MARIA DA PENHA: Uma Lei que incomoda muita gente...

A gente só sabe que ninguém pode triscar nela [Lei Maria da Penha], porque se triscar vai ter confusão, vai ter confusão e vai ser grande. Senadora Serys Slhessarenko PT-MT, Setembro de 2009.

Sabe-se que o Senador Renato Casagrande é o relator do Projeto de Lei do Senado Federal (nº 156/ 09), que trata da reforma do Código de Processo Penal, que, como ele próprio admite em seu relatório[1], comprometia[2] o efetivo combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e as importantes conquistas adquiridas pela Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) no Brasil.

Pois bem, o digníssimo Senador, merecedor de todo nosso respeito, fez publicar na data de hoje (01.12.2009) um relatório sobre as primeiras alterações feitas pelos próprios idealizadores no Projeto de Lei [3], ante o clamor público, já que a redação original foi alvo de inúmeras críticas pelos operadores jurídicos das mais diversas áreas de atuação em todo o país.

Primeiramente, há que se esclarecer que as questões processuais pertinentes a aplicação da Lei Maria da Penha, não são tão simples como parece inadvertidamente sugerir o relatório às fls. 152, vez que, em que pese concordemos com ele quando afirma que: "a Lei Maria da Penha estabelece claramente no seu art. 41: "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995", tal questão é bastante controvertida em nossos tribunais, sendo tal artigo, especificamente, objeto de uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no STF (19-3), pendente de apreciação.

Nós operadores da Lei Maria da Penha, sabemos que em nossa área tudo tem que ser claro, pois há uma verdadeira "conspiração" para que a mulher continue a ser sacrificada para salvar as relações afetivas, bem como para que seus agressores permaneçam impunes. Assim, diferente do que dispôs o relatório de forma otimista ou ingênua, infelizmente não temos a segurança de que a Lei Maria da Penha será cumprida pelo STJ quanto à inexigibilidade de representação para os casos de lesões corporais leves, sendo certo que o entendimento do STJ apresentado no relatório pode ser alterado, já que aquela corte possui também entendimento em sentido oposto, o qual, infelizmente, não é técnico e entende que a mazela para a família não é a agressão que ensejou o processo criminal, mas o processo criminal simplesmente, dando-se ainda mais poder ao agressor.

Estamos felizes por terem sido acolhidas duas significativas e importantes sugestões da combativa Senadora Serys Slhessarenko, que tanto luta pelas mulheres de nosso país, quanto a Lei Maria da Penha, explicitando que os crimes de violência doméstica contra a mulher não podem ser considerados de menor potencial ofensivo e nem estão sujeitos aos juizados especiais criminais ou seus procedimentos, tampouco ao instituto despenalizador da suspensão condicional do processo.

Contudo, isso não basta! Pois com a Lei Maria da Penha, nos exatos termos em que se encontra em vigência, hoje temos muito mais.

Assim, iremos nos deter brevemente somente nos dispositivos referentes ao combate a violência contra a mulher, para fins de esclarecer que as alterações efetivadas no projeto original pelo Senador para salvaguardar o interesse das mulheres vítimas de violência de gênero (artigos 262 e § 9º[4] e 308[5] do PLS), infelizmente, não garantem a implementação das conquistas já adquiridas pela Lei Maria da Penha, em face de ter sido omisso quanto aos seguintes pontos:

1º) Da impossibilidade de prisão na maioria dos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, colocando-se o direito a liberdadedos réus acima do direito das vítimas a uma vida sem violência

Nos termos redacionais do PLS sob análise (Art. 528)[6]: É vedada a aplicação de medida cautelar (Exemplo: prisão provisória) que, em tese, seja mais grave do que a pena decorrente de eventual condenação.

Na prática, este dispositivo inviabiliza a prisão nos crimes cuja pena máxima seja igual ou inferior a 4 (quatro anos), ainda que cometidos com violência ou grave ameaça a pessoa, na forma preceituada pelo inciso II, do artigo 558 do PLS[7].

Ora! O artigo 528 é incompatível com a redação do inciso II do Artigo 558 e é expresso ao vedar a aplicação de medidas cautelares, dentre elas, TODAS AS ESPÉCIES DE PRISÃO, para a maioria dos casos de violência contra a mulher, tais como nos crimes de ameaça e lesão corporal leve.

Assim, sabemos perfeitamente que tal artigo será usado por muitos operadores jurídicos para justificar o impedimento da prisão em flagrante e preventiva nos casos em que a pena máxima em abstrato prevista para o delito não permitiria a prisão,quase 80% dos casos.

De que adianta permitir-se a prisão somente após o homicídio da mulher?Se na maioria dos casos, alguns dias de prisão por ameaça ou lesão leve poderiam salvar a vida da vítima e a liberdade do agressor, que, caso mate a mulher, ficará muito mais tempo preso, numa situação prejudicial a todos, inclusive para toda sociedade?

Melhor seria se excetuar os casos de violência contra a mulher ou se retirar do PLS o artigo 528, pois é incompatível com a redação do art. 20 da Lei Maria da Penha e artigo 558 do próprio PLS.

2º) Da necessidade de previsão de possibilidade de prisão preventiva para o caso de descumprimento das medidas de proteção

Encontra-se em vigência o art. 42 da LMP, que modificou o art. 313 CPP atual, passando a vigorar acrescido do inciso IV:permitindo-se a decretação da prisão preventiva além doscasos previstos no art. 312 (para garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal), "também quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência."

Pois bem, num retrocesso inaceitável, o PLS suprimiu o dispositivo expresso que permitia a decretação da prisão preventiva nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, ignorando uma conquista importantíssima da Lei Maria da Penha, fundamental para obrigar os agressores ao cumprimento das medidas de proteção, tão importantes para salvaguardar a vida e integridade física e psicológica das vítimas.

3º)A REPRESENTAÇÃO NOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO

O Art. 46 do PLS dispõe que: Será pública, condicionada à representação, a ação penal nos crimes de falência e nos crimes contra o patrimônio, material ou imaterial, quando dirigidas exclusivamente contra bens jurídicos do particular e quando praticados sem violência ou grave ameaça contra a pessoa (exemplos: furto e estelionato).

Consegue ser pior ainda a redação de seu §3º: "Concluídas as investigações nos crimes de ação penal condicionada, a vítima será intimada para, no prazo de trinta dias, ratificar a representação, sob pena de decadência".

ESTE ARTIGO É ABSURDO PARA TODOS OS CIDADÃOS DE BEM DESDE PAÍS, QUE SERÃO OBRIGADOS A ASSUMIR A RESPONSABILIDADE PELO CRIMINOSO USURPADOR DE SEU PATRIMÔNIO ESTAR SENDO PROCESSADO, ACARRETANDO, ALÉM DA IMPUNIDADE E INSEGURANÇA QUASE QUE PALPÁVEIS NOS DIAS ATUAIS: O MEDO REAL E EXPLÍCITO DE QUE SE FAÇA JUSTIÇA PARA O INFRATOR PATRIMONIAL.

Contudo, em que pese tal artigo prejudique todos nós, ele simplesmente ANIQUILA com os direitos DAS VÍTIMAS DOMÉSTICAS DE CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. Pensem se uma pessoa idosa, vítima de estelionato ou furto por parte de um descendente irá representar e ratificar a representação contra o mesmo?

E uma mulher vítima de um estelionatário, um tipo sedutor tão comum que ardilosamente se apropria de tudo que é dela, terá coragem de representar contra o mesmo?Mesmo sob pressão?

A Constituição Federal Brasileira, no 'caput' do art. 5º, garante a TODOS, dentre outros, o direito à propriedadee ao dispor que 'a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais'(art. 5º, inciso XLI), está protegendo também a propriedade (direito fundamental).

Tornar os crimes contra o patrimônio de ação pública condicionada a representação da vítima é de um retrocesso inaceitável como um todo, principalmente nos crimes praticados contra a mulher, por agressores domésticos, familiares e afins, ainda que sejam cometidos sem violência ou grave ameaça, como nos casos de furto, dano e estelionato.

Com o advento da Lei Maria da Penha, há um consenso doutrinário de que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não teriam mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher.Veja-se:Segundo o Art. 5º LMP: "Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial".

Segundo o art. 7o da LMP: São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

A família, devido à imensa importância que tem para o Estado, merece sua especial tutela, por ser a base da sociedade, sendo certo que a LMP foi criada exatamente para a proteção de seus membros, sobretudo as mulheres, reconhecendo que o Estado pode e DEVE agir de forma legítima, interferindo na esfera privada para garantir e resgatar seus direitos, não se podendo exigir, sobretudo em face do disposto nos artigos 4º e 6º da Lei 11.340/06, que a mulher vítima de violência doméstica patrimonial tenha que representar contra seu infrator patrimonial, o que colocaria sua integridade física, psicológica e até mesmo sua vida em risco, dependendo do caso.

Aliás, o artigo 95 do Estatuto do Idoso determinou que não há necessidade de representação das vítimas para o exercício da ação penal nos crimes patrimoniais cometidos contra idosos, que também devem ser "salvos" do esdrúxulo dispositivo.

4º)Das Medidas de Proteção específicas para mulheres vítimas previstas na Lei Maria da Penha

Os artigos 22,23 e 24 da LMP[8] dispõem que: Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

Pois bem, as medidas cautelares pessoais previstas nos artigos 589 a 606 do PLS, não abrangem todas as medidas protetivas de urgência concedidas à mulher vítima de violência pela Lei Maria da Penha, além de estarem adstritas a limites máximos de prazos (art. 607 do PLS), o que não leva em consideração a peculiaridade dos casos e das condições das mulheres em situação de violência doméstica, contrariando o art. 4º da LMP.

O ideal para garantia dos Direitos Humanos das Mulheres vítimas de violência é que AS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS PREVISTAS NO PLS NÃO IMPEÇAM EXPRESSAMENTE A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA PREVISTAS NA LEI 11.340/2006 (LMP).

5) Dos direitos a comunicação das vítimas

Por derradeiro ressaltamos que segundo o PLS em seu art. 89. "São direitos assegurados à vítima, entre outros: V – ser comunicada: a) da prisão ou soltura do suposto autor do crime; b) da conclusão do inquérito policial e do oferecimento da denúncia; c) do eventual arquivamento da investigação, para efeito do disposto no art. 38, §1º; d) da condenação ou absolvição do acusado". Determinando o seu §2º: que as comunicações de que trata o inciso V deste artigo serão feitas por via postal ou endereço eletrônico cadastrado e ficarão a cargo da autoridade responsável pelo ato.

Já o art. 21 da LMP dispõe que: "A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público".

Acreditados que as comunicações de que trata o inciso V deste artigo, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a vítima deverá ser notificada pessoalmente ou por telefone.

CONCLUSÃO

Atrás de portas fechadas e em segredo, as mulheres ainda estão sujeitas a violências terríveis e até bem pouco tempo, estavam excessivamente envergonhadas e receosas de denunciarem seus algozes e expor suas moléstias.

A Lei Maria da Penha constitui um marco inigualável na luta por igualdade de gênero, ainda que tardiamente promulgada (já que o Brasil é o 18º país da América Latina a efetivar uma lei com tais características), foi elaborada atendendo aos ditames constitucionais vigentes, tratando-se de medida de ação afirmativa, tanto servindo para a punição e tratamento do agressor, como para tratar a vítima e seus familiares, a fim de se buscar e efetiva diminuição da desigualdade e da violência em si, sendo inquestionável que as mulheres NECESSITAM DESTE INSTRUMENTO ESPECIAL DE PROTEÇÃO.

Nós mulheres, não aceitaremos mais nenhum retrocesso, pois são necessárias urgências de toda ordem para que tomemos o que nos foi tirado desde o início dos tempos. E para tanto, contamos com a colaboração de nosso parlamento, para que assegurem os direitos concedidos às mulheres pela Lei Maria da Penha, rejeitando qualquer Projeto de Lei que a ameace, por necessitarmos deste importante instrumento de consolidação da igualdade e combate a violência de gênero em nosso país.

O Brasil é cada vez mais feminino, estatística divulgada pelo TSE revela que a maioria de eleitores registrados é formada por mulheres (51,7%). Assim, esta é a hora de dizermos o que queremos de nossos parlamentares, que certamente apoiarão a nossa causa, pois, SEM OS DIREITOS DAS MULHERES DE FATO RECONHECIDOS E DE DIREITO USUFRUÍDOS, NÃO HÁ QUE SE FALAR EM IGUALGADE.

Cuiabá, 01 de dezembro de 2009

Lindinalva Rodrigues Corrêa[9]



[1] Fls. 152 e 153.

[2] Para nós ainda compromete, e muito!

[3]http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getPDF.asp?t=70407

[4]Art. 262. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal). §9º O disposto neste artigo não se aplica no âmbito da Justiça Militar nem em relação aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra mulher, segundo dispõe a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

[5]Art. 308. O procedimento sumaríssimo previsto neste Capítulo não se aplica no âmbito da Justiça Militar nem em relação aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra mulher, segundo dispõe a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

[6]Art. 528. É vedada a aplicação de medida cautelar que seja mais grave do que a pena decorrente de eventual condenação.

[7]Art. 558. Não cabe prisão preventiva:

II – nos crimes dolosos cujo limite máximo da pena privativa de liberdade cominada seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, exceto se cometidos mediante violência ou grave ameaça à pessoa.

[8] I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Já seu art. 23 garante que: Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos.

Enquanto afirma o art. 24 que: Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

[9] Promotora de Justiça no Estado de Mato Grosso; Escritora e Conferencista de âmbito nacional, especialista na área de combate à violência doméstica, questões de gênero e direitos humanos das mulheres.