Este texto é uma apreciação crítica da abordagem das relações étnico-raciais no paradidático GEORGE, Kristine O'Conell. O livro. São Paulo: Paulinas, 2004 que visa analisar a estereotipia, a visibilidade e os papéis das personagens negras e a manutenção e/ ou inovação na violência simbólica calcada em preconceitos e caricaturas. Além disso, aborda-se a função social da leitura e a necessidade da formação de um leitor-cidadão para interferir significativamente na sociedade.

Primar por uma educação antirracista, valorizando os aspectos pluricultural e pluriétnico da sociedade brasileira é dever de todos os educadores. Para isso, é mister uma análise criteriosa na seleção do material didático e paradidático com o qual o educador trabalhará no contexto escolar para que resgate, efetivamente, a identidade étnico-racial e a autoestima para o exercício pleno da cidadania.

LEITOR-COMPETENTE: UM LEITOR-CIDADÃO

"Por si só um livro pode ser desencadeador de consciências melhores e mais esclarecidas e propiciar reflexões importantes, essas sim, muitas vezes, salvadoras".
(Júlio Emílio Braz)

Ler, etimologicamente, deriva do latim "lego/legere" e significa recolher, apanhar, escolher. Lê-se um texto, um quadro, uma paisagem, uma atitude, um olhar...; enfim, lê-se o mundo. Ler é prazer, emoção, descoberta e também reflexão. Este maravilhoso exercício mental oportuniza sempre uma viagem mágica "por mares nunca dantes navegados".

O deleite advindo da leitura nem sempre é adquirido espontaneamente por iniciativa própria, mas conquistado através de incentivos, principalmente, docente e/ou familiar. O ambiente escolar – espaço social formador de ideologias – deve promover, constantemente, práticas de leituras com os mais diversos gêneros e tipologias textuais que circulam socialmente para a formação de leitores-competentes.

De acordo com os PCN (Parâmetro Curriculares Nacionais) de Língua Portuguesa (1998, p. 36):

Formar um leitor competente supõe formar alguém que compreenda o que lê; que possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos; que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto; que consiga justificar e validar a sua leitura a partir da localização de elementos discursivos que permitam fazê-lo.

Egon Rangel (2001, p.13) corrobora ao afirmar que é importante quando o instrumento didático

Oferece ao aluno textos diversificados e heterogêneos, do ponto de vista do gênero e do tipo de texto, de tal forma que a coletânea seja o mais possível representativa do mundo da escrita; prevê atividades de leitura capazes de desenvolver no aprendiz as competências leitoras implicadas no grau de proficiência que se pretende levá-lo a atingir [...]

O papel da escola, portanto, é fomentar que o educando tome gosto pela leitura e ajude-o a formar seu senso crítico. Ao suscitar a reflexão, ajudará a formar seres pensantes – legítimos cidadãos. Vale ressaltar que a formação do leitor-competente deve excluir o sentido tão desestimulante da obrigatoriedade e substituí-lo por momentos aprazíveis, mostrando que a leitura é mais uma forma de lazer.

Seja na leitura imagética ou de textos curtos (contos, crônicas, notícias, reportagens etc.) e longos (romances e novelas), o leitor sempre estabelece uma relação dialógica entre o texto e o contexto. Ele interage e atribui sentidos ao texto a partir dos conhecimentos que já possui. Todo leitor tem suas idiossincrasias e história de vida! Sendo assim, os sentidos são determinados histórica e ideologicamente.

Ao ler criticamente, o leitor-competente torna-se um leitor-cidadão uma vez que adquire condições de interferir no meio e, consequentemente, transformar a realidade. Lívia Suassuna (1995, p. 52) ratifica esta assertiva: "Se o aluno lê sem prazer, sem o exercício da crítica, sem imaginação; se ele lê e não faz disso uma descoberta ou um ato de conhecimento [...] não há nisso nada que lhe possibilite uma intervenção sobre aquilo que está posto".

Oportunizar ao leitor um encontro com a infinita riqueza de um texto é suscitar perguntas e estimular o exercício do raciocínio para a formulação das infinitas respostas possíveis. Para isso, é preciso que toda a comunidade escolar esteja envolvida nesta formação de leitores críticos, que sentem prazer na leitura, pois todos os educadores devem ser desencadeadores de consciências melhores.

Enfim, ler não é um simples ato de decodificação, mas um processo contínuo de ressignificações e representações que possibilita intervenções na sociedade em que o leitor está inserido. O educando que lê torna-se mais habilitado a influenciar construtivamente a sociedade e a contribuir efetivamente para um mundo mais justo e igualitário que respeita os direitos civis, políticos e sociais de todos os cidadãos.

A PERSONAGEM NEGRA NOS LIVROS

"Ensinar a criança a ler história é ensinar a ela a mágica de SER".(Luci G. Watanabe)

Nos mais diversos meios de comunicação, a imagem do negro é apresentada ligada à ignorância, selvageria, subserviência, comodismo, desobediência, servidão e/ou comicidade. Ainda hoje, ao se representar a África, mostram-se cenas de crianças famintas, famílias miseráveis e grandes epidemias, paralelas à paisagem exótica de safáris.

Nos mais diversos livros escolares, a riqueza das ciências sociais e naturais, da tecnologia e da história ainda não faz parte dos conhecimentos estudados pelos educandos sobre este continente tão rico e plural. As contribuições dos povos africanos para a Medicina e outras áreas afins não são sequer mencionadas. Este quadro contribui bastante para o preconceito e desqualifica toda a riqueza intelectual e artística deste povo guerreiro e profícuo.

Desde a infância, estes conceitos equivocados são introjetados no subconsciente, deflagrando um discurso hipócrita recheado de práticas racistas. Se por um lado, a nação crê na fábula das três raças (Damatta, 1987, p. 58) e numa suposta democracia racial freiriana que promove o credo igualitário; por outro, a desigualdade de renda e poder retifica esta pseudo-harmonia.

Infelizmente, os livros e manuais escolares, em geral, ao retratarem os herdeiros dos estigmas e desafios escravistas, divulgam uma visão eurocêntrica, baseada na ideologia do branqueamento. A superioridade do branco; a estereotipia através das analogias de cunho negativo, a invisibilidade de todo o processo de luta pela verdadeira emancipação pré e pós-13 de maio, a rejeição à estética negra e às religiões de matriz africana são algumas (dentre muitas outras!) das representações discriminatórias impressas.

Destarte, os educandos negros jamais vão querer se identificar com quem só aparece na história em momentos de sofrimento, como antagonista ou personagem secundário. Esta criação de mitos e estereótipos em torno do negro contribui para a baixa autoestima e autorrejeição. Incutir valores negativos sobre os negros desencadeia, inclusive, uma baixa expectativa em relação à capacidade intelectual.

Para Ana Célia Silva (2005, p. 26):

As origens dessa baixa expectativa podem estar na internalização da representação do negro como pouco inteligente, "burro", nos meios de comunicação e materiais pedagógicos, um estereótipo criado para justificar a exclusão do processo produtivo pós-escravidão e ainda na atualidade.

A visão dessa representação pode desenvolver também nos alunos não negros preconceitos quanto à capacidade intelectual da população negra, e, nas crianças negras, um sentimento de incapacidade que pode conduzi-las ao desinteresse, à repetência e à evasão escolar.

Na literatura infanto-juvenil, o preconceito também é explícito! Nas narrativas, em geral, os negros, quando aparecem, são sempre coadjuvantes, inferiorizados, passivos. Esta violência simbólica contribui para a divulgação destas ideias preconceituosas e descabidas. Segundo, Maria Anória Oliveira (2006, p. 290):

O preconceito racial é perceptível na medida em que valoriza o grupo étnico-racial branco em detrimento do negro, o qual é preterido nas obras ou, então, tecido nas narrativas sem nome, animalizado, exercendo atividades de serviçais, sendo desqualificado, haja vista a sua associação a personagens maus, à sujeira, à tragédia, além de ter uma acabamento "ficcional" inferior em relação aos personagens brancos, no que tange à origem geográfica, a religião e a "situação familiar e conjugal".

Sendo assim, é mister que mudanças imediatas ocorram para o efetivo desenvolvimento psicossocial dos educandos. Urge a busca por uma educação antirracista e pluricultural! Para empreender um trabalho significativo sob a égide da Lei Federal 10.639/03 que torna obrigatório o Ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana, é imprescindível uma seleção criteriosa do material didático.

Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2005, p. 25), é preciso providenciar

Edição de livros e de materiais didáticos, para diferentes níveis e modalidades de ensino, que atendam ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto no Art. 26A da LDB, e para tanto abordem a pluralidade cultural e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já publicadas sobre a história, a cultura, a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e supervisão dos programas de difusão de livros educacionais do MEC - Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE).

A partir daí, juntamente com uma qualificada formação docente, as atividades realizadas, no ambiente escolar, conduzirão os alunos a uma leitura crítico-reflexiva sobre o passado, desvelando a verdadeira história do negro que contribuiu efetivamente na construção da riqueza cultural nacional e sobre o presente através das suas lutas diárias pela verdadeira emancipação.

 "O LIVRO"

"Ó! Bendito o que semeia
livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
é germe – que faz a palma
é chuva – que faz o mar".
(Castro Alves)

O paradidático "O livro", de Kristine O'Conell George, é uma prosa narrativa que relata a fascinação de um protagonista negro ao ser presenteado com um livro. Ela enfatiza, utilizando poucas palavras, a doçura e a meiguice de um futuro leitor-cidadão já consciente do deleite advindo das histórias contadas no colo materno.

O enredo e as ilustrações, harmonicamente, encantam o leitor pela simplicidade e leveza artísticas. É possível observar que o texto não reforça estereótipos nem faz violência simbólica através de associações de caráter negativo. A história versa sobre as peripécias de uma criança negra que tem seu primeiro contato com um livro seu, de fácil manuseio e que logo o considera seu amigo.

Durante toda a narrativa, ele dialoga com o valioso presente, elogiando a facilidade no manuseio para abrir e fechar sem a ajuda de outrem. Depois, ele comenta a facilidade para sozinho colocar o amigo na estante, as possibilidades de virá-lo de quina para o céu ou usá-lo como chapéu, o desejo de ler para o gato, de levá-lo para o bebê ver, de transportar para um lugar secreto e de, finalmente, antes da hora de dormir, ler no colo materno "num lugar quente e macio".

Através das ilustrações de Maggie Smith, também se pode ratificar a inovação da obra na desconstrução dos preconceitos sociais pela valorização dos traços da estética negra sensivelmente desenhados, pela felicidade do protagonista com o lar onde mora e pela escolha do figurino e da mobília da casa de classe média. Sendo assim, não fortalece a tendência racista tão corriqueira na literatura infanto-juvenil.

Este paradidático traz uma proposta inovadora, pois delineia positivamente uma personagem negra, elegendo-o a protagonista e desmitifica estereótipos sociais. Permite, assim, aos leitores negros e não negros outro olhar sobre as relações étnico-raciais. Apesar da não-identificação do nome do protagonista, o paradidático apresenta uma personagem negra completamente humanizada e feliz.

Enfim, a obra, definitivamente, não contribui para a política ideológica do branqueamento tão arraigada nesta sociedade hegemônica e eurocêntrica. Apesar de não realizar uma (re)leitura da História da África e da Cultura Africana, traz à tona uma (re)leitura da história (ainda mal contada!) da contemporaneidade do negro brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A diversidade marca a vida social brasileira e a escola, certamente, deve ser um espaço onde este cenário deve ser discutido e analisado. É inadmissível silenciar, em pleno século XXI, diante de leituras que divulgam e perpetuam estereótipos, mitos, caricaturas e discriminações nos mais diversos aportes didáticos, fortalecendo cada vez mais a tendência racista. Urge conhecer, respeitar e valorizar a diversidade e a pluralidade cultural do Brasil.

É preciso sempre empreender um trabalho sob a égide da lei 10.639/03 pautado em atividades que realizam uma educação pluricultural e plutriétnica. Assim, o educador prima pela construção da cidadania por meio da valorização da identidade étnica e, consequentemente, da autoestima e do desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo de um legítimo leitor-cidadão.


REFERÊNCIAS

DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de janeiro: Rocco, 1987.

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, SECAD/ MEC, Brasília, 2005.

GEORGE, Kristine O'Conell. O livro. São Paulo: Paulinas, 2004.

OLIVEIRA, Maria Anória de. Relações Étnico-Raciais na Educação e a Literatura Infanto-juvenil: nas veredas da Lei Federal 10.639/03 (?!). In: LINS, Juarez Nogueira e outros (org.) Linguagem e discussões Culturais. João Pessoa: PB, Ed. Dos Organizadores, 2006, p. 283-303.

Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa: 3º e 4º ciclos. Brasília : MEC, 1998.

RANGEL, Egon. Livro Didático de Língua Portuguesa: o retorno do recalcado. In: DIONÍSIO, Ângela Paiva & BEZERRA, Maria Auxiliadora. O livro Didático de Português – Múltiplos olhares. Lucerna, 2001.

SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. In: MUNANGA, KABENGUELE (org.) Superando o racismo na escola. Brasília: MEC/ SECAD, 2005, P. 21-37.

SUASSUNA, Lívia. Ensino da língua portuguesa: uma prática pragmática. Campinas: Papirus, 1995.