MARCO REGULATÓRIO DO PROCESSO DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA

Por André Fábio de Souza


1. INTRODUÇÃO


Este artigo propõe uma discussão sobre a constituição do marco regulatório do processo de transferência de tecnologia das universidades e centros de pesquisa públicos brasileiros para as empresas privadas. O tema pode parecer recente , mas já passaram mais de quarenta anos da publicação do artigo de Sábato & Botana (1968), no qual propunham uma ação múltipla e coordenada de três elementos fundamentais para o desenvolvimento da sociedades contemporâneas: o governo, a estrutura produtiva e a infraestrutura científico-tecnológica. No entanto, a proposição desses autores continua atual e se pode observar que há um longo caminho para que haja uma melhor inter-relação entre esses elementos.

2. RELAÇÃO EMPRESA, GOVERNO E UNIVERSIDADE

A pirâmide de Sábato ? constituída em seus vértices pelo governo, empresas e universidades ? indica a importância de inter e intra-relações entre estes elementos para que haja desenvolvimento tecnológico de longo prazo (no caso do artigo específico, na América Latina).
Nesse sentido, o papel das universidades e institutos científico-tecnológicos públicos vai além de fornecer mão de obra qualificada para o mercado de trabalho e as possibilidades de interação entre os vértices da Pirâmide (e a universidade é um dos vértices) se expandem à medida em que se expandem as necessidades da própria sociedade contemporânea.
A dinâmica das universidades é distinta da das empresas privadas, mas isto não significa que não seja possível uma interação produtiva entre elas. Há vários mecanismos de relacionamento: um deles é a própria adequação de currículos, de cursos e de programas de curso de forma a atender a algumas especificidades do mercado de trabalho, outro mecanismo é a realização de eventos e programas de extensão universitária e de estágios curriculares ou não; e mais recentemente, outra forma de interação tem chamado a atenção de pesquisadores e formuladores de políticas públicas na área tecnológica: é a possibilidade de transferência de tecnologia produzida na universidade para as empresas privadas.
A tecnologia, como condição e elemento próprio da inovação, passou a ser variável endógena dos modelos de crescimento econômico somente na segunda metade do século XX (Cf. Jones, 2000). Entretanto, ter a tecnologia e não ter a inovação e a difusão que lhes corresponda pode limitar o desenvolvimento tecnológico de longo prazo. Disto resulta a necessidade de transferir tecnologia. Como afirma o relatório do International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD) "There is no single definition for 'transfer of technology'. In general, however, 'transfer of technology' can be defined as the transfer of systematic knowledge for the manufacture of a product, for the application of a process, or for the rendering of a service?" (2008, p.2-3). Isto significa dizer, que a transferência de tecnologia não é somente a compra de uma máquina ou software novos, mas, sim, um processo complexo que incorpora tanto o conhecimento operacional da tecnologia a ser disponibilizada quanto dos mecanismo que sustentam essa nova tecnologia.
As universidades brasileiras são reconhecidas pela sua importância na geração de conhecimento e como elo importante para que o país não se distancie das tecnologias de ponta disponíveis nos países mais desenvolvidos, e em alguns casos, possa estar a frente na produção dessas tecnologias. A questão é como as universidades públicas podem transferir tecnologia para o setor privado? Que fundamentos jurídicos garantem a realização de contratos de compra e venda de tecnologia por parte de instituições públicas federais? Em outras palavras, qual é o marco regulatório que permite com razoável segurança jurídica, a elaboração de contratos de transferência de tecnologia entre universidades públicas e empresas privadas.

3. MARCO REGULATÓRIO DO PROCESSO DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA

Marco regulatório pode ser entendido como um conjunto de normas, leis e diretrizes que regulam o funcionamento de determinado setor ou determinada atividade em um país. Como o processo de transferência de tecnologia não é um fenômeno recente ? é conhecido desde o inicio da Revolução Industrial inglesa , o seu marco regulatório vem sendo constituído ao longo do tempo. Nas últimas décadas, com o desenvolvimento cada vez mais rápido das tecnologias nos diversos segmentos produtivos, o rol que consubstancia a legislação sobre o tema teve que ser alterado com maior freqüência.
No Brasil, basicamente são três os documentos legais que constituem o marco regulatório nesta área: as disposições do Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/02) , a Lei de Propriedade Industrial ( Lei nº 9.279/96) e a Lei de Inovação (Lei 10.973/04) .

3.1 Transferência de tecnologia no Código Civil Brasileiro

Os mecanismos de transferência de tecnologia de uma organização para a outra não são fenômenos recentes. A questão é que a velocidade, a quantidade e o valor econômico destes fenômenos ganharam mais importância com a globalização.
Analogicamente à transferência de bens materiais, a transferência de tecnologia entre dois sujeitos está previsto em duas formas:

Bem material Bem imaterial
compra e venda Cessão
Locação (aluguel) Licença (royalty)
Adaptado de CARVALHO (2009, p. 11)


Tanto na previsão de que a forma seja de cessão ou de licença, ainda, há possibilidade de que estas sejam onerosas ou gratuitas, constituindo tipologias distintas de contratos. Essa tipologia pode ser assim resumida:

Licença Onerosa ==> Aluguel
Gratuita ==> Comodato
Cessão Onerosa ==> Compra e venda
Gratuita ==> Doação
Adaptado de CARVALHO (2009, p. 12)

Essas formas de contrato (de aluguel, de comodato, de compra e venda e doação) são institutos previstos no código civil brasileiro (Lei Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
Os contratos de locação de coisas, em que uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição, estão regidos pelos artigos 565 a 578.
Os termos dos contratos de comodato, definido como empréstimo gratuito de coisas não fungíveis, são apresentados nos artigos 579 a 585.
Os contratos de compra e venda, como espécies de contrato, estão normatizados nos artigos 481 e seguintes.
E finalmente a doação como contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, é discutida do artigo 538 ao 564 do Código Civil.

3.2 Transferência de tecnologia na Lei de Propriedade Industrial

O código civil não trata especificamente de contratos de transferência de tecnologia, embora estabeleça elementos que são comuns a bens materiais e imateriais. Dessa forma, se faz necessário aprofundar nossa análise na busca de uma aproximação com a especificidade dos contratos deste último tipo.
Nesse sentido, a Lei Nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial é mais específica.
Nessa norma, as categorias contratuais de propriedade industrial são as seguintes:
A) Licenciamento de direitos: que pode se dar por meio de exploração de patente ou de uso de marca;
B) Aquisição de conhecimentos: que pode se dar por fornecimento de tecnologia, por prestação de serviços de assistência técnica e científica e por franquias
O pedido de patente ou a patente, ambos de conteúdo indivisível, poderão ser cedidos, total ou parcialmente.
Em se tratando de transferência de tecnologia, segundo o artigo 59 da citada Lei, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) fará as seguintes anotações:
I - da cessão, fazendo constar a qualificação completa do cessionário;
II - de qualquer limitação ou ônus que recaia sobre o pedido ou a patente; e
III - das alterações de nome, sede ou endereço do depositante ou titular.

3.3 Transferência de tecnologia na Lei de Inovação

Na Lei de Propriedade Industrial as empresas encontram um respaldo jurídico para suas atividades de P&D e para a posterior transferência de titularidade dos frutos desse investimento. Entretanto, falta ainda verificar a especificidade em relação às instituições científicas e tecnológicas públicas. Os elementos conceituais presentes nas relações privadas continuam valendo, as questões são a sua aplicabilidade desses conceitos, as relações econômicas e as implicações institucionais decorrentes da transferência de tecnologia de um ente público para um privado.
Nesse caminho, a Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, que dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e que é conhecida como a Lei da Inovação, assim como o Decreto nº 5.563, de 11 de outubro de 2005, que a regulamenta, dão um passo importante.
Essa lei estabelece uma nova visão sobre as relações entre conhecimento e inovação e sobre o papel dos agentes e instrumentos que estão involucrados nestas relações. Gestada em um contexto de integração de políticas públicas, a Lei de inovação está intrinsecamente relacionada às políticas educacionais, industriais e tecnológica do País.
Como define o Ministério de Ciência e Tecnologia *, em sua análise desta normativa, este marco regulatório está organizado em torno de três vertentes: a) constituição de ambiente propicio às parcerias estratégicas entre as universidades, institutos tecnológicos e empresas. b) estimulo à participação de instituições de ciência e tecnologia no processo de inovação, e c) incentivo à inovação na empresa.
O espírito da lei é criar um ambiente dinâmico que incentive a inovação. Nesse ambiente, as empresas, governo e institutos científicos e tecnológicos estabelecem uma relação sinérgica para a que o conhecimento produzido nas universidades e institutos se transforme em inovação (processos e/ou produtos) nas empresas e desta forma, contribuindo ainda mais para o desenvolvimento industrial do País.
Para isso vários mecanismos estão previstos na Lei:
Um deles é a possibilidade de a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as respectivas agências de fomento estimular e apoiar a constituição de alianças estratégicas e o desenvolvimento de projetos de cooperação envolvendo empresas nacionais, Instituição Científica e Tecnológica (ICT) e organizações de direito privado sem fins lucrativos voltadas para atividades de pesquisa e desenvolvimento, que objetivem a geração de produtos e processos inovadores.
Um segundo mecanismo é a autorização para que as ICT possam compartilhar seus laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações com microempresas e empresas de pequeno porte em atividades voltadas à inovação tecnológica, para a consecução de atividades de incubação. Permite também a utilização dos laboratórios, equipamentos, instrumentos, materiais e demais instalações existentes nas próprias dependências da ICT por empresas nacionais e organizações de direito privado sem fins lucrativos voltadas para atividades de pesquisa.
Em relação à transferência de tecnologia propriamente dita, a Lei de inovação é, das normativas que constituem o marco regulatório, o mais específico. Ela estabelece várias formas de transferência entre os quais: a comercialização de criação desenvolvida pela ICT, a prestação de serviços e o estabelecimento de parcerias para o desenvolvimento de produtos e processos inovadores.
Quanto à comercialização de criação desenvolvida pela ICT, em seu artigo 6o , a Lei faculta à ICT celebrar contratos de transferência de tecnologia e de licenciamento para outorga de direito de uso ou de exploração de criação por ela desenvolvida. Nos artigos seguintes se detalha como se dará esta transferência estabelecendo regras tanto em relação ao processo quanto em relação aos resultados de pesquisas de inovação provenientes de contratos entre ICT e empresas privadas.
A Lei determina que quando essa contratação for feita com cláusula de exclusividade, a transferência deverá ser precedida da publicação de edital. Entretanto, quando não for concedida exclusividade ao receptor de tecnologia ou ao licenciado, os contratos poderão ser firmados diretamente entre as partes.
A legislação determina também que a empresa detentora do direito exclusivo de exploração de criação protegida perderá automaticamente esse direito caso não comercialize a criação dentro do prazo e condições definidos no contrato, podendo a ICT proceder a novo licenciamento.
Quanto à prestação de serviços tecnológicos e para a inovação, a Lei faculta à ICT prestar a instituições públicas ou privadas serviços voltados à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo. Neste caso, o servidor, o militar ou o empregado público envolvido na prestação de serviço poderá receber retribuição pecuniária, diretamente da ICT ou de instituição de apoio com que esta tenha firmado acordo, sempre sob a forma de adicional variável e desde que custeado exclusivamente com recursos arrecadados no âmbito da atividade contratada
Quanto ao estabelecimento de parcerias para o desenvolvimento de produtos e processos inovadores, a Lei afirma que é facultado à ICT celebrar acordos de parceria para realização de atividades conjuntas de pesquisa científica e tecnológica e desenvolvimento de tecnologia, produto ou processo, com instituições públicas e privadas e que as partes deverão prever, em contrato, a titularidade da propriedade intelectual e a participação nos resultados da exploração das criações resultantes da parceria.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O marco regulatório para transferência de tecnologia das ICT para as empresas é constituído de um conjunto de normas, das quais, as mais relevantes são o Código Civil brasileiro, a Lei de Propriedade Industrial e a Lei de Inovação.
As normas, assim como a própria sociedade, são dinâmicas e devem avançar no sentido de propiciar o melhor ambiente para a integração entre governo, universidades e empresas. Neste sentido, cabe um esforço conjunto (tanto das empresas, quanto das universidades e governo) para verificar quais são os efetivos gargalos a serem vencidos e quais são as manifestações de resistência a este novo modo de ver essas relações.
O conhecimento não pode mais ser enclausurado na academia. Ele deve se esparramar no tecido industrial produtivo e gerar novos produtos, processos e por conseqüência, desenvolvimento para o País.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Publicada no D.O.U de 11 de janeiro de 2002. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm

BRASIL. Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Publicada no D.O.U de 3 de dezembro de 2004. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.973.htm

BRASIL. Lei nº 9.279 de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Publicada no D.O.U de 15 de maio de 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L9279.htm

CARVALHO, Pedro E. de. Curso de contratos de transferência de tecnologia [slide]. Florianópolis, 2009. Curso apresentado na Universidade Federal de Santa Catarina em 12 jun. 2009. Disponível em http://www.inova.unicamp.br/download/artigos/Contratos_de_Transferencia_de_Tecnologia-artigo.pdf

INTERNATIONAL CENTRE FOR TRADE AND SUSTAINABLE DEVELOPMENT (ICTSD). Climate change, technology transfer and intellectual property rights. Trade and Climate Change Seminar, Copenhague (Dinamarca), junho de 2008.

JONES, Charles I.. Introdução à teoria do crescimento econômico. Rio de Janeiro: Elsevier: Campus, 2000

SÁBATO, Jorge. & BOTANA, Natalio. La ciencia y la tecnología en el desarrollo futuro de América Latina. In Revista de la integración, INTAL, Buenos Aires, ano 1, n. 3, nov. 1968, p. 15-36