Introdução
A cultura brasileira tem características musicais acentuadas, com ritmos vindos da cultura africana, povo escravizado e trazido para terras brasileiras principalmente pelos portugueses, como destaca a professora Marli Oliveira de Carvalho, em palestra proferida na Unifig, durante a Jornada de Letras 2008. A Música Popular Brasileira, é considerada uma das produções culturais mais ricas do século XX, sendo atualmente produto de exportação, representando nosso País com legitimidade.
Na Literatura, essa musicalidade pode ser apreciada nas produções de Cordel, em que os artistas, muitos poetas da improvisação, falam das aventuras de heróis nacionais, como Lampião, contam histórias do povo, da realidade, dos sofrimentos e das alegrias cotidianas.
Esses poetas de bancada ou de gabinete, como destaca a apresentação da Academia Brasileira de Cordel, eram pessoas do povo, que se apresentavam nas feiras, mostrando sua visão dos acontecimentos, por meio dos repentes, tradição oral de recitais.
Hoje, como destaca João Gomes de Sá, este tipo de literatura deixou de ser popular, passando a ter métrica, estilo e inserindo-se nas academias de letras e nas produções artísticas nacionais.
Segundo a Enciclopédia Itaú-Cultural,
O enfraquecimento das feiras populares no interior do Nordeste e o fortalecimento dos meios de comunicação de massa fizeram com que a maior parte do público tradicional do cordel se dispersasse ou perdesse o interesse por ele. Enquanto isso, a onda de estudos acadêmicos iniciada na década de 1970 despertou o interesse da classe média por essa literatura. A própria expressão "literatura de cordel", de origem ibérica e que circulava quase que exclusivamente nos círculos eruditos, só foi popularizada nessa época, quando os próprios produtores da literatura de cordel passaram a usá-la em lugar de "folhetos", que é como eles tradicionalmente se referiam a ela.
Analisaremos, no presente trabalho, a obra Foguetes de rei (ou a guerra) do grupo Cordel do Fogo Encantado. O grupo pernambucano apresentou esta poesia no palco do Estádio do Maracanã, durante a cerimônia de abertura dos XV Jogos Pan-Americanos Rio 2007, com a temática da energia do homem, da diversidade e da pluralidade cultural brasileira por meio de manifestações de danças tradicionais de várias regiões, como o reisado e o maracatu.
Escolhemos a poesia apresentada por retratar de forma lúcida e musical a realidade brasileira e a mistura religiosa presente em nossa brasilidade.
A união da poesia com os ritmos de origem africana, criada pelo Cordel do Fogo Encantado, colocou a Literatura de Cordel em uma posição de destaque cultural, valorizando as tradições e a cultura de um povo, raiz da única literatura genuinamente brasileira, ressaltando a importância desta análise e desse grupo no contexto cultural nacional.
A história do Cordel do Fogo Encantado
Inicialmente, Cordel do Fogo Encantado era um espetáculo que fez muito sucesso em Arcoverde/PE, em que a música ocupava o espaço de ligação com a poesia. Ao lirismo das composições somou-se a força rítmica e melódica dos tambores de culto-africano, à musicalidade brasileira, projetando os textos poéticos às esferas culturais e ao grande circuito de shows e entretenimento, segundo a Wikipedia.
O nome da banda, segundo Clayton Barro, um dos seus integrantes, origina-se da fusão dos termos Cordel, sinônimo de história na região de Pernambuco, literatura oral e escrita; o Fogo, que é o elemento natural mais representativo da nossa existência, das Fogueiras de São João, do sol e da terra queimada; e o Encantado que ressaltaria a visão apocalíptica e profética dos mistérios entre o céu e a terra.
Tiveram projeção internacional com apresentações na Bélgica, Alemanha e França. Segundo a Wikipedia, entre os prêmios conquistados estão o de banda revelação pela APCA (2001) e os de melhor grupo pelo BR-Rival (2002), Caras (2002), TIM (2003), Qualidade Brasil (2003) e o bi-campeonato do Prêmio Hangar (2002 e 2003). Ainda, no cinema, participaram da trilha sonora e do filme de Cacá Diegues, Deus É Brasileiro. Nas brechas das turnês, Lira Paes (fundador e compositor) marcou presença também na trilha sonora de Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes, na qual interpreta a música O Amor é Filme. Lirinha, como é conhecido pelos fãs, também atuou no filme Árido Movie, de 2006.
A literatura/música Foguetes de Reis (ou a guerra)
No derradeiro luar
O sol saiu
Um trovão avermelhado
O sol saiu
Solta fogo do passado
O sol saiu
No peito de quem tá vivo
O sol saiu
Salva
Eu quero ver rodar
O sol saiu
A planta que vingará
O sol saiu
O medo de lampião
O sol saiu
As dores de Iemanjá
O sol saiu
E a lua quilariou
E eu vi o meu amor
Dentro do canaviá
O sol saiu
E haja guerra
E haja guerra
Haja guerra no ar

Boa noite senhor e senhora
Eu cheguei agora
Me preste atenção
Nesse mundo de fogo e de guerra
O santo da terra
Tem calo na mão
A composição é de Lirinha, José Paes de Lira, fundador do grupo. Música e refrão: escutados nos sambas de coco de Arcoverde, legado de Ivo Lopes, apresentado a seguir.
Análise do texto
Temos neste texto poético várias marcas culturais e regionais nordestinas, entre elas destacamos o culto afro-brasileiro a Iemanjá e a temática das situações cotidianas duras em que "o santo da terra/tem calo na mão".
A música e o refrão são adaptados de uma dança típica da região de Arcoverde, conhecida por samba de coco, e do grupo Reisado da Caraíba ? nome emprestado do povoado que se situa na zona rural dessa região, conforme site da Prefeitura de Arcoverde.
O samba de coco, segundo release do grupo Irmãs Lopes, é cantado e dançado desde 1916, pelos avós da família Lopes, e herdado pelo mestre Ivo Lopes, hoje falecido também, que fazia muito sucesso com os seus benditos e toadas. Desta Família de Brincantes surgiu o samba de coco das Irmãs Lopes, expressão de alegria de um povo guerreiro, que conseguiu criar o seu espaço dentro da comunidade Arcoverdense. A família de sr. Laurentino Lopes era religiosa por tradição, animava as noites de novena da Capela do São Sebastião, hoje Matriz do Livramento. Além do Novenário eles animavam o samba de coco que era uma herança cultural dos seus avôs continuada pelos seus pais e, por conseqüência, pelas novas gerações da família.
Segundo material do Ministério da Cultura do Brasil, o título Foguetes de reis (ou a guerra) faz alusão à Folia de Reis ou reisado, ritual católico em que músicos, cantores, dançarinos, palhaços e outras figuras folclóricas, devidamente caracterizadas segundo as lendas e tradições locais, organizados sob a liderança do Capitão da Folia, visitam as casas durante o final do mês de dezembro até o dia 6 de janeiro.
As canções entoadas são sempre sobre temas religiosos católicos, com exceção daquelas tocadas nas tradicionais paradas para jantares, almoços ou repouso dos foliões, onde acontecem animadas festas com cantorias e danças típicas regionais, como catira, moda de viola e cateretê. Contudo, ao contrário dos Reis da tradição católica, o propósito da folia não é o de levar presentes, mas de recebê-los do dono da casa para finalidades filantrópicas.
Extraindo os refrões dos versos: "No derradeiro luar/Um trovão avermelhado/
Sol¬ta fogo do passado/No peito de quem tá vivo", faz referência à última noite das comemorações do Dia de Reis, com fogos de artifício sendo comparado ao trovão. O passado é utilizado como referência à tradição antiga católica, relembrando, nos dias atuais, quem está vivo, o nascimento de Jesus.
Na estrofe seguinte: "Eu quero ver rodar/A planta que vingará/O medo de lampião/As dores de Iemanjá", percebe-se uma alusão clara à tradição religiosa afro-brasileira, perseguida e mistificada pelo "homem branco". Há neste trecho quase uma oração pedindo que haja vingança daqueles que foram perseguidos por suas crenças. Acredita-se que, medo de lampião, refira-se à noite, à escuridão, único momento em que os negros podiam manifestar a sua religião, sob os olhares medrosos do preconceito. E lamentar à sua mãe, Iemanjá, as dores impostas pelos trabalhos forçados, de sol a sol. Segundo Marcelo Del Debbio, Iemanjá, vinda da mitologia yoruba, é a representação da mãe no Brasil, é aquele que protege os filhos a qualquer custo, por isso uma súplica a ela por aqueles que sofrem.
Nos versos seguintes: "E a lua quilariou/E eu vi o meu amor/Dentro do canaviá" já se refere à pessoa amada, ao trabalho na roça, à proximidade com o campo e com a produção agrícola. Percebe-se, ainda, uma marca característica da Literatura de Cordel, em que as normas gramaticais e a grafia são utilizadas na forma popular. "Quilariou", em vez de "E a lua que clareou", forma considerada correta pelas gramáticas normativas. O mesmo ocorre com "canaviá" em vez de canavial.
Dá-se margem, neste trecho, para dupla interpretação: o autor refere-se à pessoa amada, iluminada pela lua; ou às plantas, à cana-de-açúcar, fonte de renda e sofrimento de um povo? Uma vez que o título e o texto deixam uma questão religiosa destacada, não fica clara a intenção do autor com o termo "amor", uma vez que se percebem intenções religiosas e sociais na poesia.
Continuando com a análise, "E haja guerra e haja guerra/Haja guerra no ar", refere-se aos trovões dos fogos de artifício, queimados nas festas religiosas, principalmente. E deixa a questão aberta da guerra do dia-a-dia, do cotidiano de trabalho, sem que possa haver reclamação, ficando as súplicas exclusivamente às orações, ao ar.
Na última parte: "Boa noite senhor e senhora/Eu cheguei agora/Me preste aten¬ção/Nesse mundo de fogo e de guerra/O santo da terra/Tem calo na mão", percebe-se novamente a alusão ao ritual da Folia de Reis, em que os foliões chegam às casas, seguidos de uma constatação: no mundo de fogo do trabalho sob o sol quente, e na guerra para o sustento da família, o santo, no caso, o homem, tem calo nas mãos.
Percebe-se, aqui, toda a conclusão e o desfecho do texto. Embora a poesia tenha sido iniciada com uma tradição católica e, em seguida, suplicado vingança à Iemanjá pelo preconceito contra as crenças africanas, ao final da poesia, santo é o homem que trabalha, de sol a sol, lutando a guerra diária no canavial.
A intenção poética e a pluralidade cultural
Uma das características presentes na Literatura de Cordel é o retrato da vida diária do trabalhador, do homem do povo, inserido em sua condição humana, muitas vezes, até desumana.
No texto de Foguetes de reis, assim como em vários outros textos da banda, as temáticas giram em torno destes fatos: a realidade sociocultural brasileira.
Os PCNs pedem que o tema "pluralidade cultural" seja tratado e discutido em sala de aula. E o uso da Literatura de Cordel é uma forma real, verdadeira e atual de mostrar aos jovens as diferentes realidades do nosso País. Ainda mais que a obra apresentada está disponível gratuitamente, em vários sites, para download do trecho da abertura dos Jogos Pan-Americanos Rio 2007. Ouvir, ler e visualizar a representatividade atingida pelo grupo Cordel do Fogo Encantado estimula o orgulho de um povo, tão carente de motivos para se sentir gente. Assim o PCN (p. 75) orienta,
São formas de arte que expressam a identidade de um grupo social e não são nem mais nem menos artísticas do que as obras produzidas pelos grandes mestres da humanidade.
E a Literatura de Cordel pode ser um estimulante, um iniciador do hábito de leitura, por ter uma linguagem musicada, fácil de entender, com a linguagem próxima da popularmente utilizada e com temáticas cotidianas e reais.
Conclusão
Assim como defende Marli Oliveira de Campos, a aprendizagem pode ser facilitada por uma música, tão presente em nossa cultura. Apresentamos aqui uma forma de unir a música afro-brasileira, à poesia da Literatura de Cordel, usando a projeção do grupo Cordel do Fogo Encantado na abertura de um evento com visibilidade continental. Campos lembra que,
a História pode ser ensinada por meio de distintas linguagens, fotos, cinema, vestuário, ciência, e que usar esses recursos é uma maneira eficiente e interessante de dar significado aos conteúdos que precisam ser ensinados.
Pretendeu-se, desta forma, mostrar didaticamente não somente a realidade social nordestina, mas também a nossa cultura, a nossa produção literária, as nossas danças e a nossa religiosidade. Mostrar que quem somos é digno de orgulho e precisamos nos valorizar, em primeiro lugar.
É importante mostrar o homem como agente transformador, como o "santo que tem calo nas mãos", como diz a obra estudada. Esses "calos" são pelo trabalho, mas podem ser pelas lutas, pelas guerras, pelas causas que diferenciam o homem do restante do mundo animal: a consciência de si e do meio em que vive.

Referências
ARCOVERDE. Site oficial da Prefeitura de Arcoverde/PE. Disponível em: <http://www. arcoverde.pe.gov.br>. Acesso em: 30 set. 2008.
ASSOCIAÇÃO Cultural Samba de Coco Irmãs Lopes. Disponível em: <http://estrelaproducoes. multiply.com/photos/album/5>. Acesso em: 1 out. 2008.
CAMPOS, Marli Oliveira de Campos. Cantando a história ? Um método dialógico de construção dos saberes históricos na escola. Palestra proferida na Unifig, em 24 set. 2008.
CORDEL do Fogo Encantado. Disponível em: <www.cordeldofogoencantado.com.br>. Acesso em: 18 set. 2008.
CULTURA. Ministério da Cultura do Brasil. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br /noticias/noticias_do_minc/index.php?p=13524&more=1&c=1&tb=1&pb=1>. Acesso em:
5 out. 2008.
DEL DEBBIO, Marcelo. Enciclopédia de mitologia. São Paulo: Daemon, 2008.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais.
Brasília: MEC/SEF, 1997.
ENCICLOPÉDIA ITAÚ-CULTURAL. Literatura brasileira. Disponível em: <http://www. itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=definicoes_texto&cd_verbete=5217&cd_item=46>. Acesso em: 30 set. 2008.
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SÁ, João Gomes. História da literatura de cordel. Palestra proferida na Unifig, em 24 set. 2008.
WIKIPEDIA. Cordel do Fogo Encantado. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ Cordel_do_Fogo_Encantado>. Acesso em: 26 set. 2008.
YOUTUBE. Show de abertura dos XV Jogos Pan-Americanos. Disponível em: <http://br. youtube.com/watch?v=XPLdgLywBr4>. Acesso em: 18 set. 2008.