FACULDADEATLÂNTICO

PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E IDENTIDADE CULTURAL

ENSAIO SOBRE A PRESENÇA DO NEGRO

NA LITERATURA MACHADIANA


Conceição do Coité

2007

FACULDADEATLÂNTICO

PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E IDENTIDADE CULTURAL

Por:

Ulisses Macêdo Júnior

Trabalho solicitado pela Profª Jussimara Lopes, referente ao módulo A presença do Negro na Literatura Brasileira do Curso de Pós-graduação: Literatura e Identidade Cultural .

Conceição do Coité

2007


A presença de Negro na Literatura machadiana

A literatura, assim como, as diversas manifestações artísticas de um modo geral, possui uma íntima, intensa e imbricada relação com o "real". Às vezes os liames que os separam são tênues e de difícil percepção. Basta recordarmos do caráter verossímil de determinadas obras literárias. Partindo do pressuposto de que a arte é uma expressão da natureza humana, vindo a servir, também, para entender, desmistificar, e por vezes, construir novas nuanças desse real.

Nessa vertente, a Literatura Brasileira apresenta-se intimamente ligada ao seu contexto econômico, cultural, social; de formação étnica, de "esquecimentos", de construção de preceitos, de construção da própria sociedade. Assim, nessa miragem é que analisaremos a inserção e o surgimento do Negro na Literatura Basilis, sobretudo em um autor, Machado de Assis, que aborda a temática através de uma perspectiva diferente, silenciosa, mas ao mesmo tempo pujante e, de caráter universalizante. Logicamente, a abordagem dessa matéria implicou na observação das diversas influências que o meio vem a exercer sobre a vida do autor, no modo como vislumbra o mundo e traça o seu calidoscópio através da arte.

Tratar da presença do negro na literatura brasileira é refletir sobre o processo histórico e cultural do país, observando como tal emblemática se articula e se transforma no curso do tempo. O "olhar" do homem do século XIX não o mesmo da contemporaneidade. O tratamento, agora dado, às questões étnico/raciais assume um caráter multicultural e, ao mesmo tempo, identitário. Haja vista, o novo repensar da construção da história do país.

Ironides Rodrigues (1989, p.118-119), em entrevista sobre a literatura negra brasileira contemporânea afirma "ser essa, a literatura desenvolvida por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça dentro do significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida, discutindo os problemas que a concerne". Obviamente, alguns autores, principalmente a partir do século XX, assumem categoricamente tal postura e estabelecem as suas bases literárias por esse caminho.

No entanto, nem sempre a abordagem de uma temática ou o tratamento dado por um autor a sua obra se dá de forma direta e explícita. Para entender como Machado de Assis desenvolve as suas diretrizes é necessário que se mergulhe no seu universo, no cerne do seu refinado domínio técnico de composição de narrativas. Imergindo na intensa reflexão sobre os comportamentos humanos; nos conflitos e jogos de interesse que permeiam a sociedade. E, tudo isso, com um direcionamento consciente, com a sua peculiar sutileza; "rindo" a todo o momento, dessas "anomalias" ou normalidades humanas.

Sobre o modo característico que Machado de Assis aborda o negro, Octávio Ianni (1991, p.143) comenta que "nem sempre esse universo humano, social, cultural e artístico está claro, pleno. Em alguns escritores ele pode aparecer em fragmentos, pouco estruturado. E há mesmo obras nas quais ele parece recôndito, invisível, sublimado"(...).

Claramente o que torna Machado, se não um defensor explícito da causa do negro, mas um crítico da complexa e conflituosa situação da escravidão no Brasil é o modo como menciona e desvela as relações entre esse negro e o branco naquele contexto social. Através da fina ironia e de diversos efeitos carnavalizantes como a loucura, a multiplicidade de vozes ou o riso como zombaria e paródia, o autor ataca fortemente a classe social opressora, ridicularizando-a e tornando-a alvo das suas mais severas e "cínicas" críticas.

Todavia, quando é abordado o lado excluído, no caso o negro, Machado abre um viés no seu clássico estilo e apresenta a escravidão de forma mais expressa, despida das alegorias que utiliza para debochar da "boa" sociedade. Um exemplo concreto de tal assertiva é vista no seu conto Pai contra Mãe.

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro o pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras." (ASSIS: 2003, p.105)

No decorrer de toda essa narrativa, o autor continua a apontar os efeitos desumanos desse sistema, visto nas incongruências do ofício de caçador de escravos fugidos.

Tal fato é mostrado no referido conto, quando um dos protagonistas, Cândido Neves, possuidor desse raso serviço de capturar escravos desertores por não se adequar a outros tipos de emprego ou profissão, se vê numa situação bastante delicada: prender ou não, uma escrava fugitiva, grávida, que vem a implorar para não ser devolvida ao seu dono sob a justificativa de, pela severa punição que sofreria, perder a sua prole. E Candinho, como também intimamente era chamado, necessitando demasiadamente do dinheiro da recompensa sob a pena de entregar o seu filho para a Roda dos enjeitados (espécie de orfanato) pelo estado de penúria que passava. Estabelece-se então o conflito ético. Mas ao desfecho, o mais previsível acontece, principalmente para aquele contexto e sociedade. A personagem entrega a escrava ao seu senhor, e essa, em seguida vem a abortar. Cândido Neves não tem nenhum remorso pelo ato, pois era a vida e o destino do seu filho que estavam em jogo, além do mais, tratava-se apenas de uma escrava fujona e seu filho que não nascera. São essas as menções e reflexão da personagem: "Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. - Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração." (ASSIS: 2003, p.119)

Em outro conto, O Caso da Vara, Machado remete-nos a uma narrativa que discorre sobre a fuga de um seminarista, Damião, para a casa de uma prendada senhora como forma de auxílio e proteção. Sinhá Rita como era chamada, viúva, querida de João Carneiro, padrinho do garoto, incumbe-se da missão de defendê-lo. Damião passa a depender das habilidades da sinhá para salvá-lo do severo castigo que o pai certamente lhe aplicaria. Nesse tempo, Sinhá Rita vem a punir uma jovem escrava, por não concluir os trabalhos de rendas. Lucrecia, o seu nome,se atrasara justamente rindo das anedotas de Damião que até tinha jurado apadrinha-la. Mas, como não queria se indispor e perder o apoio daquela de que tanto necessitava, passa-lhe a vara de corretivos.

— Me acuda, meu sinhô moço!

Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.(ASSIS:1992, P. 582)

Nessa passagem, Machado, além de abordar a problemática da escravidão e dos maus tratos que eram submetidos os negros, desvela-nos a cortina egoísta e cruel que envolve o ser humano.

Categoricamente, podemos afirmar que a negritude não é a temática maior da literatura machadiana, pois essa se engendra nas ambivalentes relações sociais e humanas; perscrutando, sobretudo, a exploração de uma classe socialmente favorecida sobre outra. E, como focaliza e faz uma contundente abordagem a essa bárbara situação, logicamente aponta para as crueldades e truculências da estrutura escravocrata de onde o negro emerge.

Inserido nesse contexto, a própria figura do negro, vem a agir como o seu algoz quando tem a possibilidade de ascender para uma melhor situação social (elevação que possuía um demarcado limite). Logo, percebemos a força da influência do meio sobre o ser humano dessa vivência. É bom lembrar que a própria ciência ratificava a afirmativa da inferioridade da raça negra.

Nos capítulos: "O menino é pai do homem" e "O vergalho" da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado, através do narrador, situa e lança aos olhos do leitor essa cruel e antagônica realidade através da personagem Prudêncio.

(...) Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão,fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um -"ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: -"Cala a boca, besta!"" (ASSIS:1996, p. 32-33)

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras:- "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

- Meu senhor! gemia o outro.

- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do verganho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, o que meu pai libertara alguns anos antes (...)

(ASSIS: 1996, p.100)

No que concerne à questão, aparentemente, esse veio seguido por Machado de Assis, indica ser uma eficaz estratégia adotada como forma de sobrevivência e de disseminação da sua obra. Pois, assim, mais vivificada e aceita, pode fazer jorrar os seus azedumes sarcásticos, dilaceradores da sociedade, do cientificismo e do próprio ser humano.

Existem ocorrências outras da problemática do negro em obras machadianas. Contudo, apresentam-se também, como já fôra dito anteriormente, de forma recôndita, mas vivaz. Tratando, de sobremaneira, através de uma ótica mais universal no que concerne à miséria e a exploração do homem pelo próprio homem, logo, também, do escravo. Exemplo disso se observa no romance Esaú e Jacó quando o autor infere sobre a miséria social não só sendo um problema do negro, mas também, do branco pobre e marginalizado. "Abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco" (ASSIS: 1908).

Perspectivas e olhares são, certamente, indicativos da alquimia adotada pelo Velho Bruxo na composição das suas narrativas. Um novo olhar, também, sobre a obra machadiana, talvez seja um indicativo da necessidade de concebê-lo, não apenas como um dos grandes nomes da nossa literatura, mas também, como um astuto escritor que abriu os caminhos e horizontes para a problemática do negro através da literatura.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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--------------------------1839-1908. Contos/ Machado de Assis. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

--------------------------. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1998.

--------------------------. Esaú e Jacó. São Paulo: Ática, 1998.

BACKHTINE, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. São Paulo: Ed. Forense Universitária, 1997.

BOSI, Alfredo. O Enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.

FAORO, Raimundo. A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.

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HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Trad. Adelaine La Criardia Resene [et. All]. Brasília: Representação da UNESCO no Brasil: Ed UFMG, 2003.

IANNI, Octávio. Ensaios da sociologia da cultura. Rio de Janeiro: Civilização, 1991.

RODRIGUES, Ironides. Literatura Negra Brasileira Contemporânea. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro: Ed.34, 1987.

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