MARIA BUENO- Um Crime Passional e a Construção de uma "Santidade" Popular.

Vox Populi, Vox Dei.

( " A voz do povo é a voz de Deus")

Falar de Maria Conceição Bueno, mais conhecida como Maria Bueno, a "santa" de Curitiba, é falar do povo paranaense, de sua história de seus costumes, da colonização e das marcas que o tempo não apaga, com esse cresce o mito, alicerçando a sua imagem e, principalmente, pode-se ver que os fatos antigos e suas conseqüências continuam atuais.

Toda comunidade tem seu santo doméstico, aquele consagrado pela fé popular, sem a necessidade de documentos comprobatórios. Basta ver em cada cemitério, dificilmente deixará de haver um túmulo que não esteja impregnado de uma "aura" especial, de placas e velas votivas. Seu único elemento é a fé, simplesmente a fé.

A história de Maria Conceição Bueno remete-se ao século XIX, mais precisamente ao ano de 1893. Período de transição, quando o Brasil, já República, reconhecia-se ainda com modos de Império.

Trata-se de um crime passional, conforme relatos de jornais da época( Gazeta e Jornal do Comércio entre outros), praticado com requintes de barbaridade, onde o "anspeçada" ( cargo entre soldado e cabo na hierarquia militar da época) praticamente degolou a sua vítima, após lhe infringir sofrimentos, dos quais as marcas deixadas em seu corpo, narravam a extensão.

Conforme relatos em jornais e livros posteriores à época do crime, Maria Bueno era mulher pobre, cerca de trinta anos de idade, de cor parda e provedora de seu próprio sustento, que tinha um relacionamento afetivo com seu algoz, Ignácio José Diniz, um paraibano, que servia no Quartel.

O criminoso foi a julgamento, pois acabou por confessar o crime, mas foi absolvido, e seu defensor usou os argumentos de que as provas seriam apenas circunstanciais e que sua confissão havia sido obtida sob tortura, e mesmo que o fato fosse claro, sempre haveria o inquestionável argumento da "legitima defesa da honra", hoje banido, e já foi tarde, dos pisos de nossos Tribunais.

Como a absolvição não se deu por unanimidade, um voto contrário apenas, pode a promotoria recorrer e o réu aguardou preso por novo julgamento.

Em 1894, um ano após o crime, Curitiba foi invadida pelas tropas federalistas gaúchas, os "maragatos", e seu líder revolucionário, Gumercindo Saraiva, mandou abrir as portas da Cadeia Pública. Diniz aproveitou-se do fato e juntou-se às tropas federalistas, mas pouco depois, envolveu-se no assassinato de um comerciante e foi condenado pelo mesmo Gumercindo que o libertara, sendo sumariamente fuzilado pela tropa em que se encontrava, não sem antes ter suplicado por sua vida, conforme relatos da época.

Muitos aí vêm a Justiça Divina, interferindo pelos seus. Inicia-se na ocasião o vislumbre do poder de Maria Bueno, com o castigo de seu assassino.

A fé nessa santa popular, não reconhecida pela Igreja Católica, foi construída passo a passo com a força popular, onde o sofrimento antes da morte parece ter o condão de elevar alguém à santidade, expurgando todos os seus pecados.

Maria Bueno era uma mulher de vida livre, que trabalhava para se sustentar, não tinha ascendência nobre e nem era casada. Andava pelos espaços públicos, por pura necessidade de sobrevivência, e isso, por si só, de acordo com os padrões morais da época, era suficiente para condená-la por antecipação, à condição de prostituta, ou cidadã de segunda classe, responsável por todo o mal que pudesse lhe acontecer.

A preocupação com o "zelo pela reputação feminina" é inserida, pela primeira vez, no Brasil independente, mas ainda Império, no Código Criminal de 1830, seguido pelo Código de Processo Criminal, em 1832. Os artigos 219 e 222 do Código Criminal tratavam especificamente do bem a ser a preservado como honra, a virgindade, com castigos severos a quem infringisse tais normas penais. Demonstravam uma proteção à figura feminina, ficando clara a sua inferioridade como ser humano, e sua honra, um bem social a ser protegido.

Também fica claro que a honra e honestidade eram um "bem" a ser protegido quando pertenciam a mulheres ditas "honestas", e a elas também competia comprovar essa condição. Não era raro, como também não é hoje, as mulheres fugirem dessa comprovação, pois são severos os "tribunais sociais", que ao proteger esses bens, também lhes diminui a condição de liberdade e do domínio do próprio corpo e comportamento. A dita proteção, nada mais era do que um modo de asseverar que a prole advinda de conjunção carnal, derivaria de um único varão, que assim assegurava sua imaculada descendência. No Código Penal de 1890, essa "proteção" à mulher também foi mantida com severidade.

Interessa observar que as penas aplicadas aos ofensores de mulheres públicas ou prostitutas eram bem menos severas do que as aplicadas às mulheres honestas. Fica aí implícita que a condição de mulher honesta ou a considerada "impura" relativizava os seus direitos, como se as agressões se dessem de maneira diferenciada em uma ou outra.

A história de Maria Bueno nunca deixa de ser atual. O que permite observar que mesmo com a evolução da legislação, o advento dos movimentos feministas, a inserção da mulher no mercado de trabalho, no mundo dos negócios e dos intelectuais, o sentimento de possessividade masculino ainda é bem marcante.

Não entendemos o sentimento de posse apenas como masculino e em relação à mulher, pois o contrário também acontece, inclusive com relação a outros bens e direitos. A humanidade em si é sensivelmente pródiga em litígios por posses, sejam essas da natureza que forem.

Procuramos observar o crime passional no contexto da moral, costumes e legislação vigentes no século XIX, bem como remetendo-nos a uma política migratória, que findava por discriminar aqueles que não possuíam ascendência, principalmente européia, fundando uma cultura que procurava enraizar seus costumes em solo estrangeiro.

O final do século XIX, época do crime, foi típico na história do Brasil, tendo esse sido palco de vários movimentos abolicionistas e de transição do regime de Império para a República.

Foram tempos turbulentos, onde os escravos, recém libertos, procuravam estabilização e inserção social com a sua liberdade não planejada pelas autoridades que a concederam. Nascia aí uma nação que seria marginalizada, os cidadãos que não pertenciam a nenhuma classe social, os excluídos.

O fato de Ignácio José Diniz, o algoz de Maria Bueno, ter sido inocentado, mesmo que não por unanimidade, foi acompanhado pelos jornais, com a preocupação de que pudesse criar precedentes que facilitassem a repetição de crimes dessa natureza.

A criação de todo o fenômeno de santidade, deve-se ao fato, também, de ter assumido a vítima do século XIX, um papel que ainda é atual para muitas mulheres, e essas por sua vez, se identificarem com o sofrimento e toda a injustiça impingida a Maria Bueno, e que por não terem a quem ou a quê recorrer, recolhem-se ao único, inquestionável e mais cálido valor garantido ao ser humano: sua própria fé.

O que desperta atenção sendo assunto que merece aprofundamento e pesquisa, é a proliferação dos crimes ditos passionais e os chamados crimes do sexo. Com o aumento dos meios de comunicação, o alcance da informática e outros meios de mídia, crescem também o espanto e incredulidade perante as notícias de crimes dessa ordem.

Aqui, procuramos apresentar o crime passional que vitimou uma mulher solteira, parda, trabalhadora, provedora de seu próprio sustento, com um passado de rejeição e sofrimento, que tentava ser a senhora de seu próprio destino.

Tenha sido ela prostituta ou não sido, não é o que interessa, mas sim, tentarmos entender o que se passou na época, com a moral vigente, que não perdoava seu comportamento mais liberal, como parece não perdoar hoje, mais de cem anos passados. Mudaram as leis, os direitos foram assegurados no papel. Movimentos se fizeram, momentos históricos foram vividos, mas a realidade parece não ter mudado.

Surge-nos o questionamento: Seriam castigos mais severos, seriam leis mais fechadas que resolveriam o problema?

Se ao homem cabe o papel de fazer leis e aplicá-las em cada caso, com suas nuances, moral e costumes, cabe aos mártires intercederem pela justiça necessária, na verdade de cada um. Se na justiça comum, a verdade pode ser dita sob várias vertentes e vários contextos, ao Divino cabe apenas uma só, a única, e é a essa que recorre o povo, tão próximo das tragédias e desprotegido pelo acaso e interesses,que vive as paixões cotidianas, tão distantes da solidariedade social, e perto do descaso dos excluídos socialmente.

                O exercício da cidadania é solitário, não é social. Não vagueia pelo acompanhamento das votações das leis, não permeia pelas prisões ou pelas ruas, não vai às Assembléias nem aos julgamentos nem às escolas, principalmente. Não entende cada um. Programas são massificados, por poucos que os oferecem a muitos, sem qualquer exercício solidário. A posse das coisas prevalece, mas não a luta pela igualdade de direitos e respeito pelas diferenças.

Autora: Julia I. Koster

Advogada e doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais.