Maquiavel e o golpe militar de 1964:
O Príncipe e a ditadura brasileira à luz da Teoria Geral do Estado

Camila da Fonsêca Aranha


O presente artigo se propõe a realizar uma breve comparação entre as principais características do golpe militar brasileiro de 1964 com os ideais e princípios para uma eficaz manutenção do Estado, segundo Nicolau Maquiavel em sua obra O Príncipe e com os institutos de Ciência Política com Teoria Geral do Estado. Para tanto, inicialmente será feita uma contextualização histórica dos precedentes do golpe, com a finalidade de melhor sistematizar a abordagem desenvolvida, a qual terá ênfase na importância da fortificação militar própria de um Estado, que refletirá em sua capacidade de manter-se no poder por mérito seu.
O ambiente que precedeu o golpe era de tensão e pressões por parte da opinião divida da Força Armada e da população. Houve manifestos realizados por determinadas divisões da Força Armada que posicionavam-se contra a posse do então vice-presidente João Goulart à presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Tais divisões alegavam que Jango não poderia assumir por motivos de "segurança nacional", insistindo que ele teria espírito agitador e comprometimento com interesses comunistas ? em virtude de suas ligações diplomáticas com o governo chinês. Estes grupos da Força Armada contariam, posteriormente, com o apoio das elites e da classe média ? burguesia.
Entretanto, havia oficiais que defendiam o respeito à legalidade, i.é., a possa de João Goulart à presidência. Em decorrência desta oposição de ideologias, na qual uma declarava que o mais prudente seria proteger o país de ideários comunistas, porquanto a outra posicionava-se a favor do que é previsto na constituição, se estava diante de uma dissonância cognitiva que necessitava ser conciliada. O princípio da legalidade e respeito à constituição prevaleceu e Jango assumiu a presidência em 2 de setembro de 1961, inicialmente de modo parlamentarista e, em 1963, um plebiscito realizado nesse ano decidiu pela volta do presidencialismo. Pode-se considerar, então, que o governo presidencialista de João Goulart era legal e legítimo ? possuía a aceitação e consentimento da maioria da população.
Adentrando propriamente no "manual" elaborado por Maquiavel, que contemplava instruções a respeito de como ascender e se manter na soberania de um Estado, Jango se precipitou ao tentar contribuir essencialmente para uma determinada parte da população, neste caso o trabalhador urbano e rural, com suas reformas de base (agrária, tributária, financeira e administrativa). O presidente praticamente não voltou o olhar para a classe burguesa, e as tais reformas além de não interessarem à ela, não eram vistas com bons olhos. Maquiavel deixa claro que o soberano deve implantar medidas que não o tornem odiado pela população; do contrário, esta pode conspirar contra ele e, caso tenha apoio suficiente, dar um golpe de estado.
A crise econômica agravava no país em virtude da cessação de apoio de capital estrangeiro norte-americano ? o qual constituía-se como indispensável à renegociação da dívida externa e financiamento de empresas e desenvolvimento ?, devido ao caráter de esquerda do governo de Jango, bem como do enfoque nacionalista empregado em seus discursos, muitas vezes violentamente antiamericano. A economia brasileira encontrava-se praticamente perdida, o que incomodava, principalmente, as elites produtoras e consumidoras.
Partindo de interesses subjetivos, i.é., que visam uma ilusória probabilidade de recompensa, e de uma ideologia ortodoxa, João Goulart, no comício da central do Brasil-RJ em 1964, radicalizou-se em seu discurso ao proferir a continuidade de suas intenções de reforma agrária, uma futura "reforma urbana" e promessa de mudança dos impostos com o objetivo de taxar os mais ricos. Esta sua posição advinda de opiniões pessoais e desconsiderando e superestimando os interesses das elites burguesas, dos proprietários de imóveis e da Força Armada, e não refletindo acerca das conseqüências que tais atos trariam para seu governo, Jango apenas acelerou a conspiração que visava derrubá-lo.
Desta forma, com a revolta dos marinheiros no Rio de Janeiro e contando com o apoio das elites burguesas, o golpe militar foi iniciado em março de 1964, sendo o movimento vitorioso em abril do mesmo ano e aderido por praticamente todas as unidades militares do país. Com relação à análise da natureza legal do golpe, pode-se afirmar que, por este tipo de tomada do poder não ser prevista na constituição, foi um ato ilegal desenvolvido por meio da coação das tropas militares próprias ? aspecto este que será abordado com mais profundidade no decorrer da análise.
No que concerne à natureza legítima do golpe, pode-se obter respostas opostas dependendo do ângulo analisado. As forças armadas e as elites burguesas apoiaram o golpe ? estas por se sentirem prejudicadas por causa das medidas tomadas por Jango e por terem seus interesses de consumo e produção "vetados", em virtude da crise econômica, e as primeiras por estarem insatisfeitas com o caráter esquerdista que vigorava, pois eram patrocinadas pelo governo norte-americano e pelos interesses burguesas, mas somente se o país não tivesse tendências socialistas ?, logo, sob este ponto de vista, o golpe era legítimo. Porém, se as massas populares e proletariados forem levados em consideração, o golpe era ilegítimo, afinal estas classes eram favoráveis ao governo Jango, pois seus interesses estavam sendo considerados.
A respeito das tropas militares e fortificação deste novo Estado que iniciara, Maquiavel trata acerca desta questão de maneira intensificada. Para ele, um bom Estado, que pudesse ser capaz de se manter no poder, seria aquele que possuísse uma grande fortificação militar, com tropas próprias bem treinadas e dispostas a defender sua pátria e seu rei. Acrescenta ele que o Estado bem fortificado sempre será atacado com hesitação, será temido (não confundir as idéias de ser temido e ser odiado) e respeitado. De fato o Estado militar brasileiro incitava temor e medo na população por questões de eficiente fortificação, tanto é verdade que não houve nenhum tipo de resistência imediatamente à aplicação do golpe, pelo temor com relação à atitude das tropas "intimidadoras". Porém, as atividades realizadas durante este período romperam com a proporcionalidade maquiavélica de promover atitudes que agradassem aos dois lados da população, massas populares e elites. O exagero da violência moral e, principalmente, física ? ou seja, da coação ? contribuiu para que o Estado se tornasse odiado pela maioria da população, e não somente pelas massas populares, na medida em que, cada vez mais, a liberdade era controlada e a oposição a qualquer aspecto do governo era fortemente e constantemente repreendida.
Objetivando a "limpeza" do país, logo que tomaram o poder os militares trataram de criar novas leis ? que, segundo Maquiavel, é uma das primeiras atitudes que um príncipe deve ter ao assumir o poder ?, tornando legal não somente todos os atos repreendedores que viriam a praticar, mas também legalizando sua situação no poder; ambos por meio dos Atos Institucionais.
O regime militar durou 21 anos (de 1964 à 1985), e até meados de 1975, momento de redemocratização e fechamento da censura, o país era fortemente bombardeado de propagandas altamente recheadas de influências políticas. Ninguém mais segura este país, Pra frente Brasil, entre outras, desejavam repercutir o ideário de que o regime militar estava sendo positivo na questão do "milagre econômico". Na verdade, isto apenas tratava-se de persuasão manipulativa, pois o tal "milagre" (paradoxo em sua essência, pois gerou uma acentuada desigualdade de distribuição de renda e aumento da dívida externa) só era possível devido ao investimento de capital norte-americano, que só o fazia na condição de que o país fosse considerado seguro, i.é., por meio da manutenção do alto caráter repressor do regime, o qual impedia qualquer espécie de discussão a respeito de assuntos com nuances esquerdistas. Por meio de uma indução norte-americana, o regime militar brasileiro mantinha-se opressor e, como prêmio, recebia o apoio do capital estrangeiro.
Ainda que possuísse suas próprias leis, às quais a maior parte da população estava submissa, e uma eficaz fortificação militar, meios que, de acordo com Maquiavel, possibilitam a manutenção do poder, o regime militar fracassou. Seu fracasso pode ser explicado por diversos motivos, dentre eles o desgaste excessivo do regime (até mesmo aqueles que se beneficiaram do "milagre" estavam insatisfeitos), que se manteve no poder por 21 anos, em conjunto com a forte opressão da liberdade e violência física. Ademais, o regime militar não objetivava atos políticos em si, ou seja, o bem comum, mas sim interesses arbitrários de determinados grupos; inclusive as leis eram criadas a partir deste poder arbitrário, haja vista que o seu cumprimento os beneficiaria. Porém, à medida com que estes grupos foram percebendo a ineficácia do "milagre" e do próprio governo militar, não concediam mais credibilidade aos governantes; então estes, por sua vez, iam perdendo seus aliados e, conseqüentemente, seu apoio político.
Em suma, pode-se afirmar que o regime militar brasileiro foi pautado em uma ideologia extremista que se valia apenas de interesses subjetivos e opiniões de determinados grupos sociais, os quais resistiam e até mesmo desconsideravam as informações e conselhos de outrem, resultando na ilusória probabilidade da realidade.
Como afirma Maquiavel, o soberano que se torna temido, porém não odiado, não corre o perigo de que o poder lhe seja tomado.
Conforme explica em O Príncipe (2008, p.87):

Ora, um dos remédios mais eficazes que um príncipe possui contra as conspirações é não se tornar odiado pela população, pois quem conspira julga sempre que vai satisfazer os desejos do povo com a morte do príncipe; se julgar, porém, que com isso ofenderá o povo, não terá coragem de tomar tal partido, porque as dificuldades com que os conspiradores teriam que lutar seriam infinitas.

Com esta citação de Maquiavel, conclui-se que, apesar de ter se tornado temido em virtude de sua grande fortificação, o regime militar brasileiro de 1964 exacerbou do poder que possuía, tornando-se odiado e ilegítimo pela maioria da população, sendo, então, lhe tomado o Estado.