Resumo: Este trabalho procura estabelecer uma melhor definição do instituto do direito líquido e certo em Mandado de Segurança. Busca, em verdade, facilitar a compreensão dos conceitos de liquidez e certeza, separando-os dentro da sua unidade essencial, desfazendo, assim, certa confusão doutrinária estabelecida em torno do conceito de direito líquido e certo. Demonstra que, apesar de correto, em princípio, o conceito de direito líquido e certo fornecido pelos nossos jurisconsultos, ele peca por não fazer uma diferenciação mais precisa entre os dois elementos, já que o direito pode ser certo e, ao mesmo tempo, ilíquido ou pode ser líquido e, ainda assim, não acobertado pelo manto da certeza, o que impediria o manejo do remédio constitucional por ausência de requisitos à propositura da ação. A liquidez refere-se ao próprio direito violado (ou prestes de sofrer violação por parte de autoridade), que deverá apresentar-se líquido ou exercitável no momento em que a pretensão específica, evidenciada nos fatos, for deduzida em juízo. A certeza, porém, alude ao fato em si, que deve estar provado de plano, documentalmente. A liquidez diz: Eu tenho um direito e comprovo o preenchimento de todas as exigências e formalidades legais para defendê-lo em juízo. Já a certeza afirma: Eu tenho um direito e comprovo o fato da sua violação (ou ameaça) por parte de autoridade.

Palavras-chave: Mandado de Segurança. Direito líquido e certo. Conceito de liquidez e certeza.

1. Introdução.

O Mandado de Segurança sofreu recente inovação legislativa com a introdução da Lei nº 12.016/2009 no ordenamento jurídico pátrio, norma festejada por muitos por trazer uma “consolidação de entendimentos da doutrina e jurisprudência acerca do chamado ‘remédio constitucional’, em especial quanto ao Mandado de Segurança Coletivo” (cf. FLORIANO, 2009). Entretanto, as alterações não foram plenamente satisfatórias, chegando a gerar críticas e polêmicas em torno de prováveis inconstitucionalidades, inclusive por parte da Ordem dos Advogados do Brasil.

No que se refere ao instituto do Mandado de Segurança, a doutrina e a jurisprudência pátrias têm adotado um conceito quase comum de direito líquido e certo, talvez até sem divergências significativas. Entretanto, apesar de correto, em princípio, o conceito de direito líquido e certo fornecido pelos nossos jurisconsultos, ele peca por não fazer uma diferenciação mais precisa entre liquidez e certeza, já que o direito pode ser certo e, ao mesmo tempo, ilíquido ou pode ser líquido e, ainda assim, não acobertado pelo manto da certeza, o que impediria o manejo do remédio por ausência de requisitos para a propositura da ação.

De acordo com Adhemar Ferreira Maciel (1998:5), “a essência do mandado de segurança está no direito líquido e certo”. Partindo dessa assertiva, temos por certa a necessidade de aclaramento do conceito de direito líquido e certo, inclusive de separação da liquidez e da certeza com o fim de facilitar a vida do operador do direito. Não significa, com isto, que a doutrina e a jurisprudência não tenham sido suficientemente competentes na definição do instituto. Ao contrário, os conceitos apresentados pelos juristas são adequados e, de certa forma, até satisfatórios; mas necessitam de certo brio para ficarem ainda mais completos.

Vejamos, inicialmente, o conceito que nos é fornecido pela doutrina. Para o saudoso professor Hely Lopes Meirelles, líquido e certo é o direito que se apresenta “manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da sua impetração”. Já para Vidal Serrano Nunes Júnior e Marcelo Sciorilli (2010:16), “líquido e certo é, pois, o direito comprovado no momento da impetração, vale dizer, que prescinde de outros meios de prova além daqueles que já acompanhavam a petição inicial”, sendo que “a prova que dá suporte à impetração deve ser, portanto, pré-constituída, na medida em que o rito célere conferido ao processamento do writ não dá suporte à abertura de dilação probatória”.

A falta de separação mais exata dos elementos liquidez e certeza leva muitos juristas a fazer certa confusão na hora de conceituar o instituto em comento. Por exemplo, Pedro Roberto Decomain (2009:31), ao falar sobre liquidez e certeza do direito, assevera que “a noção de liquidez e certeza do direito opera, pois, no terreno dos fatos”. Ou seja, o talentoso jurista, de reconhecida competência e destreza, não cuidou de afastar o que seja direito líquido daquilo que efetivamente é direito certo, colocando ambos no mesmo recipiente, circunstância que, de certa forma, dificulta a aplicação do direito, como veremos mais adiante.

A confusão dos conceitos de liquidez e certeza entre os doutrinadores fica ainda mais evidente quando apreciadas as palavras de Decomain (2009:32), abaixo transcritas:

Se os fatos dos quais pretende o impetrante ver nascido seu direito são daqueles que se pode comprovar, sem a possibilidade de questionamentos, com simples prova documental, então o direito é líquido e certo. Quando tal contexto não ocorre, ou seja, quando para provar o modo como se passaram os fatos a partir dos quais o impetrante pretende ver nascido seu direito em face da Administração Pública, existe a necessidade de lançar-se mão de outros meios, como perícia, depoimentos pessoais ou inquirição de testemunhas, então o direito pode até existir. Todavia, porque nesta hipótese não marcado pelo signo da liquidez e certeza, já não será defensável pela via do mandado de segurança. (Grifos acrescentados).

Os grifos acrescidos ao texto acima bem demonstram o teor dessa imprecisão conceitual que se estabeleceu no meio jurídico e acadêmico. Primeiro, o direito não nasce com os fatos (ao menos o direito líquido não); apenas se torna exercitável com eles. O próprio Decomain deixa transparecer isso no trecho acima, ao afirmar que, “quando, para provar [...], existe a necessidade de lançar-se mão de outros meios [...], então o direito pode até existir[i]. Esse direito que “pode até existir” é, na verdade, o direito líquido, aquele que, em mandamus, deve efetivamente existir em favor do impetrante no momento da impetração e que pode ser exercido prontamente. O direito “nascido dos fatos”, por sua vez, é o direito certo, aquele que se pode comprovar de plano e, portanto, depende dos fatos. É água do mesmo rio, que se bifurcou, mas que volta a se encontrar mais adiante, desaguando no mesmo açude.

A segunda (e consequente) confusão vem logo a seguir: após denominar o “direito nascido dos fatos” de direito líquido e certo, afirma que, naquela hipótese, o direito não estaria marcado pelo signo da liquidez e certeza. Na verdade, ali o direito não estaria caracterizado apenas pelo elemento certeza, pois ele, existindo para o impetrante (a subjetividade do direito invocado), geralmente é dotado de liquidez, dependendo, no caso, apenas de prova documental para tornar-se certo, conforme será dissecado nos capítulos adiante. Como temos plena confiança de que o preclaro jurista não tinha a intenção de estabelecer o equívoco acima, corrente na doutrina, sugerimos a releitura do seu texto da seguinte forma (que ele nos perdoe a ousadia):

Se os fatos dos quais pretende o impetrante ver protegido seu direito são daqueles que se pode comprovar, sem a possibilidade de questionamentos, com simples prova documental, então o direito é certo. Quando tal contexto não ocorre, ou seja, quando para provar o modo como se passaram os fatos a partir dos quais o impetrante pretende ver protegido seu direito em face da Administração Pública, existe a necessidade de lançar-se mão de outros meios, como perícia, depoimentos pessoais ou inquirição de testemunhas, então o direito pode até ser líquido. Todavia, porque nesta hipótese não marcado pelo signo da certeza, já não será defensável pela via do mandado de segurança.

 

1.1. Breve resumo histórico.

A expressão “direito líquido e certo”, em mandado de segurança, apareceu no nosso ordenamento jurídico somente a partir da Constituição de 1946, em seu art. 141, § 24,[ii] regulamentado pela extinta Lei nº. 1.533/1951. A Carta de 1934 usava a expressão “direito certo e incontestável” (art. 113, inciso 33)[iii], o que incitou a doutrina e a jurisprudência da época a admitir o mandamus apenas quando o direito se apresentar “translúcido, evidente, acima de toda dúvida razoável, aplicável de plano, sem detido exame nem laboriosas cogitações”, conforme definição dada pelo ministro Carlos Maximiliano (Apud: MACIEL, 1998:5).

Em segundo plano, e principalmente após a Constituição de 1946, os nossos jurisconsultos passaram a admitir o writ como “meio de resolver questões mais complexas desde que o fato alegado como base do direito subjetivo fosse certo e provado inequivocamente pelos documentos juntos à inicial.” (WALD, 1958:120. Apud: ARAUJO, 2010:19).Houve, portanto, uma evolução do conceito, inobstante forças anacrônicas insistissem em definir a nova expressão (“direito líquido e certo”) com base no antigo sistema, sendo essa insurreição prontamente sufocada pelas mentes magnânimas de então, que afastaram o grau de complexidade como elemento integrante dos requisitos específicos da ação mandamental.[iv]

2. Definindo o “direito líquido e certo”.

Conforme visto, anteriormente à Carta Magna de 1946 usava-se a expressão “direito certo e incontestável”. O termo, cremos, era impreciso e confuso, posto que apontava para o direito baseado precipuamente em fatos, esquecendo-se o constituinte que o direito não nasce com os fatos, embora seja exercido com base neles. Já a moderna expressão “direito líquido e certo”, introduzida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal por Pedro Lessa e adotada pela legislação em vigor, traduz com mais precisão a ideia do direito pronto para ser exercido e comprovado, apesar das críticas que lhe foram suscitadas na doutrina.

A nova LMS, como era de se esperar, manteve a liquidez e a certeza como requisitos da ação mandamental. Em nossa opinião, a primeira refere-se ao próprio direito violado (ou prestes de sofrer violação por parte de autoridade), que deverá apresentar-se líquido ou exercitável no momento em que a pretensão específica, evidenciada nos fatos, for deduzida em juízo. A segunda, porém, alude ao fato em si, que deve estar provado de plano, documentalmente. O fato tem que ser certo, preciso, comprovado de plano; o direito, líquido ou prontamente exercitável.

Melhor dizendo: O requisito liquidez (em writ) refere-se tão somente ao grau de disponibilidade de um direito ou à facilidade com que ele pode ser exercitado ou defendido em juízo. O direito, mesmo que simples ou complexa a questão, deve afigurar-se evidente, delimitado, exercitável, disponível e não encontrar qualquer embaraço formal no momento em que pretensão for posta ao crivo do Judiciário[v] (daí porque também entendemos inconcebível o manejo do mandamus para obter simples declaração da violação do direito). Já a certeza diz respeito ao fato, posto que somente este pode ser certo, isto é, comprovado de plano. Um direito é líquido e certo quando a parte, possuindo-o em potencial, comprova de plano o fato que o torna prontamente exercitável, portanto líquido.

2.1. A biunidade incindível do instituto.

Há, portanto, dois elementos que constituem o direito líquido e certo: o direito e o fato, ou a liquidez e a certeza. Em sede de writ, um não prescinde do outro – direito e fato se interligam “numa unidade incindível. Se o fato não está comprovado, o direito não incidiu” (BUZAID, 1989:89-90). O direito líquido (ou prontamente exercitável) é necessariamente factual, já que sua liquidez tem vida também na certeza do fato; e o fato (que deve estar comprovado de plano), para ser aquilatado pelo writ, deve vir encerrado na liquidez do direito como elemento indissociável deste. A ausência de um no processo representa a inexistência processual do outro. São distintos, porém indissolúveis. Vale reiterar: “Direito líquido e certo” não é somente o direito nem somente o fato – é a integração de ambos como único e essencial elemento para concessão da segurança, o todo que forma a unidade. Talvez tenha sido este o motivo da seguinte afirmação de Celso Agrícola Barbi (1966:55. Apud: BULOS, 1996:38):

O conceito de direito líquido e certo é tipicamente processual, pois atende a um modo de ser de um direito subjetivo no processo; a circunstância de um determinado direito subjetivo realmente existir não lhe dá a caracterização de liquidez e certeza; esta só lhe é atribuída se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo.

Tomemos exemplificativamente o conceito teológico da Trindade Santa. Assim como a expressão “trindade” serve para designar a união de três pessoas em uma só divindade (Deus, o Pai; Deus, o Filho; e Deus, o Espírito Santo), cada qual sendo, ao mesmo tempo, distintas, iguais e coexistentes numa só e individual natureza, assim também há uma união inseparável de dois elementos distintos, iguais em importância e incindivelmente coexistentes em único e individual requisito da ação mandamental, que é o direito líquido e certo. Extraia-se um deles, que o outro necessariamente deixará de existir.

2.2. Separando os elementos.

Tanto o direito líquido, quanto o direito certo dependem de comprovação instantânea, embora a prova dos fatos induza à certeza do direito, não propriamente à sua liquidez. Esta, a liquidez, deve vir comprovada por dados que demonstrem o preenchimento dos elementos processuais/formais, objetivos e subjetivos, e que apontem para existência do direito material para o qual se busca a proteção em juízo. A liquidez diz: Eu tenho um direito e comprovo o preenchimento de todas as exigências e formalidades legais para defendê-lo em juízo. Já a certeza afirma: Eu tenho um direito e comprovo o fato da sua violação (ou ameaça) por parte de autoridade.[vi]

Partindo desta concepção, vamos pegar emprestado um modelo de caso concreto mencionado na doutrina do juiz trabalhista José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva (2006, nota 88):

Dirigente sindical reclamando no mandado de segurança a sua reintegração, juntando cópia do estatuto do sindicato, da ata de eleição e posse, da notificação disso ao empregador e do aviso prévio em que foi comunicado de sua dispensa. O direito é líquido e certo porque ele é manifesto na sua existência, tendo em vista a comprovação de que o autor é dirigente sindical e foi dispensado sem justa causa, tendo direito à reintegração. Ele é delimitado na sua extensão porque na ata de eleição e posse consta o período do mandato do dirigente, ainda em curso. E ele é exercitável desde logo, tendo o autor direito de ser reintegrado imediatamente. Isso é direito líquido e certo.

Como vemos, o mencionado magistrado, fazendo uso do conceito dado por Hely Lopes Meirelles, realizou uma excelente explanação das circunstâncias que apontam para existência do direito líquido e certo na situação exposta. No entanto, não ficou destacado ali o que seria efetivamente a liquidez, tampouco o que é, de fato, a certeza, situação que, em outra conjuntura, poderia ser objeto de equívoco na hora de aplicar o direito.

Façamos agora a separação de ambas: o fato de que o autor é dirigente sindical e foi dispensado sem justa causa, comprovado através de documentos, é claramente a certeza, elemento do direito líquido e certo relacionado aos fatos; já o direito à reintegração é inequivocamente o requisito liquidez, posto que ele se apresenta “exercitável desde logo, tendo o autor direito de ser reintegrado imediatamente”. A soma das duas constitui o direito líquido e certo, cujo conceito fornecido por Meirelles é perfeito para defini-lo, desde que considerada a sua unidade incindível.

Vale apontar ainda que, dada a intrínseca relação entre o direito líquido e o direito certo (leia-se: “fato certo”) em matéria de mandado de segurança, a falta de liquidez pode decorrer, como sói acontecer, da ausência não aparente de certeza, não identificada na fase preliminar da ação (o direito aparenta-se líquido, mas o contexto indica diferentemente por ausência do elemento certeza). Isso acontece porque há uma linha muito tênue entre um e outro que os torna, algumas vezes, de difícil identificação. Nestes casos, é a falta de certeza que tornará ilíquido o direito, ou seja: ele não pode ser prontamente exercido por insuficiência dos dados que induzem à certeza.

2.3. Duas situações práticas.

Um caso prático, ocorrido na Bahia, foi o de uma professora, que ingressou com mandado de segurança para se manter liminarmente no cargo de professora municipal nível V, cuja posse havia ocorrido há mais de sete anos. Apesar da posse no cargo, a impetrante confessou que jamais exerceu a função, ficando a disposição da Câmara de Vereadores por ato verbal (não comprovado) da antiga Administração Municipal. Ao ser dispensada das suas funções no Legislativo, não foi readaptada no cargo de professora, pelo que pediu não somente sua “manutenção” neste, mas também a irredutibilidade dos vencimentos e o pagamento de verbas salariais e de férias.

Liminar concedida, fora interposto recurso de Agravo de Instrumento pelo procurador do Município, tendo a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia entendido, em Acórdão da lavra do MM. Desembargador Antônio Roberto Gonçalves, datado de 09/10/2007 (AI 15822-3/2007), o seguinte:

In casu, embora caracterizado o periculum in mora, devido ao caráter alimentar dos vencimentos da Autora/Agravada, não se verifica a presença do fumus boni iuris, a socorrer o pleito liminar, face a expressa confissão que não exerceu o cargo para o qual prestou serviço público, não adquirindo, portanto, estabilidade. Também, embora alegue que houve cessão verbal pelo Chefe do executivo para que permanecesse no cargo de confiança que exercia na Câmara de Vereadores, tais afirmações, não confirmadas por outras provas, não se traduzem em “prova inequívoca”, capaz de convencer o juiz da “verossimilhança da alegação”, conforme exigência do artigo 273, do Código de Processo Civil.

Mesmo diante desse entendimento sugestivo do Colegiado, a magistrada manteve seu raciocínio anterior e julgou procedente a ação mandamental, determinando a manutenção da autora/apelada no cargo de professora de língua portuguesa nível V e condenando o Município ao pagamento do salário de férias de 2006.

Observa-se que, se houvesse uma real compreensão da diferença entre liquidez e certeza pela magistrada, a ação não teria sido julgada procedente. Os fatos ali até poderiam afigurar-se certos, mas o direito não se apresentava líquido. Embora os fatos pudessem ser comprovados de plano (submissão a concurso público, aprovação e posse) e o direito em potencial existisse, este não estava disponível (não se mostrava líquido, portanto) e não poderia ser exercido por falta de preenchimento de requisitos outros, relacionados ao direito material invocado. Faltou à autora o exercício no cargo durante, no mínimo, três anos consecutivos para obtenção da estabilidade (CF, art. 41, caput). Faltou-lhe também a “posse de fato” (se é que se pode dizer assim), porquanto, embora haja formalmente tomado posse do cargo, nunca o fez efetivamente, deixando de entrar em exercício nos trinta dias seguintes.

A conclusão a que inevitavelmente podemos chegar é que a nobre julgadora se ateve à concepção genérica de que o direito líquido e certo se liga aos fatos. Quiçá apreciou corretamente a prova e a existência do direito material, mas deixou de observar a liquidez deste direito, inclusive no que atine às formalidades necessárias à sua aquisição e exercício. Na verdade, sequer havia prova cabal dos fatos alegados, pois a impetrante também não comprovou a cessão verbal a outro Poder. Tratava-se, portanto, de situação em que se deveria, no mínimo, encaminhar a autora às vias ordinárias, extinguindo o feito sem julgamento do mérito. 

Outro caso prático pode ser extraído da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, estampado no trecho de ementa abaixo transcrito:

[...] 4. A pretensão da impetrante/recorrente é obter ordem genérica e preventiva para que todos os veículos de seus associados que vierem a cometer a infração prevista no art. 231, VIII, do CTB, não sofram apreensões. Esse intento não revela hipótese compatível com a via do mandamus. Ao resumir o seu pedido a uma pretensão genérica, a impetrante não conferiu liquidez ao direito almejado, deixando de identificar ato concreto violador de seu direito. 5. O mandado de segurança é remédio adequado para afastar ofensa presente ou iminente a direito individualizado, particularizado, identificável, ou seja, retentor de plano dos pressupostos de liquidez e certeza exigidos pela Lei, e seu objeto é o ato administrativo específico. Não é meio para ser fixada regra de conduta a ser observada pela autoridade impetrada. 6. Recurso ordinário em mandado de segurança não-provido.[vii]

A questão explanada acima está relacionada a uma matéria de direito, qual seja: a formulação de pedido genérico em mandado de segurança. Ao invés de perseguir um provimento judicial em defesa de direito da classe ou categoria, ameaçado ou atingido por ato ilegal de autoridade, a parte impetrante procurou “obter ordem genérica e preventiva para que todos os veículos de seus associados que vierem a cometer a infração prevista no art. 231, VIII, do CTB, não sofram apreensões”, o que significaria impor “regra de conduta a ser observada pela autoridade impetrada”. Acertadamente, o STJ afastou a liquidez do direito, posto que a questão resumia-se a matéria de direito (pedido genérico); porém, diga-se de passagem, era caso inclusive de indeferimento direto da inicial uma vez averiguada a questão logo de imediato.

Portanto, saber identificar cada elemento do direito líquido e certo e manejá-los adequadamente com vista ao atendimento das condições da ação deve ser uma preocupação do operador do Direito. A partir do momento em que liquidez e certeza sejam plenamente identificáveis no caso concreto, ficará ainda mais fácil separar-se as razões para indeferimento liminar da inicial (ou os motivos que conduzem à carência de ação) dos elementos que, no mérito, acarretem o julgamento de procedência ou improcedência da ação.

2.4. Eventuais polêmicas em torno da súmula nº 625 do STF.

O teor da Súmula nº 625 do Supremo Tribunal Federal provavelmente gerará polêmicas relacionadas à tese ora defendida. Afinal, dispondo o enunciado desta súmula que “controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança”, não haveria como se promover adequada separação entre liquidez e certeza sem relacioná-las diretamente aos fatos. Daí resultaria totalmente improdutiva a discussão aqui fomentada em torno dos elementos liquidez e certeza do direito.

Conforme vimos, a concepção generalizada é que ambas – liquidez e certeza – se relacionam aos fatos. É conveniente relembrar aqui a lição de Margareth Michels Bilhalva (2009:30, nota 24), para quem a expressão “direito líquido e certo” deve ser entendida como “fato líquido e certo” por força do que dispõe a já mencionada Súmula 625 do STF. Diz a preclara jurista:

Onde a Constituição exige “direito líquido e certo” lê-se “fato líquido e certo”. Afinal, a controvérsia sobre a matéria de direito não impede o processamento do mandado de segurança, ao contrário da controvérsia sobre matéria fática, que causa a extinção do processo sem resolução de mérito. Com esta inteligência, a Súmula 625 do STF: “Controvérsia sobre matéria de direito não impede a concessão de mandado de segurança”

Considerando que a expressão “fato líquido” é incongruente, já que a liquidez (tomando-se emprestado o conceito da Economia) induz a ideia de facilidade com que um ativo pode ser convertido em dinheiro, presume-se que o fato deve estar sempre dotado de certeza (no caso do direito, deverá haver a certeza jurídica[viii]), mas apenas o direito pode ser aparelhado pela liquidez. Para fins de mandamus, o fato não pode ser líquido porque, tendo sido praticado, sua existência é dotada de concretude, ou seja, ele tem existência material, comprovada documentalmente. Apenas o direito, por ser algo abstrato, pode ser conduzido do campo da disponibilidade virtual para a esfera da disponibilidade prática, tornando-se, destarte, líquido.

Porém a expressão “fato certo” guarda plena coerência com o objetivo legal do mandado de segurança, já que, em direito administrativo, vige a regra de que todo ato de autoridade deve estar instrumentalizado, ou seja: para ter existência no mundo jurídico, ele deve apresentar-se formalizado através de documento e levado ao conhecimento público (princípio da publicidade). É a forma escrita que predomina no direito administrativo como regra geral, donde se conclui que “fato certo” quer significar o fato já ocorrido, que se encontra devidamente documentado (não dependendo de outras provas) e que pode ser comprovado de plano.

Retornando à redação da Súmula nº 625 do STF, temos por válida a lição de que “a controvérsia sobre a matéria de direito não impede o processamento do mandado de segurança, ao contrário da controvérsia sobre matéria fática, que causa a extinção do processo sem resolução de mérito”, conforme a preleção de Bilhalva. Espera ai: Acaso não podem ocorrer situações em que a questão de direito impeça o processamento do mandado de segurança? Sim, e é por isso que, à Súmula em comento, não se pode emprestar interpretação tão ampla, como tem sido feita.

O que a frase “controvérsia sobre a matéria de direito não impede o processamento do mandado de segurança” quer efetivamente significar é que a dificuldade de interpretação ou aplicação da matéria de direito não impede o processamento do mandado de segurança. Aliás, esta exegese da súmula está em pleno acordo com o que parte da doutrina ensina. Vejamos, por exemplo, a lição de Hely Lopes Meireles sobre o assunto:

Quanto à complexidade dos fatos e à dificuldade da interpretação das normas legais que contêm o direito a ser reconhecido ao impetrante, não constituem óbice ao cabimento do mandado de segurança, nem impedem seu julgamento de mérito. Isto porque, embora emaranhados os fatos, se existente o direito, poderá surgir líquido e certo, a ensejar a proteção reclamada. Bem por isso, já decidiu o TJSP que: “As questões de direito, por mais intrincadas e difíceis, podem ser resolvidas em mandado de segurança” (RT 254/104).

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007:711. Apud: NUNES JÚNIOR e SCIORILLI, 2010:15), que também defende a ideia generalizada de que o direito líquido e certo refere-se [apenas] aos fatos, leciona que, “estando estes devidamente provados, as dificuldades com relação à interpretação do direito serão resolvidas pelo juiz”. Portanto, o que a súmula em comento está efetivamente dizendo é que o juiz não pode deixar de apreciar a ação mandamental por dificuldade de interpretação da lei ou da matéria de direito.

3. Considerações Finais

A importância do instituto do Mandado de Segurança para a sociedade é enorme, pois contribui inequivocamente para a construção de uma sociedade mais livre, fraterna e igualitária, ajudando a extirpar, de forma imediata, os resquícios de autoritarismo em que se arvoraram os poderosos no passado (ainda próximo) na administração da res publica e que ainda teima em persistir nos tempos atuais.

Expressão própria do chamado Estado de Direito, o mandamus, juntamente com outros remédios heroicos, serve como fiel da balança na luta social contra os desmandos do Poder Público, lembrando a este que também deverá se submeter às leis que ajudou a criar e das quais se tornou responsável pela execução. O Mandado de Segurança assume, portanto, relevante papel na proteção dos direitos dos cidadãos e é, por isso mesmo, fruto maduro do regime democrático e garantia fundamental assegurada na Constituição Republicana. Trata-se do mais perfeito instrumento processual para a defesa dos direitos fundamentais do cidadão.

Dada as características peculiares do instituto, cujo rito deve pautar-se na celeridade – sua característica principal –, a exigência legal de prova pré-constituída, ao invés de apresentar-se como embaraço à defesa dos interesses da parte autora, afigura-se como verdadeira manifestação de democracia, já que visa restringir o tempo que o formalismo do contraditório demandaria, o que – certamente – resultaria em prejuízos aos interesses do tutelado.

É com esse desígnio que o denominado “direito líquido e certo” assume posição de destaque na ação mandamental, ao ponto de tornar-se o próprio cerne do instituto, ou sua conditio sine qua non, pois a segurança não poderá ser deferida se verificada sua ausência desde o início da ação. Em sede de writ, tudo gira em torno da liquidez e da certeza do direito, sendo estes dois elementos do direito o próprio sol no sistema heliocêntrico, não se desprezando aqui a relevância que o ato coator assume ao lado de ambos.

Muito se poderia escrever sobre o direito líquido e certo, mas o objetivo principal do presente trabalho foi exatamente refutar a opinião generalizada de que ele se refere tão somente aos fatos, o que não nos parece plausível do ponto de vista teórico, já que existem inúmeros julgados indeferindo a pretensão por questões relacionadas meramente ao direito material defendido em juízo, especialmente por este aparentar-se ilíquido – ou seja, não exigível ou não passível de defesa em juízo –, mas não por causa da prova ou dos fatos em si.

A separação entre liquidez e certeza defendida no presente trabalho propende, portanto, a facilitar o trabalho do operador do direito na identificação dos ingredientes que deverão integrar a ação mandamental, cujas exigências não se prendem apenas aos fatos, mas também às questões de direito e relativas ao direito defendido em juízo.

É por isso que o magistrado, ao apreciar o pedido mandamental, deve fazer duas perguntas básicas antes de julgar: Comprova o autor que possui o direito alegado? Se sim (i.é, possuindo o autor o direito alegado), comprova ele o preenchimento de todas as condições legais para defendê-lo em juízo? Se as respostam forem positivas para ambas as perguntas, estar-se-á diante do elemento liquidez. Também deverá o juiz inquirir-se: Possuindo o autor o direito alegado, comprova ele o fato da sua violação ou ameaça por parte de autoridade? Sendo positiva a resposta, presente estará o requisito certeza, elemento do direito líquido e certo que se prende diretamente aos fatos. O direito defendido em juízo é, conforme dito, a argamassa que une os dois elementos acima, tornando-os inseparáveis. Por isso, entendemos ser mais que adequada a expressão constitucional “direito líquido e certo”, porquanto resume adequadamente os elementos essenciais ao preenchimento desta condição especial da ação mandamental.

Conclui-se, então, que o conceito de direito líquido e certo deve ser tratado de forma mais sistemática, com o fim precípuo de melhorar o seu manuseio e a compreensão dos operadores do direito, contribuindo para a busca de uma solução mais adequada a cada caso concreto. Tal exigência – cremos – deve estar centrada principalmente na circunstância de que o Mandado de Segurança possui rito diferenciado, o que torna a aplicação do direito mais dificultosa, caso não seja feito um estudo minucioso das condições específicas da ação em cada situação posta ao crivo do Judiciário.

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[i]               Aliás, na página 69 da obra mencionada, ele torna isso ainda mais evidente ao declarar: “Todavia, a circunstância de estarem obscuros os fatos, não sendo os documentos produzidos com a inicial capazes de demonstrar claramente haverem ocorrido como afirmado pelo impetrante, não significa que o direito não exista. Desta circunstância de insuficiência da prova documental apenas se infere ausência de liquidez e certeza do direito, para o fim de torná-lo defensável com emprego do mandado de segurança.” 

[ii]              “Para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder.”

[iii]             “Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes.”

[iv]            A posição está definitivamente cimentada pela redação da Súmula nº 625 do Supremo Tribunal Federal: “Controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança”.

[v]    Nas palavras de Hely Lopes Meireles (1990:35-36), direito líquido e certo “é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no momento da impetração”.

[vi]   Aqui, eis um motivo mais que apropriado para o uso da expressão “direito líquido e certo”: Tanto na liquidez quanto na certeza, o direito vai estar presente, pois ele é a argamassa que os une.

[vii]  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma. Mandado de Segurança. Administrativo. Apreensão de veículos automotores autorizados pela Convan. Recurso ordinário em mandado de segurança nº 200502159538 [21292 / RJ]. Relator Ministro José Delgado. Brasília, DF, 19 de outubro de 2010. DJU 16.11.2006, p. 216).

[viii] Entendemos que essa certeza jurídica é apenas mais um elemento que compõe a liquidez do direito em matéria de mandamus, o que significa que, para apresentar-se líquido, o direito deve estar previsto (e devidamente regulamentado) em norma legal e pronto para ser exercido em juízo, sem qualquer impedimento formal para seu emprego prático. Representa, pois, a impossibilidade de se conceber como líquido o direito ancorado na analogia, na equidade ou nos princípios gerais do direito. Por efeito, o direito deve emanar de “normal legal expressa”.