A situação de submissão da mulher é um fenômeno histórico, em que esta sofreu um processo de exclusão e diminuição de seu papel social. Elódia Xavier (1991, p.12), menciona que, historicamente a figura feminina foi sendo associada aos cuidados domésticos e familiares, herança de uma sociedade patriarcal, tornando-a, assim, inferior dentro da hierarquia familiar e sacrificando nesta perspectiva sua própria identidade, pois de tanto ser obrigada ideologicamente a viver sob a máscara da aceitação dos valores hegemônicos, perdia-se de si mesma.

Em meados da década de 60, as mulheres passam a lutar por um lugar onde não fossem apenas figurantes, pois sua condição até então era única e exclusivamente de objeto maleável, podendo assim ser moldada da forma que fosse mais conveniente para o homem. A partir dessa década, as mulheres começam a se "enxergar" como tal, lutando a partir de então para, enfim, serem atuantes no processo de criação de seu próprio discurso e conseqüentemente da sua própria vida. Marcilio de Abreu, em vozes femininas na pós - modernidade: mulheres em tons de vermelho, diz que: foi a partir do instante que a mulher se reconheceu como mulher e, deste modo diferente do homem, que ela assumiu a sua condição feminina e de forma a alguma mostrando preocupação existencial egocêntrica de autoras, mas sim numa tentativa de incorporar um movimento de descoberta da mulher, buscando, assim, a sua identidade feminina. A narrativa feminina neste período vai mostrar a insatisfação da mulher com o lugar de submissão, apresentando os questionamentos dos valores impostos pelo patriarcalismo dominante, mostrando, muitas vezes, o conflito entre ser a dona do lar e desejo de liberdade/ independência e com isso reconhecer sua própria identidade. O reconhecimento dessa identidade não trás em seu bojo a oposição a uma condição masculina, mas sim a consciência que o masculino e o feminino são construções discursivas dentro da cultura.

Marcilio Ehms de Abreu menciona também que, a critica produzida através da literatura feminina é dirigida em distinguir o gênero das construções discursivas, constatando desse modo que nas décadas de 70/80 do século XX, ouve um predomínio da inquietação das minorias. Nesse caso especifico a das mulheres. Essa distinção é uma questão bastante discutida nas praticas culturais da pós – modernidade, na medida que durante séculos não se tinha essa preocupação: a mulher era retratada na literatura única e exclusivamente pelos homens, desta maneira, mantendo uma ordem/ padrão falocêntrico imposta pelas estruturas sociais. A partir dessa percepção, abriram-se possibilidades para questionamentos sobre esse mecanismo ideológico de poder, até então silencioso e cômodo na visão patriarcal. A partir destas décadas, a busca da mulher por essa identidade é firmada, e tematizada pela literatura de autoria feminina, na qual a representação do mundo é feita pela ótica feminina, o que difere da autoria masculina, na media que é a mulher agora que se compõe, repõe e recompõe. A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento estruturante nesses textos. Não se trata assim de um simples tema literário, mas algo que nutre essa narrativa.

Golbery de Oliveira Chagas (2004, p.111) diz que a pós – modernidade veio a abrir algumas discussões sobre questões até então fechadas e indiscutíveis, onde o discurso predominante era o do homem, sendo a imagem do homem símbolo de poder e liderança, deixando à margem do universo do poder as "minorias" (negro, índio etc.), especialmente a mulher, pois esta, no conceito do homem ocidental, influenciado pela ideologia bíblica, originou-se do homem, portanto, para ele. O autor ainda menciona que, no discurso literário clássico, a mulher assumi uma condição passiva/ submissa, mesmo estando em muitos livros no papel principal. No entanto, a mulher é representada através da ótica masculina, que propositalmente abafam ou modelam o seu discurso. Observa-se, então, conforme declara Maria Angélica Alves, em Entre a sombra e a luz (1991, p.54) "que ser mulher equivaleria, portanto, ao comprimento de um contrato natural determinado pelo outro, o homem".

As inquietações femininas na busca por uma identidade própria é o discurso predominante na obra As Doze Cores do Vermelho, de Helena Parente Cunha (1930) (baiana, poeta, ficcionista, tradutora, professora universitária, pesquisadora, ensaísta e critica literária) que será analisada a partir deste momento, tecendo então, uma panorama histórico-social, apontando as funções atribuídas à mulher ao longo do tempo e revelando a sua necessidade em buscar autonomia e espaço dentro desse mundo até então descrito pelo homem.

Marcilio de Abreu menciona que Helena Parente Cunha, em sua obra As Doze Cores do Vermelho, vem mostrar de forma poética um estudo critico das relações de gênero dentro da literatura e do multiculturalismo que constitui a sociedade em meados do século XX. Além disso, procura afirmar a construção identitária e um discurso propriamente feminino, processo necessário para desfazer a condição que lhe era imposta e construir a sua condição feminina. Pode-se dizer que este processo de conscientização, no caso específico da literatura feminina, acaba se desdobrando na divisão interior das personagens. Como podemos perceber, a mulher vive um constante dilema: cumprir seu papel de mulher (subserviente), conduta esta imposta pelos poderes patriarcais, e em contraponto, seguir seu próprio caminho, assumindo seu papel de mulher pensante.

Escrito em 1988, o romance As Doze Cores do Vermelho possui uma estrutura incomum e inovadora dentro da literatura pós - modernista, existindo deste modo uma ruptura dos padrões usuais da época. O romance não possui vírgula e, é dividido em quarenta e oito módulos e cada módulo em três ângulos, nos quais apresentam três vozes ou três dimensões; um eu que recorda descobertas do passado: "Eu era uma menina como as outras que brincava no arco da manhã repleta de alvoradas" (idem, p.14); um você que dialoga (presente): "Você faz vinte anos e vai se casar" (idem, p.15); e um ela que antevê o futuro: "Ela terá sua casa e o marido e as duas filhas" (idem, p.15). Divisão interna de uma personagem, que como mencionamos anteriormente, é inata dessa mulher que deseja se libertar das algemas sociais, mas está ainda presa aos padrões desta sociedade altamente conservadora e preconceituosa.

O livro é inovador até na forma de leitura, na medida em que pode ser lido sem que sua compreensão seja prejudicada de duas maneiras: a leitura feita módulo por módulo, onde se encontram as três vozes da personagem, ou então, por cada ângulo separadamente que correspondem a cada "eu" da personagem principal. Marcilio Ehms de Abreu ainda menciona que, mesmo que o leitor opte por escolher qualquer uma das formas de ler As Doze Cores do Vermelho não achará uma linearidade precisa, pois o tempo é trabalhado de forma constante na construção enunciativa do livro.

A mulher fragmentada em As Doze Cores do Vermelho, a cada desejo/ anseio de sua liberdade reprimido vai "morrendo" aos poucos, não a morte da carne, mas sim da sua personalidade, são onde ocorrem as contradições dentro do corpo da personagem.

"Fragmentação":

Ela nunca esquecerá que passa muitas noites insones (...). Eclipse permanecido no compacto e no espaço (...). Ela nunca esquecerá a vozes rebatendo que a mulher deve ser dócil. Peso do pesadelo ele o elo (...). Ela nunca esquecerá as censuras do marido todas as vezes que se isolou no quarto para pintar suas estrelas e seus peixes e os seus vermelhos roxos (CUNHA, 1998, p.61) (grifos nossos).

"Contradições":

Toda narrativa é marcada por contradições, desde a inicial, de expressar a totalidade de fragmentos, como diz a narradora, até os três últimos ângulos, os do módulo quarenta e oito, que contêm, pela ordem: "a bola de sabão não era a bola de sabão"; "você vê onde termina o arco-íris e não vê"; "o que há é o que haverá além de haver" (ABREU, 1999, p.127).

As contradições mencionadas relacionam-se à condição da mulher no seu dilema constante de existência, e que em As Doze Cores do Vermelho podem ser vistas na divisão dessas "três mulheres" que na verdade é "uma só", constituindo, assim, uma multiplicidade perturbadora. Em relação a isso, Marcilio de Abreu (1999, p.127) diz que: "Capaz não só de promover uma contestação do individuo unificado e coerente, mas de vincular-se a um questionamento geral em relação a qualquer sistema totalizante ou homogeneizante".

A personagem principal retrata o papel da mulher que se submete àsnormas sociais, mas deseja transgredir, encontrando-se entre a vontade de violar e o comprimento das normas, na qual não pode comandar suas ações devido à constante obediência às condições e modelos machistas. Dividida entre o "lado de cá" que representa as normas, e o "lado de lá", espaço da liberdade onde à protagonista tende a se autoafirmar:

A mulher é rainha do lar. Você não vai mais entrar na escola de belas artes. Você prometeu a seu noivo que não vai mais pintar (...). Do fundo do coração ela pretenderá amar o marido (...). A mulher deve ser submissa. Ela terá uma geladeira vermelha na cozinha branca. Ela bordará um cachorrinho no vestido da filha (CUNHA. 1998. p. 15)

Esta divisão de lados, em As Doze Cores do Vermelho vem a nos mostrar justamente essa mulher dividida, nestes dois mundos distintos, o que ela idealiza eo que ela vive de fato. Mesmo não conseguindo se libertar, na sigla de "Helena", articula-se todo o emaranhado significativo que abrange a afirmação de um discurso de autoria feminina. Levando questionamentos significativos, dentre os quais, a liberdade sexual, aborto, afirmação profissional, poder político, etc.

Como afirma Marcilio Ehms de Abreu:

Já se disse que o ser se manifesta pelo fracasso. Pois o representado nesse romance fornece, pelo conflito estrutural mesmo em que se apóia, uma denuncia da condição feminina na ultima metade do século. O fracasso desta mulher-artista é uma forma de amadurecimento da visão feminina sobre a mulher. Ao mesmo tempo que suplanta o estigma da fragilidade, desqualifica paradigmas de certa forma cristalizados em nossa cultura, tais como o de "Amélia, a mulher de verdade"-registro de uma idealização social; ou da "mulher de cama e mesa" (ABREU, 1999. p. 131).

Nesta obra, a mulher é retratada a partir dos seus medos, considerando, assim, a personalidade da mulher inconsciente e fragmentada. Diante desta perspectiva, o romance permite perceber que o medo controla as atitudes da personagem, impedindo-a de construir a sua identidade. Os trechos abaixo revelam o quanto a protagonista ao se intimidar perante as situações vividas retarda o seu auto reconhecimento num jogo de incertezas. "Você pega sua bolsa e vai até a porta. Mas você não sai. Porque você tem medo?" (CUNHA, 1998, p.27). "O lado de lá e o lado de cá. No meio o mar. O meio o receio o medo" (idem, p.41). "O meio é o medo" (idem, p.42). Em todas as passagens acima citadas, o medo limita a personagem, apontando para a prevalência das normas sociais em detrimento dos desejos da mulher: E devido a isso, a fragmentação torna-se mais evidente, visto que a protagonista deseja sua independência, mas é obrigada a assumir o papel determinado pelo sistema falocêntrico.

Percebe-se que o romace discuti os princípios patriarcais que impõem o conservadorismo, com isso discriminando e condenando o ato de transgressão desta minoria em questão (a mulher). Ricardo Araújo Barberena (2007, p.02) diz que: Helena apresenta um recurso inovador em As Doze Cores do Vermelho: "as cores", das quais estão associadas à personalidade e ao comportamento das personagens. Neste aspecto temos, por exemplo, a amiga loura, personagem obediente e com princípios conservadores impostos pelo sistema patriarcal, caracterizando uma herança européia, conseqüentemente, seguindo esses princípios estará supervalorizando o branco: "(...) a miga loura afirmando que a mulher de respeito deve respeitar o marido (...)" (CUNHA, 1998. p. 19). Amiga de olhos verdes mostra a transgressão como via de auto-afirmação e construção de identidade: "(...) Amiga de olhos verdes dizendo que fazer sexo com muitos homens é uma necessidade biológica e psíquica da mulher que precisa se libertar da sujeição ancestral (...)" (Ibidem, p.19). Amiga dos cabelos de fogo indica a desonra e a violação dos preceitos da sociedade, sofrendo assim a discriminação ao longo de sua vida: "(...) Amiga dos cabelos de fogo abaixando a cabeça e os cílios em reverberações silenciosas (...)" (Ibidem, p.19). Amiga negra vive a exclusão e a discriminação em sua infância, mas ao contrario do comum, a personagem obtém ascensão social, torna-se médica, quebrando assim mais um estereótipo: "(...) sua amiga negra é a melhor gastroenterologista de sua geração (...)" (Ibidem, p.21). Com relação ao marido da protagonista, um homem altamente conservador e organizado, é associado às cores opacas e escuras: "(...) Ela dará ao marido uma pasta cor de terra úmida. Ele não deixará de usar a pasta preta (...). A voz do marido repetindo que a organização é fundamental para o equilíbrio doméstico e pessoal (...) (Ibidem, p. 21).

Ao contrário do que se observa da protagonista, em vista dos demais personagens, podemos perceber que ela possui várias cores ao longo da obra: "a menina loira dizia que tinha pena de mim. Eu vivia desenhando e não sabia desenhar ela dizia diz disse. As minhas formas disformadas dissimetrias antiproporcional deslimite" (...) (CUNHA, 1998. p. 32). Caracterizamos o fato das personagens não entenderem a pintura da protagonista, um indicativo, a extrema dificuldade que a sociedade tem de aceitar e valorizar o diferente. As escolhas e gosto da mulher - artista pela pintura abstrata de forma informe mostra a diferença e a quebra de paradigmas, ou seja, como a protagonista encontra-se em um dilema existencial/ busca de identidade, esta mulher não possui uma cor exata, na medida em que se vê parcialmente em várias cores, a depender de seu emocional (vermelho = prazer/ identidade; desvermelho = frustração/ obrigação/ aprisionamento; roxo = ruptura etc.).

Podemos perceber, perante tudo que foi exposto acima, que em As Doze Cores do Vermelho o discurso desempenha um papel de extrema importância para o encontro dessa mulher, até então perdida dentro do contexto de séculos de submissão, construindo, assim, a sua identidade, ignorada por muito tempo pela cultura hegemônica patriarcal. A mulher começa a partir daí a contar, recontar e inventar o seu próprio mundo, agora com a sua ótica dos acontecimentos.

Referências:

ALVES, Maria Angélica. Entre a sombra e a luz. In: XAVIER, Elódia Carvalho de Formiga (org.) Tudo no Feminino: a presença da mulher na narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. p.54

BARBERENA, Ricardo Araújo. A representação dos matizes nacionais em "As Doze Cores do Vermelho". Disponível em: HTTP://www.helenaparente.com.br/criticas/ricardo.htm...Acesso em: 25 de agosto 2008.

CHAGAS, Golbery de Oliveira. Mulher, Pós – Modernidade e discurso – A condição de (des) existência feminina a partir de vozes desestabilizantes, em As Doze Cores do Vermelho, e de vozes de encurralamento, em São Bernardo. In: SILVA, Antonio de Pádua Dias da; RIBEIRO, Maria Goretti (orgs.). Mulheres de Helana – trilhamentos do feminino na obra de Parente Cunha. João Pessoa: Editora Universitaria, 2004, p. 107-127.

CUNHA, Helena Parente. As Doze Cores do Vermelho. 2. Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

EHMS DE ABREU, Marcilio. Vozes femininas na pós – modernidade: mulheres em tons de vermelho: In.. Desafiando o cânone: aspectos da literatura de autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80)/ organizadora: Helena Parente Cunha – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p.125-133.

KAUSS, Vera Lucia Teixeira. A transgressão na construção da identidade feminina. Desafiando o cânone: aspectos da literatura de autoria feminina na prosa e na poesia (anos 70/80)/ organizadora: Helena Parente Cunha – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p.99-101.

XAVIER, Elódia Carvalho de Formiga. Reflexões sobre a narrativa da autoria feminina. In: XAVIER, Elódia Carvalho Formiga (org.). Tudo no feminino: a presença da mulher na narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. P.9-16.