Tudo o que existe hoje campo da literatura, das artes plásticas, da música, do teatro e do cinema está de alguma forma relacionado às propostas e às experiências desenvolvidas pela arte moderna no começo do século XX. Isso ocorreu devido ao fato da cultura brasileira ter acompanhado o ritmo das mudanças vigentes da época. No entanto, novas idéias surgiram nos diferentes domínios artísticos, dentre as quais destacaremos o cinema e o teatro, com a finalidade de evidenciar a transposição da personagem nesses dois ramos da arte.

O "moderno teatro brasileiro" surge com os pressupostos de vinte e dois (22 -Semana da Arte Moderna), buscando um teatro que vivesse e ativamente retratasse a realidade brasileira em suas dimensões mais atribuladas, em sua problemática mais profundamente humana e que fizesse uma cópia fiel da situação social vigente, veementemente voltado para os problemas do país. O novo teatro brasileiro, através de seus dramaturgos, intérpretes encenadores e cenógrafos, têm sua parcela de contribuição na formação do então chamado "Cinema Novo". É o despertar de uma arte autêntica e séria, ao lado do despertar da nossa nação.

O chamado "Cinema Novo" leva às telas precisamente na década de 60 (sessenta), a mesma proposta do "moderno teatro brasileiro" que, através de seu pioneiro, Dias Gomes, como vem afirmar Anatol Rosenfeld, um dos mais significantes teatrólogos brasileiros, que o teatro deste é "[...] uma imagem crítica da realidade brasileira, naquilo que é caracteristicamente brasileiro e naquilo que tipicamente humano".E assim é produzida no cinema, retratando nossa realidade em suas cores vivas e em seus aspectos mais sofridos de forma crítica e cortante da verdadeira situação, porque como ninguém, o dramaturgo Dias Gomes, põe a nu, através da sátira, a loucura reinante do nosso país. É importante ressaltar que, apesar de toda a sua vocação para a escrita, engajada nas causas sociais, este não constrói uma arte com finalidade de gerar polêmica. Sua obra é, antes de tudo, literatura de boa qualidade e uma dramaturgia calcada em personagens tão marcantes que caíram no domínio público e fazem parte da nossa realidade cotidiana.

Uma de suas obras que enfatiza bem tais questões é "O Pagador de Promessas", obra esta que o projetou nacional e internacionalmente e que, de peça teatral foi também convertida em filme, o qual manteve o mesmo título da referida peça que lhe deu origem, como observa Marinize Prates de Oliveira:

"A adaptação para o cinema de obras largamente conhecidas do público e quase sempre vinculadas à literatura canônica, além de corresponder a um desejo de legitimação das práticas artísticas do novo meio, que também no Brasil almejava o prestígio de que gozavam as artes consagradas, como o teatro, a literatura e a pintura, constituía um excelente mecanismo para compensar a limitação de seus recursos narrativos".(OLIVEIRA, 2004, p.62).

Em "O Pagador de Promessas", a película guarda os mesmos diálogos da peça, mantendo uma estrutura narrativa que privilegia a representação do homem nordestino a partir de uma ótica relativizada, com embasamento em signos estereotipados de nordestinidade, enfatizando o conceito de virtude, ou seja, percebe-se uma autenticidade da peça teatral em relação ao cinema, visto que, as imagens projetadas neste último, conduzem ao enredo presente no primeiro.

No entanto, é importante lembrar que o teatro mantém um contato direto com o público e possui características de linguagem e posicionamento artísticos próprios, limitados pelo tempo e espaço das peças, enquanto o cinema, através de sua capacidade audiovisual muito superior ao teatro, mesmo que perdendo um pouco da originalidade da obra, permite uma abrangência de público e uma intimidade com este, jamais alcançáveis pelas demais artes consagradas, pois, as imagens concedidas pelo cinema focam detalhes imperceptíveis ao teatro, possuem um apelo emocional mais forte, conforme Antônio Cândido, em seu texto "A personagem cinematográfica":

"No cinema, pois, como no espetáculo teatral, as personagens se encarnam em pessoas, em atores. A articulação que se produz entre essas personagens encarnadas e o público é, porém, bastante diversa num caso e noutro. De um certo ângulo, a intimidade que adquirimos com a personagem é maior no cinema que no teatro. Neste último a relação se estabelece dentro de um distanciamento que não se altera fundamentalmente." (CÂNDIDO, 1974, p.112).

A obra de Dias Gomes é, sem dúvida, tanto no teatro quanto no cinema, uma produção de imensa grandeza. Por abordar questões relacionadas ao sincretismo religioso e oposição entre o mundo urbano e rural, o filme "O pagador de promessas" foi considerado de esquerda na década de sessenta, devido à situação política pela qual o país atravessava. Nele os conflitos de pureza mística do campo juntamente com a corrupção urbana se fundem num universo essencialmente colorido e dinâmico, demonstrando o destino trágico de sua personagem principal (Zé do Burro), que tanto no teatro quanto no cinema ele é caracterizado pela sua obstinação, da qual contraria os princípios estabelecidos do um sistema opressor advindo de uma sociedade intolerante e preconceituosa, cuja trama nos remete a uma apreciação sobre a construção das identidades nacionais, aonde a disposição da identidade social nordestina vai, aos poucos, sendo construída pelo discurso cinematográfico, o qual atua como um "sistema de representação cultural", aproximando o público da idéia de ser nordestino e por este sentir-se parte desta cultura regional, visto que, a apropriação do estereótipo "nordestino" reflete uma idéia de assimilação da "temática rural" como sinônimo de brasilidade. Segundo Marinyze Prates de Oliveira:

"O cinema novo foi popular no sentido de haver tomado como assunto principal os problemas do povo brasileiro, o que significava, inicialmente, os setores marginalizados da sociedade brasileira, os favelados, os pescadores pobres e os campesinos vivendo na miséria do Nordeste".(OLIVEIRA, 2004, p.78).

Portanto, é perceptível em "O pagador de promessas", que a intolerância e o preconceito, assuntos relacionados aos problemas do povo brasileiro, não são fixos e naturais, mas algo que interage com os diferentes contextos sociais. Diferentes épocas podem dificultar ou favorecer sua manifestação. E, mesmo em tempos nebulosos, sempre há indivíduos cujas posturas contribuem para o questionamento e superação da intolerância e do preconceito, ainda que sejam minoritários e talvez não se façam ouvir, como foi o caso de Zé do Burro.

Partindo-se do pressuposto de que as semelhanças entre teatro e cinema são significativas, já que o propósito de ambos é atingir o público, é relevante verificar que a forma pela qual cada uma destas artes o faz é que as difere. Sendo assim, entende-se que toda a forma estética pela qual o cinema se distancia do teatro remete-se ao fato do primeiro estar bem mais próximo da realidade que o segundo, pois, além dos efeitos, da visão e dos espaços serem múltiplos (paisagens, cenas, marcas de tempo), a velocidade com que as imagens são transmitidas são fatores imprescindíveis nessa distinção, ou seja, a diferença essencial está na multiplicidade das distâncias e ângulos de composição da cena que somente a câmera e a montagem no cinema permitem manobrar. É nessa conjuntura que se enfatiza a força expressiva do plano cinematográfico, cuja proximidade máxima de atores e/ou objetos permite dar intensidade a efeitos dramáticos e psicológicos, desde que utilizado de forma criativa pelo cineasta.

Deste modo, é relevante advertir a notória contribuição destas artes para o desenvolvimento e reflexão da humanidade e, perceber que, com o passar do tempo, o questionamento sobre a origem das obras, ou sobreposição da importância de uma pela outra vai ficando para trás, pois todas acabam se completando, em certa medida, e têm o mesmo objetivo que é a representação da sociedade para ela e por ela.

REFERÊNCIAS:

CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem da ficção. 4. ed. São Paulo: Retrospectiva, 1974, p. 53-119.

GOMES, Dias. O pagador de promessas. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

OLIVEIRA, Marinyze Prates de. Olhares Roubados – Cinema, Literatura e Nacionalidade. Salvador: Quarteto/FAPESB, 2004, p.59-84.

O PAGADOR DE PROMESSAS. Baseado na obra de: Alfredo de Freitas Dias Gomes. Direção: Anselmo Duarte. Produção: Oswaldo Massaini e Francisco de Castro. Roteiro: Anselmo Duarte Bento. Dynafilmes. DVD, 95 min, 1962.

ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva,1982.