências e percursos dos atores envolvidos com a temática em questão, marcadas por aspectos “históricos e subjetivos frente às reflexões e análises construídas por cada um sobre o ato de lembrar, narrar e escrever sobre si”. Sendo assim, ao realizar as entrevistas, os entrevistadores estão envolvidos em um emaranhado de dados que precisam ser selecionados para organização dos registros e nos caso específico de documentários fílmicos, a objetividade das escolhas darão melhor clareza daquilo que poderá servir como registro da memória.

Em se tratando da dimensão conceitual da memória enfocamos aspectos das lembranças e do tratamento que se dá a estas, em que tempo e espaço aconteceram os fatos, o que ainda está vívido, o que precisa ser rebuscado na lembrança, como se deu, os sentimentos que evocam as emoções que surgem. Nesta dimensão nos apoiamos no pensamento do historiador Pierre Le Goff, (SILVA e SILVA, 2006) o qual utiliza o conceito de memória como “a propriedade de conservar certas informações, propriedade que se refere a um conjunto de funções psíquicas que permite ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas”. Assim, as entrevistas intencionaram realizar um levantamento das histórias que os entrevistados contam sobre o processo educacional das pessoas surdas através do uso da língua de sinais no município de Jequié, que de acordo com hipótese inicial, esta língua não assumia status de língua e sim de mais um mecanismo didático para ensinar os surdos a ler e escrever a língua portuguesa, ainda que de maneira não proficiente, tal como um recurso pedagógico, assim como o uso de imagens, da lousa, de objetos entre outros recursos comumente utilizados por professores ouvintes no ensino a alunos surdos.

As histórias conhecidas no processo de construção do documentário em questão revelam as trajetórias dos sujeitos, e como a política local, a sociedade da época pensava a surdez e a educação das crianças, jovens e adultos surdos. As concepções da época, o conselho médico, a ausência de política educacional direcionada, as iniciativas beneficentes, e a postura dos pais, e dos próprios surdos, frente às condições educacionais oferecidas pela época.

Em parte a maioria dos entrevistados vivenciou o início do processo educacional nos anos oitenta, nascidos em final dos anos setenta, período em que o país emergia da infeliz ditadura militar e lutava pelo processo de democratização, no qual as políticas educacionais favorecessem a todos sem distinção de raça, cor, etnia e condição biológica, portanto o recorte histórico que as narrativas conseguem revelar durante as entrevistas nos fazem concordar com Lulkin (2005 p.43), que afirma que as lutas por identidade no âmbito educacional, solicita uma atenção especial para o conceito de diferença, um aprofundamento maior nos temas relacionados ao multiculturalismo, e uma posição mais crítica frente aos poderes da linguagem e dos discursos hegemônicos desde muito tempo neste país e perdura até os dias atuais.

A história educacional das pessoas surdas no Brasil inicia-se com a fundação da primeira escola para surdos por D. Pedro II em 1857, nesta escola, hoje Instituto Nacional de Educação de Surdos, a sistematização da Língua de Sinais Brasileira ocorreu com a vinda de um professor surdo francês, que inicia os estudos com os alunos surdos aqui do Brasil (CAMPELO, 2007). Desde então a língua de sinais passa a ser usada pelos surdos que se formam professores no instituto e por professores ouvintes. Contudo sem uma oficialização desta língua em âmbito nacional, traz impedimentos de que haja maior esforço institucional nos estudos, pesquisa e difusão da mesma como língua de instrução na educação dos surdos de forma mais ampla.

 De acordo com a hipótese inicial em relação ao município de Jequié/Ba, a primeira iniciativa educacional que contemplasse os surdos, surge com antiga Organização não governamental, Cemar, a qual oferece matrícula para pessoas com as diversas deficiências, estabelecendo nesta escola uma sala de aula só para o ensino de surdos, na qual, de acordo com os relatos das entrevistas, a língua de sinais não gozava do status de língua, pois não havia professores fluentes na língua, e a mesma era utilizada nas atividades mesclada com o ensino da língua oral, através de cartilhas e manuais com vocabulário ilustrado em sinais.

O processo de desenvolvimento desta língua entre os surdos ali matriculados e os professores ouvintes, aconteceu no decorrer dos anos. Não foi propriamente no ambiente da escola que se dera este contato, mas nos encontros com surdos mais velhos de outros municípios que são falantes fluentes da língua e com outros professores ouvintes, também fluentes na comunicação em Libras. Até o ano de reconhecimento da língua oficialmente em dois mil e dois, o sistema educacional recebia os surdos na matrícula escolar, ás vezes inserindo a Libras como forma de promover acessibilidade, com a presença de tradutores intérpretes, mas não a reconhece nos aspectos culturais e de construção de identidade de um grupo minoritário, bem como não constrói um projeto político educacional bilíngue, onde a língua de sinais assuma o status de língua de mediação e instrução, e a língua portuguesa na modalidade escrita, seja trabalhada na perspectiva de segunda língua.

Quando tratamos da história, consideramos o processo, as lembranças, os marcos e construção social que acontece em determinado tempo e espaço, de acordo com Silva e Silva (2006), a diferença entre história e memória, reside em que a história atua sobre o acontecimento colocado para e pela sociedade, e a memória considera a reação que o acontecimento provoca no indivíduo. E, portanto o registro visual da história da educação dos surdos do município de Jequié, mediada pela língua de sinais, considerando neste registro a memória dos que vivenciaram estes processos, permite a considerar a importância desta ação para gerações de educadores e de pessoas surdas que usam esta língua, bem como para comunidade acadêmica que há tão pouco tempo convive com o estudo da Libras como disciplina curricular obrigatória na formação de professores, bem como em estudos de programas de pós-graduação  de diversas instituições públicas e privadas.

  1. O DOCUMENTÁRIO FÍLMICO COMO FERRAMENTA DE REGISTRO PARA MEMÓRIA VISUAL.

A escolha por este gênero para registrar a memória da história da educação dos surdos em Jequié, mediada pela língua de sinais, tem uma valor singular, pois a intenção é que este registro alcance principalmente as pessoas surdas, as quais, presentes na escola pública brasileira, por vezes são invisibilizados na sua forma de ver e compreender o mundo pelo canal visual e não pelo canal auditivo, pela cultura visual e não pela cultura e tradição oral.

Por documentário, ou prática fílmica documental, compreendemos de acordo com Lima (2009), como um importante espaço de reflexão, criação, interpretação, representação e mediação de olhares sobre o mundo, um tipo de registro no qual a cultura visual dos surdos, marcada por uma língua tridimensional, rica em forma e movimento, com parâmetros relacionados à expressão facial e corporal, que não depende das línguas orais para existir, que é completa em sua estrutura, encontra espaço para um registro mais próximo da necessidade visual de seus usuários/falantes.

A história do registro num formato de documentário, no Brasil acontece no século XIX, sendo que o primeiro registro foi feito em dezenove de julho de mil oitocentos e noventa e oito pelo empresário Afonso Segreto, que mostrou a entrada do navio francês “Brésil” na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, e a partir do século XX.

[...] com as possibilidades do aparato tecnológico, este tipo de produção perde lugar para filmes de ficção e outros tipos de montagens, só afirmando sua identidade, em meados do século, como um tipo de produção que registra aspectos da realidade capta a vida em seu cenário natural, fora do estúdio, ainda segundo Ramos (1990) apud Lima (2009.p.15) [...].   

Os documentários ainda revelam em muitos casos o ponto de vista do autor, guardando profunda relação com valores culturais e “ideológicos de quem o desenvolve, como fruto do olhar sobre determinado aspecto da realidade, um discurso, um argumento”, embora não tenha a intenção de convencer o espectador, cabe ao mesmo a interpretação e reflexão sobre o tema (LIMA, 2009, p.24).

Diante deste posicionamento teórico, a escolha pelo formato documentário fílmico para registrar trechos da história, gravada na memória das pessoas surdas e dos educadores ouvintes, se dá pela necessidade visual que a comunidade surda tem de representação através de sua língua, que de acordo com Campelo (2007, p.113), é um campo pouco explorado nas ciências da educação, não levando em consideração as formas como as pessoas surdas recebem e compreendem o mundo pelo campo visual, utilizando para isso dos recursos imagéticos ou [...] semiótica imagética que é a parte da semiótica geral ou uma ciência geral dos signos, um dos sistemas de significação.

A sociedade que vivemos é também a sociedade da imagem, da visualidade, observamos a importância dada aos vários suportes que se utilizam da imagem para estabelecer a comunicação, tais como o próprio corpo, telas, cadernos, computador, propagandas, ou seja, a linguagem não verbal é uma área de estudo importante a ser explorada no campo educacional, e esta disposição para uma coerência ideológica no que concerne o ensino da Língua Brasileira de Sinais, seus campos de pesquisa e o povo surdo que usa esta língua, corrobora com as escolhas em torno das opções metodológicas que são feitas na realização deste trabalho.

Para que este registro, alcance valor para comunidade de pessoas surdas, se faz necessário que a linguagem imagética, sirva como eixo, pois o campo de luta educacional dos surdos sugere um redimensionamento destes de deficientes auditivos, para eficientes do olhar (LULKIN, 2009, p. 43), um grupo de pessoas que tem no código sinalizado uma materialidade, uma representação sociocultural entendendo que os olhares são interessados e servem para delimitar espaços políticos.

Durante a construção do processo de organização do documentário, “Libras: surdez e cidadania”, conhecer a roteirização foi uma condição para que o trabalho fosse realizado, e a leitura do texto de Lima (2009), esclareceu quais etapas deveriam acontecer, organizou a estrutura e serviu como ponto de partida para ida ao campo das vivências exploradas nos temas abordados no trabalho.

O roteiro organiza as ideias, sustenta o projeto, semelhante a uma planta de um projeto arquitetônico que ajuda a contar a história com imagens, diálogos e descrições, além disso, sem um roteiro clareza e objetividade necessárias a este tipo de gênero fílmico, poderá comprometer a qualidade da produção.

4. EM CAMPO COM A CÂMERA, AS ENTREVISTA E OS PERSONAGENS DA HISTÓRIA.

O trabalho de construção do documentário depois de organizado todo o processo, buscou ir ao encontro das pessoas da comunidade, que são citadas nos relatos dos próprios surdos, nos encontros e vivências práticas da disciplina. Como se tratou de um trabalho acadêmico com intenção didática, a produção do documentário não envolveu a necessidade de crivo do comitê de ética da universidade, quando se trata de pesquisas com seres humanos, mas foi necessário à organização de termos de consentimento livre esclarecido e autorização do uso das imagens pelos colaboradores que são entrevistados para a produção.

O processo de construção teve uma duração de aproximadamente sessenta dias, entre leituras, discussões e organização das equipes de produção entre os próprios alunos da disciplina e a professora, envolvendo a contratação de uma equipe de filmagem profissional, decisão que fora tomada pelo grupo, pois era intencionado produzir um material em vídeo que fosse doado a comunidade (associação de surdos, escolas, centros de atendimento educacional especializado, familiares) como produto do registro de sua história conforme discutido durante todo o texto deste trabalho. Assim a qualidade das imagens que iriam constar no vídeo, exigiu uma produção e edição profissional com a necessidade de inserção de um trabalho com as técnicas de montagem, áudio e iluminação, que são da competência de equipe especializada.

A disposição dos entrevistados em participar foi um fator que proporcionou momentos de muita emoção aos alunos produtores do documentário, a facilidade em encontrar em suas rotinas um tempo de gravação das entrevistas, as disponibilidades em contar suas histórias, a riqueza de detalhes que envolvem este tipo de narrativa, provocavam grande comoção em todos, principalmente ao confirmar na realidade das narrativas as temáticas relacionadas ao estudo da história da língua de sinais e da educação dos surdos que são abordadas, durante o curso na disciplina Libras.

Os grupos escolhidos pelos produtores para organização das categorias que iriam compor o trabalho foram: os gestores que representavam as políticas públicas educacionais de Jequié, os professores da sala de aula comum, os professores especializados em educação de surdos, os alunos nãos surdos que estudam com os surdos, os pais de surdos adultos e os próprios surdos, sendo que nesta categoria foram divididos: surdos adultos que não concluíram seu processo de escolaridade e os surdos que ingressaram na universidade, surdos que atuam no mercado de trabalho, alguns que já atuam como professores de Língua Brasileira de Sinais todos estes usuários da Libras.

As entrevistas foram feitas em vários momentos, em geral nos espaços profissionais dos professores e nas casas das famílias dos surdos, conforme abordagem teórica a escolha por entrevistas narrativas (SOUZA, 2014), se deu por identificação desta metodologia como mais adequada para coleta de dados essenciais a este tipo de registro da memória.

Explicitamos ainda que aqui não cabe uma análise das narrativas colhidas durante a produção do vídeo documentário, pois para o mesmo seria necessário, um tempo maior, além da necessidade de uma sistematização em formato de análise de conteúdo para um trabalho que exija um gênero acadêmico diferenciado deste.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A produção do documentário fílmico além de confirmar as hipóteses iniciais sobre o uso da Língua de Sinais, não como língua, mas como recurso didático para ensino aos surdos no início do processo educacional dos mesmos em Jequié, confirma o histórico na educação dos surdos vivenciado pelo mundo todo, durante um período de mais de cem anos, onde a língua de sinais era proibida de ser ensinada aos surdos, fruto das decisões do Congresso de Milão em 1880, (CAMPELLO, 2007). Retrata a dinâmica das famílias com a descoberta da surdez dos filhos, a influência do conhecimento clínico-médico reforçando a surdez como patologia, entre as décadas de setenta e oitenta no Brasil, e a influência de uma pedagogia da cura e não do respeito à diversidade humana.

Neste registro fica demarcado o espaço de submissão que os surdos vivenciaram antes e depois de adquirirem a Libras como língua natural em sua comunicação, quando não há registro de professores surdos que contribuíram com a construção da escola Cemar (citada como primeira iniciativa educacional para surdos em Jequié), embora o aprofundamento do conhecimento e a fluência na língua é adquirida no contato com surdos adultos externos a escola. 

Posterior ao reconhecimento da Libras como língua nacional, de uma comunidade linguística minoritária no Brasil é que alguns surdos da cidade,  se tornam professores, não de crianças e jovens surdos, mas de adultos ouvintes que desejam aprender a Libras.

Compreendendo que este trabalho não encerra a necessidade de um registro mais denso desta história, embora suscite uma discussão sobre este espaço no tão recente ensino da Língua Brasileira de Sinais na formação de professores, traz uma abordagem de elementos teóricos e conceituais recentes em torno da memória e das narrativas de grupos invisibilizados pelo sistema educacional, contudo não atende toda a necessidade de uma discussão que precisa ser feita neste país sobre a educação dos surdos, as línguas nesta educação e o papel dos educadores ouvintes e surdos neste processo, pois não é esta a pretensão do presente texto.

As linhas divisórias da história, as fronteiras dos discursos sobre os surdos, e o envolvimento dos surdos em suas próprias narrativas, problematizam diversas questões suscitadas após a aprovação da Lei de Libras, dentre elas nos interessamos por aquelas que reconhecem os atores da história, suas subjetividades, que constroem suas identidades e modo de ver o mundo, destacando aqui no campo educacional as práticas que revelam as concepções sobre diferença, identidade, língua e cultura.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Sueli. Libras e escolarização de surdos: o que quer e o que pode essa língua. Direcional Educador. 2009. Disponível em  http://www.direcionaleducador.com.br/edicao-52-mai/09. Consultado em 25 de abril de 2014.

LIMA, Renata Farias Smith. Documentário e turismo cultural: um olhar sobre Jorge Amado. Ilhéus: Editus, 2009.

QUADROS, Ronice Muller e PERLIN, Gladis (orgs.). Estudos Surdos II. In. Pedagogia Visual/ Sinal na Educação dos Surdos. CAMPELLO, Ana Regina. Pedagogia Visual / Sinal na Educação dos Surdos. Petropólis, RJ: Arara Azul, 2007.

SKLIAR, Carlos (org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. In. LULKIN, Sérgio Andres. O discurso moderno na educação dos surdos: práticas de controle do corpo e a expressão cultural amordaçada. Porto Alegre: Mediação, 2005, 3ª ed.

_________________. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. In. Os Estudos Surdos em Educação: problematizando a normalidade. Porto Alegre: Mediação, 2005,3ª ed.

SILVA, Kalina Vanderlei e Silva, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Ed.Contexto,2006.

SOUZA, E. C. Diálogos cruzados sobre pesquisa (auto) biográfica: análise compreensiva - interpretativa e política de sentido. Educação | Santa Maria | v. 39 | n. 1 | p. 39-50 | jan./abr. 2014. Disponível em http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/reveducacao/article/download/11344/pdf. Consultado em 25 de abril de 2014.

 

 

 

MEMORIES AND STORIES OF BRAZILIAN SIGN  LANGUAGE EDUCATION IN CASE OF DEAF PEOPLE IN JEQUIÉ / BAHIA.

 

Abstract: This paper aims to start a log of memory and history of the use of the Brazilian Sign Language in the educational process of deaf people in Jequié/ Bahia, who for many years was used by listeners teachers, not as a language of symbolic mediation of deaf to the world , but as a method to teach them to read and write . For both the collection of information through filmed with deaf people , with teachers who started a specific educational work directed to this audience of students and families , interviews is the instrument used to record the memory of this important building in jequieense community in documentary format, which according to some authors the action of documentary film practice as a space for reflection, creation, interpretation , representation and mediation looks over the world , makes it possible to establish theoretical and empirical , possible links between the use of water audiovisual record and memory of a story often rendered invisible by the standards body , language and culture that legitimates some and not others. The sign language of the deaf Brazilian, is only legally recognized in the year two thousand and two, although there is a memory of this language in the country , which is lost is no longer registered . The research focuses on theoretical around the memory and history, culture and language assumptions, besides bringing authors who address aspects of education and training of deaf people in Brazil .

 

 

 

Key words: culture, history , sign language , memoryv