Língua, preconceito e memórias.

          Se considerarmos que a língua, segundo muitos linguistas, é o resultado de uma conformação da sociedade, é o intermediário entre o ser humano e a realidade em que ele se insere, seria insensato analisá-la dentro de uma abordagem meramente normativa.

          Uma vez que a língua é um elemento que está intimamente ligado à formação da sociedade, ela não pode ser estática, posto que a sociedade seja formada por pessoas que diariamente sofrem as mais variadas influências, que se transformam e se adaptam. Então, se a sociedade não é imune a essas transformações, por que a língua haveria de ser? Por que pensar a língua de uma maneira dissociada da realidade em que as pessoas se inserem?

          Analisar a língua sem levar em consideração as transformações sociais é como estudar as espécies animais sem levar em conta o habitat em que vivem. Não faria muito sentido, pois uma coisa interfere diretamente na outra. Existe uma relação íntima de causas e conseqüências entre as duas coisas. A língua, como instrumento de comunicação entre as pessoas, é o meio pelo qual elas se compreendem, compartilham ideias, expressam sentimentos e, com isso, são capazes de se organizarem em sociedade.

          Se por um lado, o ensino da norma culta da língua é essencialmente necessário, no sentido de que se deve haver uma unidade linguística em termos de organização da sociedade, por outro, não se deve ignorar ou hostilizar as variações da língua, pois a maneira peculiar de comunicação dos mais diversos grupos sociais em toda a extensão territorial do Brasil ou de qualquer outro lugar do mundo faz parte da memória dessas pessoas e, portanto, desrespeitar a sua forma particular de comunicação implica desrespeitar a sua memória e a sua dignidade.

          No tocante ao preconceito lingüístico, não há muita diferença em relação aos demais tipos de preconceito, a não ser pela forma em que se manifesta. Entretanto, na sua essência, o princípio é o mesmo. Quase todas as manifestações de preconceitos são provenientes de um único tipo: O preconceito social. Ele é o monstro genitor das mais variadas formas de preconceito. Em outras palavras, tudo se origina na velha dualidade “riqueza versus pobreza”.

          O preconceito racial sofrido por negros, indígenas, asiáticos, por exemplo, se manifesta através da postura soberba do indivíduo branco que se julga superior, já que historicamente, o homem branco dominou, colonizou, explorou, dizimou, escravizou os seus semelhantes não-brancos e, por conseguinte, os países de maioria branca são economicamente prósperos. Assim, na mentalidade do preconceituoso, o indivíduo branco representa a força, a riqueza e a prosperidade, e os demais, representam a submissão, o subdesenvolvimento e a miséria. Se a história tivesse sido diferente, se os negros ou indígenas tivessem colonizado a Europa, se tivessem dominado, dizimado e escravizado os brancos europeus, impondo-lhes sua cultura, sua língua, sua religião, seus costumes, certamente a raça branca seria vítima de preconceito e discriminação nos dias de hoje.

          Com a língua não é diferente. Os falantes da norma culta, da linguagem rebuscada, polida e erudita, representam uma classe elitista, tiveram acesso á educação de qualidade, são prósperos e, segundo o jargão popular, são a cara da riqueza. Já os falantes da linguagem popular, coloquial representam uma classe analfabeta, ignorante, pobre, rude, enfim, são a cara da favela, da comunidade ou do sertão. Portanto, segundo os linguisticamente preconceituosos, a linguagem falada por essas pessoas é primitiva, defeituosa, subdesenvolvida e inferiore, e deve ser combatida, dizimada. Se há algo que, historicamente, os brancos donos do mundo nunca pensaram foi em respeitar a memória e dignidade dos povos dominados. E essa prática continua até os dias de hoje, de forma velada, sutil. Cada vez que alguém hostiliza e discrimina as formas lingüísticas que destoam da norma culta, está desrespeitando a memória e a dignidade dos seus semelhantes.

         Desta forma, conclui-se que, se a língua é um elemento fundamentalmente social, ela é um fenômeno bem mais complexo do que parece ser e, portanto, não deve ser analisada apenas numa perspectiva normativa, sem levar em consideração as suas variedades. Conclui-se, também, que a informação e a conscientização dos indivíduos são as armas mais eficazes para combater todos os tipos de preconceitos, inclusive o lingüístico.

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 Artigo de opinião elaborado pela aluna Arlane Gomes Ferreira, para avaliação parcial na disciplina “Conceitos Fundamentais da lingüística”, sob orientação do Professor Edner Morelli, no curso de pós-graduação em gramática e textos da língua portuguesa, da Universidade Nove de Julho - UNINOVE.

 

Referências bibliográficas:

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola.

Campinas, Mercado de Letras, 1996, 95 p.

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: Novela sociolingüística.

Editora Contexto. São Paulo. 2004.