A criação de um meio geográfico artificial

A criação de um meio geográfico artificial acaba se tratando de mudanças quantitativas, assim como das qualitativas. Se até mesmo no início dos tempos modernos as cidades ainda contavam com jardins, isso vai tornando-se mais raro: o meio urbano é cada vez mais um meio artificial, fabricado com restos da natureza primitiva crescentemente encoberta pelas obras dos homens. A paisagem cultural substitui a paisagem natural e os artefatos tomam, sobre a superfície da terra, um lugar cada vez mais amplo.
Com o aumento das populações urbanas, ocupadas em atividades terciárias e secundárias, o campo é chamado a produzir mais intensivamente. No século XIX, para alimentar um urbano eram necessárias cerca de sessenta pessoas trabalhando no campo. Essa proporção vai modificando-se ao longo destes dois séculos. Em certos países, hoje, há um habitante rural para cada dez urbanos. No Brasil caminhamos para igual proporção em certas regiões, como na maior perte do Estado de São Paulo.
A agricultura passa, então, a se beneficiar dos progressos científicos e tecnológicos que asseguram uma produção maior sobre porções de terra menores. Os progressos da química e da genética, juntamente com as novas possibilidades criadas pela mecanização, multiplicam a produtividade agrícola, e reduzem a necessidade de mão-de-obra no campo.
A urbanização ganha, assim, novo impulso e o espaço do homem, tanto nas cidades como no campo, vai tornando-se um espaço cada vez mais instrumentalizado, culturizado, tecnificado e cada vez mais trabalhado segundo os ditames da ciência. O capital constante que antes, era um apanágio das cidades, sobretudo naquelas onde se concentrava a produção industrial, passa, também, a caracterizar o próprio campo, na forma de implementos, fertilizantes e inseticidas, máquinas e sementes selecionadas. Esse capital constante fixo ou localizado chega, aliás, a toda parte apoiado pela expansão da rede de estradas de ferro e de rodagem que vão assegurar uma circulação mais rápida e relativamente mais barata, sem a qual o abastecimento das cidades se tornaria impossível. O fato de que a energia se transporta em forma de eletricidade, ou através de modernos condutores de óleos, de gasolina ou de gás, vai permitir, depois, a desconcentração industrial, enquanto no século passado o fenômeno da industrialização explica as grandes concentrações urbanas da Europa e do leste dos Estados Unidos. Os transportes se modernizam, encurtando as distancias entre as cidades e dentro delas. E o urbanismo subterrâneo e transforma em um suporte indispensável ás formas de vida e às atividades econômicas contemporâneas.
Tudo isso se dá em um quadro de vida onde as condições ambientais são ultrajadas, com agravos á saúde física e mental das populações. Deixamos de entreter a natureza amiga e criamos a natureza hostil. (p.43)

A criação de um hostil a um espaço do homem?

O exame do que significa, em nossos dias, o espaço habitado, deixa entrever, claramente, que atingimos uma situação-limite, além da qual o processo destrutivo da espécie humana pode tornar-se irreversível.
O espaço habitado se tornou um meio geográfico completamente diverso do que fora na aurora dos tempos históricos. Não pode ser, qualitativa ou estruturalmente, ao espaço do homem anterior á Revolução Industrial. Conforme assinala Garret Ekbo em seu belo livro A paisagem Que Vemos, com a Revolução Industrial a articulação tradicional, histórica, da comunidade com o seu quadro orgânico natural, foi então substituído por uma vasta anarquia mercantil. Agora, o fenômeno se agrava , na medida em que o uso do seu valor vem de uma luta sem trégua entre diversos tipos de capital que ocupam a cidade e o campo. O fenômeno se espalha por toda a face da terra e os efeitos diretos ou indiretos dessa nova composição atingem a totalidade da espécie. Senhor do mundo, patrão da natureza, o homem se utiliza do saber científico e das invenções tecnológicas sem aquele senso de medida que caracterizará as suas primeiras relações com o entorno natural. O resultado, estamos vendo, é dramático. (p.44)

Circuitos espaciais de produção

Hoje, não podemos mais da clássica noção de rede urbana; assim também como não podemos mais referir-nos às clássicas noções de cidade-campo. Não é que não existam ainda hoje estas relações, mas mudaram de conteúdo e de forma. Atualmente, uma cidade pode não manter intercâmbio importante com sua vizinha imediata e, no entanto, manter relações intensas com outras muito distantes, mesmo fora de seu país. Por exemplo, uma indústria mecânica localizada na cidade de Sertãozinho, que pertence à sexta região administrativa do Estado de São Paulo, composta por oitenta municípios, mantém relações comerciais, tanto de compra quanto de venda, com apenas umas seis cidades locais; no entanto, ela mantém relações intensas com a capital do Estado e com outros países, já que exporta grande parte de sua produção anual de máquinas.
Os circuitos espaciais da produção, seriam as diversas etapas pelas quais passaria um produto, desde o começo do processo de produção até chegar ao consumo final. Se pegarmos por exemplo, conhecer os circuitos produtivos da agro-indústria de cana-de-açucar, teríamos que observar todos os momentos da produção, desde o plantio de cana até o consumo do álcool, do açúcar ou de derivados, assim como vários itens distintos, assim, sobre a matéria-prima – local de origem, formas de seu transporte, tipo de veículo transportador etc; sobre mão-de-obra - qualificação, origem, variação das necessidades nos diferentes momentos da produção etc; sobre estocagem – quantidade e qualidade dos armazéns, dos silos, proximidade da indústria, relação entre estocagem e produção etc; sobre transportes – qualidade, quantidade e diversidade das vias de transportes, dos meios de transporte etc; sobre a comercialização – existência ou não de monopólio de compra, formas de pagamento, taxação de impostos etc; sobre o consumo – quem consome, onde, tipo de consumo, se produtivo ou consumitivo etc. Se formos estudar os circuitos espaciais da produção canavieira mo Estado de São Paulo, produtor de mais de 50% da colhida no país, no ano de 1980, poderíamos começar estudando seu plantio numa das áreas produtoras e terminá-lo onde há o consumo do álcool e do açúcar e seus derivados. (p.50)
A análise destes junto com a dos círculos de cooperação (Santos, 1985) nos dá a organização local e sua posição na hierarquia do poder mundial.

Especializações produtivas e aumento de circulação

Com difusão dos transportes e das comunicações cria-se a possibilidade da especialização produtiva. Regiões se especializam, não mais precisando produzir tudo para sua subsistência, pois, com os meios rápidos e eficientes, podem buscar em qualquer outro ponto do país e mesmo do Planeta, aquilo de que necessitam. (p.50)
Quanto maior a inserção da ciência e tecnologia, mais um lugar se especializa, mais aumenta o número, intensidade e qualidade dos fluxos que chegam e saem de uma área. Esse processo pode conduzir à estagnação ou mesmo ao desaparecimento das cidades pequenas.
A diminuição relativa dos preços dos transportes, assim como sua qualidade, diversidade e quantidade, criam uma tendência ao aumento de movimento. O número de produtos, mercadorias e pessoas circulando cresce enormemente, e como conseqüência a importância das trocas é cada vez maior, pois alas não apenas se avolumam como se diversificam. Novos complicadores surgem, pois, para a análise de qualquer situação de hoje. Entre eles poderíamos citar a modernização agrícola, com os progressos da biotecnologia e da mecanização, a desmaterialização da produção e dos produtos, a desvinculação da produção agrícola do consumo alimentar ao mesmo tempo, aliás, em que as agro-indústrias ganham em importância, tudo isso trazendo consigo uma grande diversidade de repercussão geográfica. Dentre estas, contam-se:o domicílio não-rural de parte crescente da mão de obra agrícola, a diversidade de fluxos e a intensidade de relações de todos os níveis, resultado dos altos níveis de especialização, os novos objetos geográficos, a dissolução da metrópole, isto é, a possibilidade aberta às grandes cidades de mostrarem presença imediata em todo o território.
Quais são as dicotomias atuais entre: cidade / campo, agrícola / industrial etc. Hoje o agricultor pode também ser o homem urbano – o melhor exemplo disso é a existência do trabalhador volante – o bóia-fria – que é um trabalhador agrícola, mas não um habitante da zona rural, neste caso, os dois mercados tendem a se confundir. O lugar tem autonomia de existência pelas coisas que o formam – ruas, edifícios, canalizações, indústrias, empresas, restaurantes, eletrificações, calçamentos, mas que têm autonomia de significação, pois todos os dias novas funções substituem as antigas, novas funções se impõem e se exercem.

A cidade: o lugar revolucionário

Na transição do feudalismo para o capitalismo, quando as terras pertenciam aos senhores feudais, a cidade aparece como o lugar do trabalho livre. O burgo, lugar onde o trabalho livre é possível, concentra os artesões, o pedreiro, o alfaite, mas também os comerciantes. Este lugar, a cidade, se diferencia do campo, entre outros motivos, pela possibilidade desse trabalho livre.
Cidade aparece, então , como uma semente de liberdade; gera produções históricas e sociais que contribuem para o desmantelamento do feudalismo. Representava a possibilidade do homem livre, da liberdade de escolha, muito embora esta fosse relativa, já que os ofícios eram regulamentados pelas corporações, pelas confrarias.
As cidades puderam formar-se graças a um determinado avanço das técnicas de produção agrícola, o qual propiciou a formação de um excedente de produtos alimentares. Com a existência deste excedente, algumas pessoas puderam dedicar-se a outras atividades, sendo a cidade, predominantemente, lugar de atividades não-agrícolas.
A cidade renasce, pois de certa forma, esta já existia antes mesmo do feudalismo, as primeiras forma-se por volta de 3500aC, no momento no qual se conhece um movimento bastante intenso de trocas. As descobertas da América, a intensificação das relações comerciais, com a Ásia e a África, fazem crescer as cidades.
A cidade reúne um considerável número das chamadas profissões cultas, possibilitando o intercâmbio entre elas, sendo que a criação e a transmissão do conhecimento têm nela lugar privilegiado. Dessa forma, a cidade é um elemento impulsionador do desenvolvimento e aperfeiçoamento das técnicas. Diga-se, então, que a cidade lugar de ebulição permanente.
Nesta transição do feudalismo para o capitalismo, com o fortalecimento das cidades (burgos), a burguesia era a classe revolucionária; opunha-se à aristocracia (detentora das terras). Alguns autores, entre os quais o próprio Marx, afirmam que, em seus primórdios, o capitalismo é revolucionário na história da humanidade, pois, entre outras coisas, aumentou o número de pessoas que habitam as cidades, que têm então caráter transformador e faz o trabalho livre.

Novas relações cidade-campo

Durante alguns séculos, campo e cidade interagiam mutuamente, mas com o processo que se inicia com as grandes navegações e consolida-se com a revolução industrial, não é mais possível ficarmos imunes às mudanças e continuarmos com os mesmos conceitos e classificações hierárquicas. (p.55)

Nova hierarquia urbana

Os transportes e as comunicações conheceram grandes avanços nos países subdesenvolvidos – os processos maiores são obtidos, através do ônibus e do automóvel e os fluxos podem intensificar-se graças a sua maior flexibilidade, o que não podia ser alcançado com o trem, meio muito mais rígido e inflexível.
A melhoria das estradas e dos veículos, o encontro de combustíveis mais baratos representa modernizações que permitem a diminuição dos custos.
Naturalmente, os que fazem essas viagens de consumação são os que dispõem de mobilidade. Essa mobilidade, no território é, aliás, negada aos que dispõem de menos rendas. (p.56)
Com a transformação do mundo, devemos, assim, substituir as antigas categorias de análise por outras, que dêem conta da explicação do novo e da mudança. A análise, para ser válida, não pode se vazia da história concreta. Como resposta às novas redes de relações é que podemos, hoje, falar de uma nova hierarquia urbana. (p.57)

Espaço, o que é?

O espaço seria um conjunto de objetos e de relações que se realizam sobre estes objetos; não entre estes especificamente, mas para as quais eles servem de intermediários. Os objetos ajudam a concretizar uma série de relações. O espaço é resultado da ação dos homens sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos, naturais e artificiais. (p.71)

A espacialização não é o espaço

A paisagem é materialidade, formada por objetos materiais e não-materiais. A vida é sinônima de relações sociais, e estas não são possíveis sem a materialidade, a qual fixa relações sociais do passado, logo, a materialidade construída vai ser fonte de relações sociais, que também se dão por intermédio dos objetos. Estes podem se sujeitos de diferentes relações sociais – uma mesma rua pode servir a funções diferentes em distintos momentos.
A sociedade existe com objetos, é com estes que se torna concreta. Por exemplo, São Paulo tem dezesseis milhões de habitantes, mas se não explicarmos como estes se movem, para o lazer, para o trabalho, para as compras, como eles habitam, como participam na reprodução social etc; não estamos nos referindo a São Paulo, mas apenas a dezesseis milhões de pessoas. (p.72)