Ouvir o disco da cantora e compositora Mariane Mattoso se constituiu para mim em um prazer inigualável, recomendado para pessoas de bom gosto, ou melhor, de gosto refinado. É preciso ouvir com calma, sem pressa, sem desassossego, com glamour e se possível acompanhado de um bom Cabernet Sauvignon para comparar o aroma de morangos silvestres pisados com um toque levemente amadeirado com a sinestesia do disco.
Comecei com o Quarto, parceria com Tadeu Santos, em que a música é construída em cima de um poema enigmático, cheio de mistérios. Ela trabalha com acordes dissonantes, não previsíveis, criando uma expectativa de que algo diferente deve acontecer e acontece... A música transporta o poema para o etéreo e tudo dentro de um minúsculo quarto. Uma quarta aumentada cria uma sinergia com o espaço entre as quatro paredes, o quarto de concreto.
Em seguida, Melhor parar, um samba forte, enérgico, rico em dissonâncias nada previsíveis. A melodia foi criada num clima de movimento, de querer jogar tudo para o ar, de chutar o pau da barraca como se diz na gíria popular. Zeca da Silva fez uma letra simples, mas brilhante, promovendo um encontro perfeito com a melodia. É uma música para pegar e todo mundo sair cantando e virar um hit, uma moda, um mote.
Infância, a terceira faixa do cd é um resgate de uma infância que parece ter sido muito feliz, em que a autora de letra e música relembra os bons momentos da inocência, repletos de elementos da cultura bem brasileira que seus pais procuraram transmitir. "Flauta doce, pega-pega, cor, bambu, saci...". É uma melodia solta, alegre que cria ambiente para a descontração para adultos e crianças.
A lagarta é tentativa de mostrar as transformações pelas quais passamos através do ritual da metamorfose de uma lagarta até se transformar em uma borboleta. A música é suave, como a letra, enternecendo os ouvintes com os saborosos acordes de violão e piano.
Em Vai virar, Mariane Mattoso, autora de letra e música, busca resgatar o sofrimento do povo nordestino numa perspectiva mais poética de uma menina que busca uma nova expectativa de vida ou quem sabe um amor. Conforme ela mesma fala em um vídeo no Youtube, a inspiração foi por conta de histórias que um amigo nordestino contava sobre a seca em sua terra. A música é um shote samba ou um shote jazz, ou qualquer outra designação que os especialistas queiram dar.
Sinestesia, que dá o título do cd, é uma canção que lembra as influências de Tom Jobim, Guinga, Johnny Alf entre outros. Música e letra, criadas simultaneamente pela autora remetem para um clima de ternura e encantamento nos momentos de distanciamento do objeto do amor. A letra inverte os sentidos dos sentidos. "Vê, em minha voz/ Ouve em minha pele/ No sabor do meu olhar", nos transporta sinestesicamente para outro plano, que vai além do simbólico.
Em Geodo, com letra e música da autora, há uma preocupação com as coisas da terra e os sentidos metafóricos transportados para dentro da alma. "O meu amor é de pedra/ Brilha cristal nos meus olhos/ molhados de amor", são versos que mostram a profunda sensibilidade da compositora. Nos versos: Deixa ver como brilha a sua cor/ Coração, di-amante azul" a pedra dá um sentido duplo e forte, revelando uma inspirada poeta. Essa canção, belíssima na sua perfeita junção de letra e música, é para mim o ponto alto do disco, se é possível dizer que existe um ponto mais alto no trabalho dada a qualidade inolvidável do seu todo.
Café Luá, é um samba bossa quase a antiga, resgatando gostosos momentos nas mesas boêmias dos bares paulistanos dos tempos difíceis da ditadura militar. Um bom samba do Chico ajudava a sublimar o vazio, da falta de liberdade, do medo dos ditadores. Ouvindo a música tem-se a sensação de ouvir barulho de copos, vozes e o cheiro de fumaça.
Dois sambas bem paulistanos completam o disco que se caracteriza pela diversidade de ritmos uma marca da autora. Delírio da Passista, com letra de Fernando Cavalieri e Senhora parceria com Tadeu Santos. E quase ao final do disco a música Pesadelo, uma viagem ao inconsciente através de uma bela melodia.
O disco termina com Acalanto para o Tom, uma parceria com uma música deixada pelo Johnny Alf de presente para sua mãe, Célia Mattoso. Mariane, tendo o privilégio de ter em mãos a música inédita do falecido compositor, escreveu uma letra como uma canção de ninar para seu filho Tom que nascera há pouco. Uma canção para duas vozes, em que Renata Versolato faz o backvocal fecha o disco num clima doce e enternecedor.
Os músicos que acompanharam a artista são de primeira linha, apesar de que alguns são ainda jovens e promissores talentos. Há que se destacar a presença de Ubaldo Versolato, da banda Mantiqueira com flauta e sax barítono e o piano de mestre do João Cristal no Acalanto para o Tom. Adriano Adewale, que já acompanhou Bobby McFerrin e a cantora Cesária Évora, veio especialmente de Londres, onde reside e já com o seu segundo cd gravado, para dar uma canja no disco da amiga. Sua sensibilidade e habilidade no manejo dos instrumentos de percussão são dignos de nota. Luciana Romagnoli, talentosa e jovem violonista e guitarrista, é uma promessa para a MPB de qualidade, pela sua sensibilidade, precisão e criatividade. Rodrigo Braga (piano). Yuri Steinhoff (contrabaixo) Rafael Motta (percussão), Peter Mesquita (contrabaixo acústico e Moacir Bedê (bandolim), David Del Dono (saxofone e flauta) e Marcos Ferreira (flauta transversal), completam o competente time de feras que participaram o disco.
A autora escreve no disco que é preciso "ouvir sem moderação" no que ela tem toda razão. É um disco para ouvir, ouvir até se embriagar, mas uma embriaguês gostosa em todos os sentidos, que não oferece riscos para o ouvinte nem tampouco para terceiros.