Maria Angela Coelho Mirault[1]

Desde tempos imemoriais, em que o primeiro antropóide veio ocupar as savanas, foi o instinto de sobrevivência quem forneceu-lhe sustentação para enfrentar a realidade da qual passa a fazer parte. O medo e a necessidade básica de se manter vivo vão lhe constituir o respaldo para suas ações num mundo que se lhe apresenta caótico. Solitário frente o caos, pouco a pouco, também por necessidade de sobrevivência, vai fortalecendo o espírito gregário e organizar-se em comunidades primitivas, que vão se constituir em organismos sociais, e, com isso, intervir nessa realidade hostil em seu próprio benefício e de sua própria espécie. Distinto do animal, ele é um ser que toma consciência de si, pensa, se exprime, ouve, troca experiências, aprende, trabalha e cria sua própria cultura.

Sob essa perspectiva, podemos inferir que o homem constrói a sua realidade, a partir de sua necessidade primeira de aplacar o medo, relacionar-se e comunicar-se. Só muito depois, a história econômica nos apresentará um homem, que, pelo excedente do seu trabalho, passa a trocar os seus artefatos, passando a constituir-se consumidor de bens que lhe atendem inicialmente as necessidades, para posteriormente atender seus desejos.

Essa idéia inicial vem nos trazer a reflexão de que, antes de estabelecer trocas e atender desejos, o homem traz em si necessidades intrínsecas a sua natureza, que são: intervir no mundo pelo trabalho, organizar-se gregariamente, comunicar-se e inter-relacionar-se. O trabalho é, portanto, a porta de acesso aos desafios impostos pela natureza incompreensível, na luta permanente que o homem empreende pela sobrevivência.

A ação humana é uma ação coletiva em que o trabalho se institui como uma tarefa social,executada com os recursos da comunicação, pelos quais, ele elabora, transmite e assimila signos com o intuito de ser compreendido e estabelecer relacionamentos. Ao constituir seus códigos de significação do mundo, ele cria também seu sistema de cultura, a qual, pouco a pouco vai lastreando a memória coletiva daquele grupo.

O homem nasce no fazer laborativo e perpetua-se pelo sistema de signos convencionados em significados culturais.

Tudo isso, a grosso modo, visa dirigir nosso pensamento com o intuito de, a partir de então, encontrarmos a gênese, o lugar e a função do Marketing no contexto organizacional e na própria sociedade.

Como podemos depreender, uma assertiva se evidencia: existe vida organizada antes do Marketing. Trabalho, organização, relacionamento ecomunicação encontram raízes na gênese da própria espécie humana, o Marketing, não. Por isso, é a comunicação quem preside, ou deve presidir, as ações de Marketing e não o oposto, ou seja, toda ação de Marketing se institui e subordina-se às ingerências das necessidades intrínsecas que temos de nos comunicarmos e de nos relacionarmos.

O que são as organizações?

As organizações[2] são, antes de qualquer coisa, sistemas integrados de ações que, organizadas, buscam objetivos comuns de um determinado grupo. Tal qual o homem, toda organização institui-se e mantém-se pela necessidade primeira de manter-se viva, independente dos objetivos que motivaram sua constituição.

Qualquer organização instituída necessita atender dois propósitos: (1) ser legalmente constituída, e, (2) ser legítima. A primeira prerrogativa é óbvia e básica: para que passe a existir na sociedade deve atender os requisitos legais impostos por essa sociedade, porém, para se constituir e se manter legítima necessitará do consentimento social, ou seja, será necessário que venha preencher uma lacuna existente no corpo social de maneira adequada, pois essa legitimidade será permanentemente colocada à prova pelos seus pares.

Estudiosos da gênese e natureza das organizações costumam classificá-las segundo uma tipologia, que vai, cada vez mais subdividindo-se em outras e outras mais. Porém, para nossa reflexão, basta-nos a classificação genérica que institui as organizações em três tipos: (1) organizações normativas; (2) organizações coercitivas; (3) organizações utilitárias.

As organizações normativas são aquelas organizações que se constituem a partir de um caráter ideológico: as igrejas, os partidos, as instituições governamentais; as universidades; as escolas, as Ongs, dentre outras.

As organizações de caráter coercitivo são aquelas que se organizaram com a finalidade de cercear as individualidades, tais como os presídios, os hospitais, certas religiões e seitas, ou seja, instituições cuja predominância é a instauração do medo, da ordem inexpugnável.

As organizações utilitárias são aquelas que se constituem com objetivos explícitos de auferirem lucro pela venda de seus produtos ou serviços e que são as empresas.

Toda organização, contudo, atende um objetivo que lhe é intrínseca: transacionam bens simbólicos: as coercitivas, ao se constituírem como sistemas fechados, transacionam esses bens internamente; as normativas e utilitárias o fazem também externamente, pois, sem venda de produtos ou serviços ou troca de bens simbólicos nenhuma organização atinge seus objetivos nem sobrevive no macro-ambiente social.

Para trocar seus produtos e seus códigos, toda organização precisa estabelecer relações. Relacionamentos tais que excedem ao sistema de mercadológico. Ela necessita, relacionar-se por intermédio da comunicação e trocar também seus bens simbólicos. Para isso, seja qual for sua tipologia, tamanho ou propósito, terá os seus recursos administrados, sob a presunção de que a função primordial de todo processo de administração é o de proporcionar um sentido de missão (valores reconhecidos) essencial da organização, de modo a obter um consenso interno e externo, ou seja, legitimidade, como fundamentação das estratégias de relacionamentos favoráveis a consecução dos objetivos organizacionais.

Esse relacionamento, que precede a relação de troca e venda de produtos,se dá por intermédio de processos comunicativos com os mais diversos segmentos de públicos com os quais a organização necessite interagir. Esse é o lugar e o papel das Relações Públicas, no contexto organizacional.

A partir do conhecimento da cultura organizacional - seus códigos e valores preexistentes - após reconhecer e identificar os públicos com os quais a organização precisa manter relacionamentos comunicativos e fornecer um diagnóstico e um prognóstico a respeito do sistema de comunicação existente na organização, as Relações Públicas capacitar-se-á para a formulação de programas e projetos que atendam aquela específica demanda comunicativa existente. Sob o seu primado, não serão considerados apenas os públicos de ponta do relacionamento e de mercado - no caso das empresas - os clientes.

Outros tipos de públicos deverão ser observados, pois, desconsiderados, interferirão na consecução dos objetivos organizacionais. Alguns estudiosos da área, os [3] prefere, sob a ótica da micropolítica exercida no interior de todo sistema organizacional, outra categoria de classificação. Assim, para esse pesquisador e consultor na área de Comunicação Organizacional, os públicos podem ser compreendidos e classificados como: (1) público de decisão. (2) público de consulta; (3) público de comportamento e (4) público de opinião.

Na primeira categoria, incluir-se-ão "aqueles públicos cuja autorização ou concordância permite o exercício da atividade"[4], ou seja, os que conferem a legalidade da organização em seu contexto macro-social; na segunda classificação estariam alocados os públicos que "são sondados pela organização, quando a mesma pretende agir", por exemplo, os associados, os acionistas de uma empresa; no terceiro tipo, encontrar-se-ão os públicos"cuja atuação pode frear ou favorecer a ação das organizações", já que a atividade fim e atividade meio deles depende: os recursos humanos – públicos internos - os clientes e consumidores dos serviços da organização, de modo geral, incluir-se-ão nessa categoria. Por último, mas não menos importante, estão segmentados os públicos "que influenciam a organização pela simples manifestação de seu julgamento e seu ponto de vista" e que são constituídos pelos líderes de opinião, tais como os líderes comunitários, os colunistas, os jornalistas e, ainda, alguns outros não identificáveis, mas cujo julgamento é capaz de influenciar um certo número de indivíduos e atingir à imagem da organização.

Desse modo, a empresa, tal como o homem, antes de trocar bens e obter lucro, depende, antes do estabelecimento de relações diferenciadas com seus públicos de interesse, pois todos eles, tenha a empresa, disso consciência, ou não, terão alguma forma de poder e influência sobre ela . Assim, estabelece uma relação com seus funcionários, que envolve a troca de mão-de-obra por salário, benefícios trabalhistas, proteção social; com os seus fornecedores, dos quais recebe matéria-prima e/ou serviços; com o governo, mediante a troca da legalização da sua existência por impostos; com o macro-sistema-social, transacionando sua responsabilidade social frente a comunidade em que está inserida, e, com a imprensa- reverberadora e formadora de opiniões – mediante a troca informações de interesse público, antecipando-se, sempre que possível, a falta de informação, geradora de influências negativas (boatos) sobre a organização.

A constatação da existência de públicos que excedem a relação de mercado, gera, na organização, a necessidade de estabelecer critérios e tipos diferenciados para seus relacionamentos, ou seja, as mensagens organizacionais vão ser intercambiadas, adequadamente,mediante recursos específicos e mídia apropriada a cada especificidade de público. Um dos mecanismos de relacionamento disponível no âmbito da organização utilitária - empresas - é o Marketing, ou seja, é ele quem compõe parte do mix de estratégias de relacionamento e de comunicação organizacional e, não, como alguns entendem, o oposto.

O estabelecimento de relações mediante processos de comunicação antecedentes às ações estratégicas do Marketing, objetiva, antes de tudo, alcançar resultados simbólicos favoráveis à empresa, do qual a moeda (também um produto simbólico) constitui-se apenas um dos componentes de troca estabelecida com o mercado.

Assim, a organização - que precisa ser identificável no seu contexto - deverá ter delineado uma identidade tal que lhe seja compatível com a imagem que projetae é captada externamente. Para isso, utiliza-se dos recursos da comunicação persuasiva, de forma a saber dizer o que faz, esclarecer como faz e justificar-se porque o faz, dentro do paradigma ético, que deverá orientar sua propaganda, seu programa de marketing, do mesmo modo que sua publicidade, submetidos ainda sob a perspectiva estética, ou seja, sua mensagem deverá atender também a ingerência do belo e bem feito.

Sob essa fundamentação, a propaganda e o marketing não podem ser concebidas como panacéias para todos os problemas, pois, não se capacitam a transformar o antiético em ético, nem o não estético em estético.

Em organizações em que o aspecto legal torna-se autoritarismo; o legítimo em ilegítimo; a persuasão em manipulação e os mecanismos de troca e de recompensa em chantagem; e, a punição em crime, a corrupção se instala, e nenhum programa de comunicação, de propaganda e de marketing, em particular, poderá suplantar seus efeitos.A cultura que se instaura nesses tipos de organizações chocam-se com a cultura predominante no sistema social dos homens de bem.

Portanto, criar e estabelecer uma política de comunicação nas organizações antecede aos programas e projetos de marketing. Estabelecer políticas (normas) de comunicação empresarial implica em processos que irão envolver: (1) tomada de consciência e decisão, na esfera da alta administração – é preciso que o "dono" queira estabelecer relacionamentos comunicativos pró-ativos. Após o estabelecimento de uma política, que traçará a regulamentação de toda prática comunicacional, e que, por conseguinte, fornecerá uma visão global do sistema de comunicação organizacional existente, surgirá uma adequada gestão de programas e projetos, em cujo interior, o marketing constituir-se-á em forte ferramenta para atingir seus propósitos explícitos no contexto organizacional.

Enquanto Relações Publicas tem como objeto a criação de relacionamentos que facilitem as trocas, o marketing tem como finalidade o estabelecimento das relações de trocas, diretamente relacionado as demandas do mercado, procurando encontrar resposta as questões: por quê, o quê, onde, quando e como o consumidor (um dos públicos de relacionamento empresarial) adquire os produtos disponibilizados no mercado. Para isso, investigará se o consumidor está satisfeito com o produto e com o conceito da empresa, se houve mudança nos seus hábitos de consumo, se os períodos de aquisição do produto são mantidos, e, mesmo se encontrou outras fontes para satisfazer suas necessidades de consumo.

Assim, segundo (FORTES)[5], "o Marketing trabalha com a 'racionalidade funcional', que destaca aos olhos do consumidor as vantagens dos produtos e serviços vendidos, (...) enquanto, as Relações Públicas preferem a 'racionalidade essencial', quando a razão predomina no momento de qualquer tipo de opção (produto, marca, empresa) no ato de adquirir um bem".

Assim, o "Marketing tem a ver com aquilo que vai motivar as pessoas a comprarem de você e a viabilizarem essa compra. Desculpem-me os muito "científicos", mas é só isso."[6] Como mencionamos, em vistas de que as organizações necessitam relacionar-se e transacionar seus bens, caberá, às Relações Públicas o âmbito do relacionamento, enquanto, no âmbito da transação, instaurar-se-áa área de Marketing[7]. Enquanto a primeira instância (as RP) tem por objeto o relacionamento estratégico e a gestão dos sistemas de comunicação organizacional, a Segunda (Marketing) terá sob sua abrangência, a operação e gestão de estratégias para conquistas de mercado, ambas, no entanto, configuradas pelo suporte administrativo das ações empresariais globais.

Como "processo social e gerencial pelo qual indivíduos e grupos obtêmo que necessitam e o que desejam por meio da criação, oferta e troca de produtos e de valores com outras pessoas e grupos", é da especificidade do Marketing detectar, prognosticar, servir e satisfazer necessidades (existentes)[8] do consumidor, atendendo o mercado[9]. O Marketing, segundo NÓBREGA[10], "... trata daquilo que o cliente está disposto a pagar. Em marketing é o conteúdo total da mensagem, a oferta econômica total, que conta." Para o autor citado, em relação ao produto, esclarece ainda que[11]:"O produto (com poucas exceções) é seco e sem graça como o texto de um "anúncio classificado". Isto é: o produto não é nem pode ser o centro da coisa. O centro da coisa tem de ser o embrulho, o ambiente, o clima, a experiência associada." Portanto, o produto é o que aparenta ser, ou seja, é algo mais acrescido de significados que lhe excedem a existência, evidenciando o irrefreável poder da marca, instigado pelo domínio do mercado.

Enfim, como afirma NÓBREGA[12]: "Não existe outro problema. Empresas são processos de comunicação. O (eterno) problema de comunicação na empresa só pode ser resolvido explicando, debatendo, tornando clara e acessível sua estratégia . Isso pode e deve ser feito para todos os níveis da organização . Tem de ser feito. É isso que gera significado para qualquer grupo humano."


[1] Doutoranda e mestre em Comunicação e Semiótica, pela PUC de SP, professora universitária da Uniderp, relações públicas, empresária na área de Comunicação e Educação Empresarial.

[2] No sentido mesmo de organismo: conjunto de órgão que mantém um ser vivo.

[3] Roberto Porto SIMÕES. Relações públicas- função política. São Paulo.

[4] Op. cit.

[5] Waldyr Gurierez FORTES. Transmarketing- estratégias avançadas de relações públicas no campo do marketing. São Paulo, 1999.

[6] Clemente NÓBREGA. Supermentes- do Big Bang à era digital. São Paulo, 2001.

[7] Op. cit.

[8] Não se cria necessidade de consumo de quem não a tenha latente (exemplo da droga)

[9] São constituídos por consumidores potenciais, aptos a transacionar alguma forma de moeda para satisfazer suas necessidades ou desejos latentes.

[10] Op cit

[11] Que é um dos mais instigantes ensaístas da área da administração e na esfera do marketing, na atualidade.

[12] Op. cit